CABO CHICÃO

 

MOURA LIMA

 

Capelinha, antes um povoado pacífico e de gente boa, de um dia para outro se viu envolta num covil de crimes, violência, furtos e brigas.

Tudo isso tinha uma explicação clara: a expansão da agricultura na região. A implantação da Fazenda Olavo Costa Campos atraiu lavras de agricultores oriundos do Nordeste e também contribuiu para as falcatruas, visto que bandos de ciganos brotavam no povoado.

No entanto, o juiz da comarca, em Itaberaí, zeloso de seu ofício, solicitou à autoridade maior que remetesse ao povoado um pequeno destacamento para restabelecer a ordem.

Numa tarde de agosto, com ares bochornos e abafadiços, surgiram os policias no povoado. Era um pequeno destacamento composto pelo cabo Chicão e os soldados Mão de Tamanduá e Cascavel.

 

O povoado ficou meio ressabiado, um pouco assustado, especialmente com a figura do cabo Chicão, sempre de cenho carrancudo, com modos de fúria nos gestos e com um revólver dependurado, balançando nas ancas de tanajura. Não dava um bom-dia a ninguém e, por pouca coisa, arriava, sem dó, a palmatória no cristengo.

A sua estreia no burgo foi apoteótica. Visitou, à sorrelfa, a casa das quengas, que ficava recuada no cerrado, e arriou, sem mais nem menos, a palmatória no mulherio e nos vagabundos que encontrou.

 

O povoado ficou assustado com esse ato de violência. O cabo, não satisfeito, continuou com suas atitudes abrutalhadas e passou a prender os sertanejos simples que vinham vender os seus minguados produtos no povoado. Para tal atitude, ele usava a desculpa esfarrapada de verificação e os amarrava no cerrado, já que cadeia não existia, e ainda por cima cobrava-lhes a carceragem para soltá-los.

 

No povoado, só dava atenção ao mentecapto Papagaio-rolé, pois quando o via, parava, e o doido o abordava, já reclamando:

— Está me amolando, seu cabo.

E ele respondia-lhe:

— Basta me apontar o vagabundo, que eu o faço beijar o nó da peia!

E o doido abria-se em gargalhada e seguia ziguezagueando em seu passo indolente, rua abaixo.

Um dia, o cabrão Zé Trocado, um espertalhão e fanfarrão de marca maior, inventou uma história de tomar parte com o diabo para ficar rico. Os incuráveis preguiçosos do local correram para atender o convite, e o grupo foi formado. No dia combinado, numa sexta-feira de lua cheia, marcharam para a encruzilhada. O cabo ficou sabendo da embrulhada e se preparou para o encontro macabro. À surdina, às ocultas, foi para o encontro e se amoitou de tocaia com os soldados, aguardando a farandola. Logo surgiu o bando com o Zé Trocado à frente, de pito aceso como um vaga-lume, todo bonachão. Destacava-se também no grupo macabro o Mané fogueteiro. Com sua cara horrível e rugosa, medonho de ver-se, predispunha-se todo entusiástico ao poder satânico, em sua ilusão de fobó teimoso.

Zé trocado, sem perda de tempo, foi logo dando início à cerimônia. Fez gestos teatrais, tremeliques e, com voz de taboca rachada, invocou o rei das trevas, tacando fogo numa mistura de enxofre com pólvora. O pipoco foi grande! O cheiro de enxofre empestou os ares com um fedor nauseabundo. Cabo Chicão não aguentou a ansiedade, saltou de chibata no meio do grupo e gritou:

— Meta o relho no lombo dos vagamundos... com vontade!

 

Os soldados, com uma fúria medonha, arribaram o relho de couro cru, e a cambada saiu correndo, quebrando cerrado nos peitos.

Como tudo na vida tem um fim, o reinado do cabo também foi abaixo. Um cavaleiro, que não se sabe de onde saiu, surgiu no povoado num cavalo vistoso, com uma carabina na alça da sela, um revólver na cintura e com a guaiaca pejada de bala, refletindo o Sol. Ele foi direto à venda do Orelino e deixou um recado que só podia ser revelado ao cabo. Após umas talagadas de cachaça, saiu ao entardecer. Antes, porém, deu uns tiros de carabina para o alto. E cadê o valentão do cabo? Não apareceu! Ele, então, foi embora.

 

À boca da noite, o cabo deu as caras e foi imediatamente à venda do Orelino tirar satisfação.

— Eu quero saber toda informação do sujeito. Vai desembuchando!

O vendeiro, sem arrodeio, lhe disse com toda calma do mundo:

— Não conheço o cidadão, apenas me limitei a ouvi-lo. Ele deixou este recado: “Diga ao cabo que vim a Capelinha vingar a morte do meu pai.” E acrescentou que tinha que levar na capanga a orelha do assassino!

O cabo, ao receber a notícia, caiu às carnes e saiu de cabeça baixa, todo trombudo, em silêncio. À meia-noite, arrumou a trocha e, no silêncio da madrugada, abre a barba no mundo em direção de Itaberaí, com destino a Goiás Velho.

 

Transcorrido alguns dias, depois de sua fuga, chegou em Capelinha a notícia: o cabo Chicão fora encontrado morto na estrada de Goiás, de borco, com a boca cheia de formiga, um rombo de bala nos peitos e com uma orelha decepada.

 

* Conto extraído do livro do autor - A Conquista do Sertão de Capim Puba.

 

Moura Lima, escritor goiano, autor de várias obras, ensaios, romances, contos,

 

MOURA LIMA
Enviado por MOURA LIMA em 23/09/2023
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