Um velório muito animado

UM VELÓRIO MUITO ANIMADO

Lourenço Júnior morreu como morrem os perus: na véspera do natal. Seu trágico passamento se deu na véspera do natal do ano 2000. Antes de falar sobre a morte de Lourenço Júnior, do velório pai d'égua realizado na casa dele na Passagem Paraíso e do cortejo fúnebre até o cemitério de Santa Isabel, que virou um alegre piquenique, regado à cerveja, cachaça e churrasco, relataremos algumas cenas da vida desse operário, o mais aplicado de todos os trabalhadores que labutavam sob a orientação caxias de "Gato". Ele era também o maior goleador que já ocupou o lugar de centro avante do Aritana Esporte Clube, time da 3ª divisão de futebol paraense, treinado por Zé Raimundo. O velório e o enterro certamente não tiveram a mesma pompa e riqueza dos lordes ou grã-finos, de gente endinheirada, mas ganharam em animação qualquer aniversário de escola de samba ou outra patuscada do gênero, do jeito que o morto quando em vida recomendou a seus amigos. De espírito alegre, brincalhão e gozador, nosso herói ganhava a vida como ajudante de pedreiro. Mas, como já se percebeu, era um rapaz de espírito festivo. Ele costumava dizer que quando morresse não queria choro, mas que seus amigos bebessem muito, tomassem um porre em sua memória, recomendação que eles seguiram a risca como veremos.

Lourenço acordava às seis da manhã todos os dias e seguia para a construção civil. Tinha a sorte de trabalhar perto de casa e caminhava a pé para o serviço. Aproveitava a carona de Alcindo Pena, o encarregado da obra, que ele chamava de "Gato", porque o encarregado - segundo dizia Lourenço Júnior, quando já estava bêbado - aumentava a renda que recebia da firma de engenharia, subtraindo material de construção das obras que realizava. Dizia isso não por maldade ou por não gostar do chefe, apenas para ter o que palestrar nas rodadas de cachaça com "Primote", "Pedrão", "Saquinho", "Tôco", "Gadebota" e "Lázaro Tucaninho", seus colegas da construção civil. Ele até ajudava o chefe na subtração dos gêneros, levando também a sua parte. Eram homens honestos e trabalhadores. Não eram ladrões. Apenas desapertavam as necessidades em cima da firma, que explorava os operários até a última gota de sangue, em troca de um mísero salário que mal dava para comer, pagar o quarto alugado em que Lourenço Júnior morava e a sempre necessária garrafa diária de cachaça, bebida com os colegas de trabalho, na taberna de seu "Zé de Rosinha", o cearense mentiroso que vivia contando casos ocorridos na cidade do Crato e no sertão cearense onde nascera. Umas duas ou três dosezinhas bebidas durante os dias de semana em companhia dos parceiros do serviço, porque "Gato" era muito severo e exigente na disciplina dos peões. Operário que trabalhasse sob sua chefia não bebia durante o expediente e nem podia chegar de ressaca, sem condições de enfrentar a rudeza da faina diária. Várias vezes "Gato" mandou "Pedrão" voltar do trabalho por ter chegado de ressaca e - na visão dele "sem condições de sentar um tijolo", quanto mais fazer a massa ou rebocar as paredes dos prédios, sobre pingentes. Sem cachaça já era arriscado, sob os efeitos dela o risco dobrava. Para prevenir acidentes, "Gato" era rigoroso:

- Depois o engenheiro vai cobrar é de mim, se um porra desse cair do andaime e morrer, dizia ele com sua boca vazia de dentes.

Por essa razão era implacável com os subordinados. Ele costumava dizer que o mundo não precisava de nenhum deles. "O cemitério do Bengüí está cheio de insubstituíveis", repetia o mestre-de-obra com sua boca desdentada.

