MEMÓRIAS DE UM MOTOBOY EM TEMPOS DE PANDEMIA

Dos pesadelos da vida quarentenada, o mais alucinante dos sonhos foi se ver como motoboy, correndo como quem voa, praticamente revoando como uma águia, rasgando o asfalto para que outros pássaros não precisassem sair de seus ninhos antes do tempo.

TRABALHOS (EXTRAS) DO DESATENTO

Próximo ao estádio municipal estava feita a penúltima entrega da noite. Quase aliviado, conferi na comanda o que seria o último endereço de destino. – Putz! – Do outro lado da cidade?! E o pedido: um espetinho de queijo e duas linguiças…

As noites de domingo são terríveis para os entregadores, mesmo nestes tempos. Cansado, amargurado e desiludido arrumei desmotivado a mochila de entregas e parti, VU-A-DO.

Em poucos minutos, já perto do local, pude sentir o “excesso de leveza” nas costas. Parei e constatei: – Králho! PQP! – A mochila bag abriu e o pedido… o pedido caiu!

A partir deste instante, meu ser foi dominado pelo instinto. Percorri de volta todo o trajeto, com as vistas aguçadas. Os itens dos pedidos estavam bem embalados: duas sacolas, uma para cada item, ainda envolto cada um em papel alumínio e uma terceira sacola devidamente amarrada. Ah! Se ao menos os pedidos estivessem intactos…

Mas não. Só ao chegar no local da entrega anterior encontrei o queijo e as linguiças, servindo de deliciosa e necessária refeição a dois famintos cães de rua.

Não me restou outra coisa, se não refazer o mesmo pedido, mais uma vez re-fa-zer o percurso novamente e finalmente saciar a fome da cliente que também faminta esperava, lá naquela excelentíssima quebrada…

A CIGANA (SE ENGANOU?)

Noutra noite na Rua Arco Verde – Sumaré, por volta das 22:30, meu excesso de autoconfiança me pregou uma peça. Convicto de que conhecia toda a cidade como sempre me gabei, demorei a encontrar este endereço. Não achava o número da casa próximo ao ponto de referência relatado. Me dei conta de que estava sem óculos e que as ruas mudaram de figura durante a noite.

Foi então que reparei naquela mulher de longo vestido e cabelos pretos, com seus olhos igualmente negros fixados em mim que, em marcha lenta, tentava identificar os números das casas. Num gesto firme ela apontava para uma pequena residência próxima, no que apurando as vistas, pude reconhecer a numeração que procurava.

E quando já estava a entrega feita, o pedido de desculpas pelo atraso aceito e o pagamento devidamente debitado, me preparei para a próxima entrega, quando senti a presença da mulher de longo vestido, já bem diante de mim:

─ Tem um cartão aí? Não é assim que quem sai daqui, daquele jeito, volta não viu. Não esquece: o caminho de ida é diferente do de volta. E pra que inventar isso agora? Preciso de um cartão desses, anda.

─ A fulana de tal tem o número de lá aqui.

Só com esta outra intervenção, vinda da casa ao lado, pude entender que o cartão solicitado estava associado ao número do telefone para efetuar pedidos de entrega (amador).

─ Desculpe senhora, realmente não tenho nenhum cartão aqui.

─ Que pena. ─ Me respondeu com ares melancólicos a tal mulher, dando-me as costas e se afastando em seguida.

Ligando o motor rumei ao outro destino, que sabia eu, estava próximo. Já dos desígnios ciganos, bem, só mesmo um baralho bem botado.

NO MOTEL

Lá pelas últimas bandas era o endereço, que não devo revelar: 6 espetinhos com farofa e vinagrete, uma pizza família acompanhada de refrigerante 2L e uma porção grande de camarão ao alho e óleo.

Quase desisti da profissão (temporária) quando cheguei ao local da entrega. Mas, diante do grande portão, decidi apertar a campainha, ao que soou aquela voz do interfone:

─ Suíte ou apartamento?

