A Enchente do rio Uru

 

Moura Lima

 

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"Ao acordarmos, foi um alarido na casa, as águas tangenciavam as cercas do quintal, e o vaqueiro no curral gritou:

— A ponte do rio Uru rodou água abaixo, e a enchente carregou tudo!"

 

 

 

No alto da colina, no altiplano, foi situado o povoado de Capelinha com seus ruídos e barulhos peculiares, que o vento levava para baixo e se espalhava pelo vale, atingindo em ecos sonoros o interior assoberbado do casarão de tábuas da sede da fazenda, com nitidez espantosa. No silêncio profundo das madrugadas, ouvíamos o tamborilar ritmado do martelo fúnebre do carpinteiro Nicodemos, fazendo caixão. Outras vezes, era o bimbalhar do sino na igreja chamando os féis à missa.

Contudo, o que mais divertia era a voz roufenha e pastosa do velho Odílio no alto-falante de seu bar:

— Oi! Gente boa, venha comer a broa da Júlia que acabou de sair do forno, está quentinha, uma delícia!

O Sol se erguera vibrante para o alto, naquela manhã de vigor e vida, nos baixões e na mata do rio Uru. A luminosidade resplandecia no curral e no telhado vermelho do casarão de tábua serrada, que se projetava ao longe, ao lado do rego d’água que corria veloz para o bicame do monjolo. Nos fundos, o pomar com o verde das mangueiras, das tamarineiras, das laranjeiras e das pitombeiras; dos pés de bacupari e das bananeiras. Um pouco recuado, via-se o paiol, com área adjacente para o carro de bois, e o

chiqueiro para a engorda dos porcos.

 

Do outro lado do córrego, à esquerda, no lançante que caminhava para o Espigão, vislumbrava-se as casas dos colonos que cuidavam das lavouras de café. No baixão, com um verdor vigoroso, via-se a pastagem de Jaraguá, com o gado apascentando e adentrando-se a várzea úmida até as bordas do rio Uru.

 

Na sede da fazenda, o pessoal da lida campestre movimentava-se para o plantio das lavouras, pois, naqueles tempos, a confiança era enorme na certeza das chuvas, e lançava-se, então, a semente ainda no pó do chão.

 

Ao declinar da tarde, após o plantio, como uma dádiva pelo labor, e sem aviso, chegaram as primeiras chuvas como sinal de inverno abundante. O Natal foi debaixo de chuva, com trovoadas a retumbar pelos ermos e pelas amplitudes das cercanias. O janeiro chegou debaixo de água, sem o famoso veranico; o rio transbordou e começou a sangrar para a várzea. Um verdadeiro dilúvio, com temporais pesados.

Aproximava-se o dia de São José, e a enchente do rio eclodiu turuna, como represa arrebentada. Ao acordarmos, foi um alarido na casa, as águas tangenciavam as cercas do quintal, e o vaqueiro no curral gritou:

— A ponte do rio Uru rodou água abaixo, e a enchente carregou tudo!

 

A surpresa foi enorme, nunca acontecera uma enchente daquela. O alvoroço foi geral e, sem perda de tempo, arreamos os cavalos e fomos verificar a enchente. A várzea era um lençol de água que a cobria toda e, no lugar da ponte, se via apenas as vigas de aroeiras para o alto, como testemunha do desastre. O rio descia veloz, levando a garrancheira e arrancando as árvores inteiras pela raiz numa violência bárbara das correntezas. No leito caudaloso, todo coleante como uma sucuri, descia a carcaça de um boi, e um burro velho que afundara, emergia agoniado. O barulho das águas crescia e não se via os barrancos, tudo estava inundado. As ribanceiras desabavam com estrondo de terra caída.

 

Saímos da beira do rio quase a hora do almoço. E ao chegarmos a casa, para a nossa satisfação, encontrava-se dona Ana, uma velhinha benzedeira e contadora de histórias. Tinha um semblante bondoso e uns olhinhos místicos penetrantes. Ela foi logo dizendo:

— Nunca vi uma enchente dessas, ao longo da minha vida nesta terra!

E acrescentou:

— Louvado seja Deus, a fartura vai ser grande!

 

Aonde dona Ana chegava, estava sempre rodeada pelos meninos que a escutavam no maior interesse e deslumbrados com suas histórias de assombrações, que os amedrontavam, depois, nas noites de pesadelos. Era uma narradora de causos de primeira ordem, com fluência e dramaticidade. Dava ênfase, especialmente, aos causos do Negro d’Água que, segundo ela, habitava as locas de pedra do rio Uru. E recomendava, fazendo uma careta engraçada:

— Deixe sempre um pedaço de fumo no galho das árvores, como agrado. E, aí, a pescaria será farta!

 

Outras vezes, contavam os causos do Pai do Mato, que botava para correr os caçadores intrometidos no interior das matas com seu grito assustador. Fazia uma pausa, espichava o beiço e continuava:

— Aqui também em Capelinha, andava a mula sem cabeça, na Sexta-feira da Paixão.

Ela não se esquecia dos causos do lobisomem. Notoriamente, aquele que deu uma carreira num padre, no caminho da mata, do outro lado do rio, e que vinha de Goiás Velho, no tropear da mula, para celebrar missa no Engenho Capim Puba.

 

O vento dos gerais começava a balançar as folhas das árvores e as invernadas dos capinzais, anunciando a chegada do verão; as águas do rio baixaram, e o Sol foi enxugando a várzea. Nos altos, começava a colheita abundante, e o carro de bois cantava bonito nos espigões, carreando a safra. No curral, os bezerros novos enchiam o barracão. A fartura foi grande; as tulhas estavam abarrotadas de mantimentos. Na cozinha, vó Dorinha, no fogão à lenha, preparava no capricho os saborosos requeijões que só ela sabia fazer, e rememorar seu nome é mostrar aos de hoje uma figura cuja vida foi um exemplo de trabalho, dignidade e coragem.