A cachaça, bebida depois do serviço, era tão necessária quanto o feijão com jabá ou o quilo de piramutaba, xaréu ou pirarucu que nutria aquela gente, dando forças para o trabalho. A cachaça comedida, bebida durante a semana, era descontada no sábado e no domingo, quando o operariado saltava de cabeça dentro dos tonéis de aguardente, secando todas as baiúcas das cercanias e quantas mais houvesse. A cachaça era o bálsamo de todos eles. Marx - o inventor do comunismo - dizia que a religião era o ópio do povo. O ópio do operariado, que o filósofo tanto defendeu, é a cachaça. Tequila, vodka, aguardente, não importa o nome, o efeito e o papel exercido pela bebida é o mesmo. São seus efeitos embriagantes que criam no operariado a alienação de uma vida feliz e plena de bens materiais. Uma ilusão real que faz o operário passar seus dias sem perceber que sua vida é um calvário. Karl Marx parece não haver se apercebido dessa verdade incontestável. Talvez se tivesse detectado em suas observações sociológicas esse fato objetivo e verdadeiro, teria liderado uma cruzada contra a bebida, especialmente contra a cachaça, ao invés de atiçar o operariado a se engajar na luta contra o poder capitalista.

Colocado de ilharga Karl Marx, o comunismo e o poder capitalista, que nenhuma importância têm para o relato da morte trágica, do velório pai d'égua e do enterro animado do operário Lourenço Júnior, voltemos ao trilho da narração: nos dias quentes da semana a birita aumentava o calor, facilitando o banho tomado na bica. O cimento acumulado na pele era lavado com sabão grosso. A mente um pouco entorpecida pela aguardente facilitava o banho tomado gostosamente na bica da habitação coletiva onde Lourenço e os outros operários moravam, na Passagem Paraíso. Quando começava o período de chuvas, as doses ingeridas espantavam o frio e o operário podia banhar-se tranqüilamente, assobiando um brega e pensando no final de semana que teria, dançando no bregão de "Sinvalzinho", o festeiro que ganhava a vida promovendo "bailes da saudade", onde eram rodados os maiores e melhores sucessos de Ted Max, Reginaldo Rossi, Beto Barbosa, Bartô Galeno, Elino Julião, Mauro Cota, Cícero Rossi e um cantor que tinha um nome esquisito: "Anormal do Brega". "Sinvalzinho" contratava as melhores aparelhagens para animarem suas festas. "Tupinambá", "Rubi", "Treme Terra", "Jacksom", "Rubro Negro", "Empala", "Alvi-Azul", "Sinter", "Sideral" eram algumas das aparelhagens contratadas pelo festeiro para animar seus "bailes da saudade". Eram nesses bregões que o povo se divertia. Era onde Lourenço arrumava namorada, para no final da madrugada levá-la para seu quarto, onde esquecia da aspereza da vida envolvido com os carinhos das garotas, entre elas Firmina, sua namorada predileta. Na verdade, Firmina de há muito que fora elevada da condição de simples namorada para o status de amásia. Era ela quem cuidava do quarto de Lourenço, arrumando-o. Lavava suas roupas e preparava a comida. Apesar de não dormir diariamente na casa do operário - afinal não eram casados de papel passado e o pai de Firmina, um crente muito puritano, não permitia - ela vivia em seu barraco, cuidando das coisas do trabalhador. E dormindo, às vezes, lá, sempre que o cuidadoso pai se descuidava, ao participar das vigílias da sua denominação cristã. Ao meio dia Firmina embalava o almoço em uma marmita de alumínio e levava para seu homem no canteiro de obras. O jantar era servido às nove da noite no único cômodo do lugar em que o ajudante de pedreiro morava. A cama ficava do lado da mesa onde eram feitas as refeições. Lourenço Júnior largava o serviço às dezoito horas, mas religiosamente passava na taberna de seu "Zé de Rosinha" para emborcar uma dose de cachaça, conversar com os outros operários, ouvir os acontecimentos do dia, os crimes ocorridos na cidade, noticiados nas estações de rádio e nos jornais, escutar as estórias que seu "Zé de Rosinha" contava, a maioria delas de duvidosa ocorrência. Sentados em tamboretes em frente ao balcão, os operários escutavam com atenção as estórias de seu "Zé de Rosinha", narradas com riqueza de detalhes. Os operários intercalavam a narrativa de seu "Zé de Rosinha" com perguntas que esclareciam os fatos narrados. Havia um pássaro em Aracati, no Ceará - relatava o comerciante - um carcará gigante que habitava a caatinga. Era tão grande que ensombrava a cidade quando a sobrevoava a procura de cachorro vadios dos quais se alimentava. Quando acabaram-se os vira-latas da cidade, o carcará começou a comer criancinhas. Foi aí que o avô de seu "Zé de Rosinha" - um ex-cangaceiro, braço direito de Virgulino Ferreira - matou o bicho com um tiro de espingarda no olho. Uma mulher no sertão do Carirí era tão branca que quando bebia café as pessoas podiam ver a bebida através do pescoço dela quando engolia o líquido. Uma mulher em Quixeramobim, no estado natal de seu "Zé de Rosinha", levou duzentos e cinqüenta anos de prisão pelo assassinato de nove esposos. O comerciante cearense explicava que ela se casava e no primeiro desentendimento assassinava o marido. A criminosa deixava o marido dormir e, alta hora da noite, colocava um prego 3X9 exatamente na juntura dos ossos parietais e batia com força na cabeça do prego com uma marreta. O infeliz do cônjuge nem sangrava. Depois penteava o marido morto e avisava os vizinhos de que ele tivera um mal súbito e morrera em seus braços. A criminosa somente foi descoberta - dizia seu "Zé" com a confirmação da esposa dona Rosinha, também cearense - porque um vizinho estava com andaço e de madrugada foi ao sanitário no quintal e ao retornar escutou um gemido e resolveu ver do que se tratava, se deparando com a mulher ainda com a marreta na mão e o marido nos estertores da morte. Denunciada às autoridades, a mulher foi presa. Ao exumar os cadáveres dos oito esposos dela, falecidos nas mesmas circunstâncias, a polícia encontrou no crânio de todos eles um prego 3X9 encravado na juntura dos parietais. Seu "Zé de Rosinha" dizia que tinha inclusive, até bem pouco tempo, o jornal que noticiou o fato no Ceará, mas perdera na mudança.