─ Moça, é uma entrega.

─ Carro ou moto?

─ É um pedido feito pelo Senhor Fulano de Tal…

─ Ah! Sim. Número “x” viu? ─ E para minha surpresa, não é que foi-se abrindo lentamente o portão!?

Em frente a entrada da suíte, várias gargalhadas distintas podiam ser ouvidas desde a garagem. Seria uma… …aglomeração?

─ (Batendo palmas) Entrega para fulano!

─ Ôpa! (silêncio) Pode deixar aí em cima do capô do carro, amigo. O dinheiro também já tá aí trocado, pode conferir. Valeu!

Conferido tudo direitinho, apenas fui aguardar abrir o portão de saída.

GATO NADA ESCALDADO

Foi bem na curva do cruzamento entre as avenidas pericentral e a do contorno, que aconteceu aquela coisa no meu coração. Mal tinha virado o guidão da moto quando avistei aquele bendito gato.

Já era a terceira semana que desempenhava a mais nova função, no não tão belo quadro social da quarentena. Agora eu era motoboy e minha moto só corria por três. Como cidadão, me sentia realizado.

Todavia, porém, e, no entanto, desde que me habilitei previa eu o dia que aquilo aconteceria. Imaginava o momento em que um animal cruzasse meu caminho e eu não poderia me desviar a tempo de salvá-lo, sem comprometer a minha vida. Os restos mortais de animais que vi nas margens das vias, cobraram o seu preço em meu imaginário.

Pois, nem bem acabara de virar a moto. Mal tinha focado o farol baixo nas faixas da pista… e lá estava ele.

O bichano armava um bote, ameaçando atravessar a rua e justo ao perceber meu avanço, projetou-se a frente de forma rápida e instintiva. E num piscar de olhos já estava a salvo, quase do outro lado da movimentada via, graças a sua natureza ágil de felino. Mas algo que NÃO SEI, nem imagino o que, ocorreu em seguida na mente do felino, naquele mesmo relance de instante.

E parou o gato. Congelou a criatura bem no meio da faixa. E ainda achando tempo de olhar para mim, por fim, INEXPLICAVELMENTE decidiu em outro bote armando, dar meia volta. – Por quê? Por-quê? POR QUÊ?!

Num impulso, também involuntário, fechei os olhos e pressionei forte a buzina. Foi tudo que pude fazer. Mas não adiantou. Senti apenas um leve impacto na roda dianteira. Nem mais uma imagem, nem mais um som sequer.

Não pude, naquela situação, voltar e prestar qualquer socorro ao animal. Nem suportei imaginar as condições do bicho depois do impacto. Ao contrário, procurei aliviar minha culpa, confiando que as pessoas na calçada, sentadas em suas cadeiras logo ali bem diante do ocorrido, fariam bem mais que eu pelo pet acidentado.

E segui angustiado meu caminho, que por capricho irônico do destino, era uma entrega urgente, numa quebrada periférica conhecida como “Gato Morto”.

Esta é uma crônica de remorso, por tão lamentável crime acidental.

O QUE É QUE HÁ, VELHINHO?

Ainda era cedo, pouco além das 20hs, mas rodava com boa dose de tensão nas veias por aquela deserta avenida quando avistei a cena, que ao longe configurava o que seria um homem baixinho empurrando com dificuldade a sua velha moto pela ciclovia.

Precisava decidir rápido a despeito do que seria o mais correto a fazer, considerando todos os fatores de riscos circunstanciais. Optei por reduzir de 70km para 30, 20 e já a uns 10m, antes de cruzar com o motoqueiro/pedestre já estava a 15km/h, com os instintos de fuga 100% ligados.

─ Tá tudo bem aí, meu velho? ─ Esclareço que assim me dirigi ao senhor, deduzindo pelo andar dificultoso, estatura pequena e pelas costas arqueadas que se tratava de um idoso. Não quis ofender. JURO! Mas não obtive nenhum sinal, nenhum mínimo aceno.