Vó Dorinha descendia de família respeitável e sempre soube dignificar o nome prateado que lhe herdaram os seus maiores. Nasceu em Bagagem, Minas Gerais. Em 1905, ainda menina, mudou-se com os pais para Goiás, em uma longa viagem de tropas até os sertões de Amaro Leite, e casando-se em Descoberto. Mais tarde, mudou-se para Trindade para educar os netos do primeiro casamento de Guiomar de Moura. Na velhice, se recolheu à fazenda do filho, às margens do rio Uru, onde faleceu. Era uma mulher de fibra, coração caridoso. Um de seus últimos atos foi acolher uma menina, que vivia mendigando pelas ruas de Trindade com a mãe, dando-lhe um lar e uma educação sólida.

Abriu-se junho, com o vigor da vegetação viçosa, com o fim do inverno, época da chegada do tio Toquinho, com a família, e os primos, Roberto, Vera e Vânia. Era uma alegria reinante na fazenda, tempo das pescadas no rio Uru, e das caçadas de perdiz nos campos. Tio Toquinho era exímio atirador, ex-atirador do tiro de guerra do exército, não errava um tiro, mata as aves em pleno voo! E nós meninos espertos saíamos correndo para pegar a caça.

 

Assim fulgurava na minha mente a memória da infância, entre boiadas, tropas e som dos carros de boi no sertão de Capim Puba.

 

No ano seguinte, o inverno foi tranquilo. Fomos convidados para uma festa na fazenda do Geraldo Heitor, onde realizaria um mutirão e um pouso de folia.

 

Entretanto, era necessário preparar o carro de bois para, então, ajudar. Entrei embaixo do eixo e fui passando sebo nos chumaços para o carro cantar bonito. Tudo foi verificado: cangas, ajoujos, fueiros e toldo, e na manhã radiosa daquele veranico de janeiro, partimos cheios de alegria ao som plangente das cantadeiras, quebrando as solidões estrada afora. O percurso não era longo. A fazenda fazia divisa com a nossa. Ao chegarmos, se via uma animação geral entre os convidados. Fomos recebidos por dona Caetana, esposa do senhor Geraldo. Naquela época, ela ainda era mulher saudável e formosa; não tinha filhos, mas criava o sobrinho Valdemar, que estava alegre, pulando com os meninos. De repente, porém, ele caiu no chão, estrebuchando em convulsão, pois o coitado sofria de epilepsia, sendo levado para o interior da casa.

A festa continuou. Quando olhamos à direita, crescia o burburinho. Era a chegada do chefe da família, o senhor Joaquim Heitor e dona Sinhana, e fomos recebê-los. O patriarca, já idoso, de cabelos brancos, com sua face bondosa, refletindo alegria, cumprimentou todos com gestos fraternos. Ele era um homem de profunda religiosidade e inspirava respeito.

A tarde ia se fechando na sepultura do horizonte, quando ecoou ao longe, no travessão do mato, o batido surdo de um tambor. Uma voz do oitão da casa gritou:

— É a folia!

E os foguetes estrondearam no ar, com as roqueiras; os foliões adentraram a currulama e saíram para o pátio, onde entoaram o nostálgico canto:

 

Ô de casa, Ô de fora,

Menina vai vê quem é;

É o senhô Santos Reis

Que se anda festejando.

 

Deus te salve casa nobre

Nos seus postos tão honrados,

Aonde mora gente nobre

Que de Deus é visitado.

 

Senhô dono da casa

Alegrai seu coração,

Arrecebei sua bandeira

E agasalhai os foliões.

 

Nesse ponto da cantoria, o alferes entregou ao Geraldo Heitor a bandeira do Divino, e os foliões entraram na casa, cantando ao som das violas e pandeiros.

Ao término da ritualística do canto, foi servida a jantarola aos foliões, num banquete animado, à tripa- forra, grande fartura: leitoa assada, cozidão, baião de dois, arroz Maria Isabel e carne de sol de braseiro. O garrafão de cachaça passava de mão em mão, e no final, depois de servido o doce de leite, os foliões entoaram junto à mesa do jantar o bendito de agradecimento:

 

Deus vos pague a boa janta

Que vós deste pros folião,

Deus lhe ponha mesa no céu

E dá a salvação

 

 

O palhaço da folia, o careta, de vez em quando puxava o relho num moleque atrevido, e a meninada se divertia, às gargalhadas, soltando espanta-coiós; outros se encolhiam de medo. A sanfona e os pandeiros, repicados pelas violas, enchiam os ares de alegria, e de “ais” de satisfação dos convidados. Tudo era animação da boa gente!

Assim, a abastança e os festejos campestres daqueles tempos eram motivos suficientes para tirarem os ribeirinhos e os homens do campo do isolamento, enchendo-lhes de alegria a alma, como suporte vital para enfrentar as lides rudes e ásperas do meio rural.

 

 

Conto extraído do livro do autor- A Conquista do Sertão de Capim Puba.

 

 

*Moura Lima é escritor (Goiano-tocantinense), advogado, romancista, contista, ensaísta, autor de várias obras. Membro da Academia Tocantinense de Letras, do Instituto Histórico e Geográfico, pertence à Academia Piauiense, como membro correspondente.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

MOURA LIMA
Enviado por MOURA LIMA em 30/09/2023
Reeditado em 01/10/2023
Código do texto: T7897977
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