A galinha e o lobisomem

Há muito tempo, quando o Ariri Pistola ainda era um gurizinho ranhento, morava no meu galinheiro uma galinha garnizé muito bonitinha, preta e branca, chamada Berenice. Berenice era a criatura mais justa daqui até Passo Fundo, porque lá é que tinha um juiz federal, mas só por isso. De manhã cedo, a Berenice, que era uma tremenda de uma poedeira, olhava os ninhos das outras colegas de galinheiro. Se tivesse uma que não houvesse posto um ovo, lá ia a garnizé, e deixava um no ninho da outra — galinha que não bota ovo, vira canja! No terreiro também tinha um galo enorme, muito garboso e exibido, chamado Euclides. O galo exigia que a maior parte da quirera fosse pra ele (quirera é milho, só que quebradinho). Ele tinha uma quedinha pela Berê, e ela sabia disso. Quando eu ia lá jogar a comidinha delas, a garnizezinha, toda charmosa, ia até o poleiro do Euclides pra conversar com ele. O galo, derretido, arrastava as duas asas pra ela, enquanto as companheiras comiam. Só depois disso é que a Berê convidava-o para comer. Distraído, ele nem percebia que comia o mesmo que todas as outras penosas (até um pouquinho menos).

Pois, nessa época do Euclides e da Berenice, dizia-se na vila que rondava as chácaras um certo lobisomem. Todo mundo, gente ou bicho, sabe que o prato preferido de lobisomem é ovo de galinha, e que esses bichos são danados de espertos. O Seu Figueira, que morava depois da Dona Gerda, que morava depois do Gringo, que era meu vizinho de cercado, tinha um galinheiro dez vezes maior que o meu. As galinhas dele davam tanto ovo que nem precisava uma Berenice pra ajudar as outras, e eram tantas que duvido que ele soubesse o nome de todas elas. Seu galinheiro foi o primeiro onde o tal lobisomem atacou. Numa manhã, quando o coitado do Seu Figueira foi fazer a coleta, só tinham ficado as cascas dos ovinhos.

No dia seguinte, aconteceu a mesma coisa no galinheiro da Dona Gerda, que não soube mais o que fazer a não ser chorar. Dois dias depois, foi a vez das frangas do Gringo terem a produção de uma manhã toda perdida para o alcaide do lobisomem. Foi uma choradeira. O que todo mundo achava estranho era que as galinhas, que sabem ser muito barulhentas quando vêem alguma coisa que não conhecem, não deram sequer um pio.

A vizinhança começou a se preparar pra caçar o bicho. Já era bem de madrugada, e aquele pessoal todo saiu a procurar um rastro do dito-cujo. Claro que eu também estava assustado, e me arrumava para sair às catas do infeliz. Se as minhas contas estavam certas, o próximo galinheiro a receber o visitante indesejado seria o meu.

Quando eu estava calçando minhas botas, e a espingarda já estava pendurada no prego ao lado da porta, vi que entrou alguém pelos fundos, bem de mansinho. Era a galinha Berenice. Ela olhou-me muito “sim-senhora”, com cara de quem estava pronta para me passar um sermão. Foi a primeira vez que ela falou comigo.

— Horácio, por acaso tu tens aí uma pedra de rio? — perguntou-me a galinha. Tomei um susto, e acho que até por causa disso, respondi de imediato:

— Tenho, Berenice! Está em cima da escrivaninha.

— Pois então, pega aquela cal que tu tens no porão e pinta a pedra de branco. Depois, leva-a pintada para mim, lá no galinheiro. — e saiu.

Eu sabia da ligeireza da Berê, mas aquilo era demais. Mas você sabe que eu sou curioso, e tive que pagar para ver o que ela estava tramando. Fiz exatamente como ela disse: peguei a pedra de rio, daquelas que ficam bem redondinhas. Fui até o porão e pintei-a com a cal que uso para passar nas laranjeiras. Comecei a entender o que é que a garnizé planejava.