Ainda mais próximo, insisti. ─ Vai um empurrãozinho aí compadre? ─ Nem a confiança. Gelo total. Nem um mísero olhar de rabo-de-olho.

Ao cruzar com o homem, fitei o quadro rapidamente: sua velha moto era da marca Honda, modelo Todey 125 Cc; os dois pneus secos ou furados, corrente partida e sem a lanterna traseira; o “senhor” de capacete fechado na cabeça, trajava bem surrada calça e camisa social e calçava um tipo de sandálias que não pude identificar.

A frieza com que me tratou o cidadão, só não foi pior que o calafrio na espinha que senti quando passei por ele. Mas foi-se o pedestre/motociclista na ciclovia, visto pelo retrovisor rumando no sentido da saída da city. Enquanto eu no sentido contrário, faria minha entrega logo depois da rotatória, o que levou cerca de 5min.

Retornando pela mesma avenida despovoada, num percurso de quase 2km, nem avistei sinal do tal velhinho invocado.

DESOLAMENTO DE UM CLIENTE

Ao ler na comanda o lugar da entrega, um sobressalto: Recepção Principal do Hospital Regional.

Uma vez lá, ao encostar a moto, logo me veio um moço que aguardava em pé, já do lado de fora da recepção. – É a pizza ½ portuguesa ½ carne de sol?

– É sim. – Respondi prontamente, cuidando de descer rápido do veículo e realizar um ágil atendimento. Enquanto buscava retirar com o máximo de urgência a maquineta e o pedido, assim falou o cliente:

– Era a nossa pizza preferida, minha e dela. A parte portuguesa era minha e ela preferia a de carne de sol. – Tinha a voz embargada o homem que aparentava ter menos de 40 anos, e que assim continuou: – cara, tem cada coisa que acontece na vida da gente… todo mundo lá em casa pegou… eu, meu pai, minha mãe e todos tinham algum problema de saúde, só ela que parecia ser totalmente saudável. Como é que pode?

– Parei o que estava fazendo, esperando conseguir dar atenção ao moço, posto que tinha sido pego de surpresa.

– E agora, como é que eu faço pra voltar pra casa? – O homem intensificava o desabafo, já com sinais de alteração. – Como é que eu vou encarar minha família, os pais dela e a minha filha? O que é que eu digo pra essa criança!?

Tinha diante de mim um cliente visivelmente atordoado, ainda se esforçando para conter o desespero. Com as mãos ocupadas com a pizza e a maquineta, hesitei em propor-lhe um abraço consolador.

– E o refrigerante de caju? Esqueci de pedir, foi? – Perguntou ele. E conferindo na comanda vi não haver refrigerante na lista. – Queria era uma caixa de cerveja. – Complementou o angustiado cliente.

– Amigo, beber agora só vai piorar tudo. Faça isso não. – Interpelei.

– Você não sabe o que tá dizendo. Eu perdi a minha esposa. Quatro anos de casados. Ela só tinha 36 anos. Tô sem chão, cara. – Havia na voz e nas mãos do meu cliente, compulsivo tremor ao falar.

Decidi que faria alguma coisa. Não o deixaria ali desolado daquela forma, sem tentar alguma coisa. Mas o que pude fazer de fato, foi apenas ouvir…

O ouvi por cerca de 15 min. Tentando interrompê-lo quando achei necessário, lembrando-o de que era hora de ficar perto da família, que deveria focar atenção na filha pequena, que suportasse a dureza das primeiras semanas na certeza de que tudo passaria, ou pelo menos melhoraria bastante com o tempo.

Como precisava fazer outras entregas, tive que deixá-lo lá, mas ainda consegui trazer o seu refrigerante de caju.

Franck Terranova
Enviado por Franck Terranova em 31/07/2023
Código do texto: T7850369
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