LENDA URBANA

Eu não sei se isso aconteceu com muita gente, mas no Jardim Botânico, lá na década de sessenta figuras folclóricas dispunham de licença poética para se apresentar ao vivo e em cores.

Ninguém sabia de onde ele tinha vindo, lembrava em muito nossos antecessores neandertais, apresentava aparência de idoso, onde escassos fios capilares cobriam parcialmente sua cabeça grisalha. Mesmo na época, sua estatura era diminuta, algo como 157 centímetros, mas com musculatura bem desenvolvida.

A barba sempre bem feita fazia contraponto aos sempre desgrenhados cabelos da sua avantajada cabeça. Seu pescoço curto e grosso caracterizava uma aparência no mínimo estranha.

Seu apelido Mamu, se devia a uma provável deficiência de nascença, era mudo e nunca fora apresentado à linguagem de sinais, mesmo assim tentava reproduzir a sua maneira, e muitas vezes conseguia produzir uma comunicação mínima, que felizmente dava para o gasto.

Outra característica que bem definia esse sujeito era o corpo bem delineado e uma força quase inacreditável. Em função desta força física conseguia biscates para trabalhos pesados na vizinhança.

Como o único som que emitia era algo como: emu, amu que se repetiam infinitas vezes, acabou, via fonética, recebendo a alcunha de Mamu, que ele aprendeu a entender como seu nome.

Ninguém sabia seu paradeiro à noite, mas logo cedo era comum encontrá-lo perambulando pelas ruas vizinhas, atrás de alguma atividade que lhe rendesse uns trocados.

Em algumas poucas vezes, chegou a participar da pelada na rua, que acontecia nos finais de tarde, mas sua coordenação motora com a bola não era das melhores, logo foi rejeitado pelo grupo de adolescentes.

Interessantes eram suas constantes irritações na hora de receber pelo trabalho executado, sempre exigia mais do que fora anteriormente combinado, realmente ficava nervoso, e os repetitivos sons que conseguia emitir desencadeavam uma espécie de língua do m.

Esses descontroles momentâneos logo passavam, e se desculpava a sua maneira, ajoelhando e com as palmas das mãos juntas suplicava perdão, claro, ninguém resistia a toda essa demonstração de subserviência.

Como as lojas de comércio ficavam a alguns quarteirões de distância, desse local que ele optou por escolher como seu, frequentemente se via algum morador entregando dinheiro e uma listinha de compras para o Mamu literalmente sair correndo até a padaria, ou mercadinho e retornar com uma presteza única.

Essa folclórica figura nunca precisou se preocupar com o que comer, o café da manhã provinha de uma das muitas famílias que contavam com seu serviço matinal de padaria.

Seu almoço, ou almoços, resultavam de um hábito comum à época, muita gente não reaproveitava sobras da refeição anterior e Mamu as recebia com prazer, muitas vezes dividia seu prato com algum cachorro ou gato de plantão, que já conheciam sua gentileza.

Quando a noite chegava, ele novamente sumia de circulação.

Alcides José de Carvalho Carneiro
Enviado por Alcides José de Carvalho Carneiro em 10/11/2023
Código do texto: T7928820
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