Entrei no galinheiro muito em silêncio. A galinhazinha já esperava no seu ninho. Disse assim:

— Deixa a pedra aí e te esconde. Só cuida!

Pus a pedra branca no ninho da garnizé e escondi-me nas palhas o melhor que pude. O sol ia começando a levantar pras bandas da Capital, quando as funcionárias acordam e começaram a trabalhar. Uma a uma, começando por Amália, passando pela Berenice, a Creuza, terminando na Zenaide, todas puseram seus ovos naquela manhã. De repente, depois que todas já tinham feito seu serviço, e algumas até voltaram a dar uma cochilada, uma galinha vermelha e gorda entrou no galinheiro rebolando. A galinha estava com cara de quem acordara muito bem-disposta e estava pronta para sua primeira refeição. Seguindo a mesma ordem, lá foi a ruiva rebolando, no primeiro ninho: quebrou a casca com uma única bicada e bebeu o ovo da Amália. O segundo ninho, nós sabemos de quem era. Encantada com o tamanho do ovo de Berenice, a gorducha penosa dá-lhe uma bicada com vontade. Claro que a casca não quebrou, afinal, era uma pedra pintada de branco, mas a malvada não sabia disso e continuou. Bicou, bicou, bicou até ficar com o bico todo torto e virado para a esquerda. Só então que a gulosa notou que tinha sido enganada. A essa altura todas as galinhas tinham acordado outra vez e estavam fazendo um círculo em volta do ninho da Berê. A vermelha ficou muito contrariada por ter sido tão estúpida. Foi aí que me assustei de verdade.

A galinha ruiva deu um pulo no meio do galinheiro espantando todas as outras. Deu um giro sobre uma das patas, depois outro e mais outro até estar rodopiando feito um pião. Quando parou, senti um cheiro horrível, e no lugar da galinha estava outra criatura, também vermelha: era o Anhangá-Pitã! O Anhangá-Pitã é um tinhoso, primo do Saci e muito amigo do Curupira. Ouvi uma vez falar que ele era enorme e muito mau. Aquele dia, porém, apareceu nanico, pouca coisa maior que uma galinha, com os cabelos eriçados como um ouriço, e uns dentinhos pontudos como um serrote. E agora, depois do acontecido, estava com o nariz que antigamente era grande e pontudo, inteiramente virado para a esquerda. Berrando de raiva porque seu disfarce foi descoberto, o Anhangá-Pitã saiu pela escadinha do galinheiro, pulou a cerca, enfiou-se no mato e nunca mais foi visto.

A vida voltou ao normal depois disso. Os vizinhos trouxeram quirerinha de várias qualidades para a Berenice. O Gringo, o melhor dos pescadores da vila, encontrou uma porção de minhocas da melhor qualidade para ela. Dona Gerda fez um ninho novo, bordado em ponto-cruz. E o Seu Figueira espalhou a notícia por toda a Linha Bonita. Agora, todos os donos de galinheiro têm uma pedra de rio pintada de branco. Claro que o desavergonhado do Anhangá-Pitã não cairia outra vez no mesmo truque, mas dizem que ele ficou com tanta vergonha de ter sido passado para trás por uma garnizé que basta ver uma pedra de rio pintada à cal que o monstrinho desaparece num piscar de olhos.

Ah?! O que aconteceu ao lobisomem? Pois ouvi um boato entre as funcionárias do galinheiro que ele, volta e meia, manda uns presentes pra garnizé. Enfim, descobriram que nem era ele quem gostava de comer ovo de galinha.

E a Berenice? Bem, a Berê casou com o Euclides, tiveram uma porção de pintinhos preto-e-brancos e foram daqui para Garibaldi, lá na Serra, perto da família dele. Mês passado ela mandou uma carta, e disse que faltam só dois anos para ela se aposentar.