- Vocês não ouviram falar? Deu até no Fantástico! Não foi Rosinha?

Eram estórias assim que formavam o breviário de seu "Zé de Rosinha", todas ocorridas no Ceará, que ajudava a passar o tempo e tornar a cachaça mais saborosa, bebida no sabor daquele palestrar distraído.

Na véspera do natal, com a grana no bolso - a firma pagou a semana e mais o décimo terceiro - Lourenço Júnior começou a tomar seus goles depois do meio dia, logo após o final do serviço, assim que "Gato" liberou a turma, já que é costume na construção civil o operariado trabalhar no sábado somente até meio dia. Em companhia de "Tôco", e "Saquinho", seus amigos do serviço e parceiros de copo, ele perambulou por vários bares e boates. Com dinheiro no bolso eles davam preferência para uma cerveja gelada, boa para suavizar o calor ou espantar o frio, conforme os humores de sua excelência o tempo. A abrideira foi tomada no boteco "Xamego". Lá os operários beberam meia dúzia de "geladas", apenas para dar início à farra. Júnior costumava dizer que como bebedor tinha um defeito: não comia nada enquanto estivesse bebendo. "É por isso que fico porre rápido", prelecionava ele para "Pedrão" e "Saquinho". "Eu bebo diferente do "Gato". O encarregado quando começa a beber, antes ele manda a Lucirene, a patroa dele, aprontar uma panela de mocotó, para ele tirar gosto. É por isso que a gente não vê ele porre", acrescentava por fim o operário. Lourenço Júnior deixava para se alimentar somente no final da bebedeira, antes de cair em sono profundo, enfrentando a última fase da embriaguez.

Muita garota suspirava pelo operário, ainda na sustança de seus vinte e cinco anos. Firmina era apenas a predileta, com quem pretendia casar de papel passado. A relação do mulherio do nosso herói era grande. Algumas provocavam confusão por causa dele. Madalena, mais conhecida por "Nega Madá", cortou com uma gilete o rosto de Creuza, na disputa pelo operário. "Nega Madá" passou um tempo na Penitenciária de Americano, por haver provocado deformidade permanente no rosto de Creuza. "Mundinha", casada com um sargento da Polícia Militar, vivia no encalço de Júnior. Por respeito ao miliciano, amigo pessoal do operário, Lourenço Júnior não a quis. Ela morava com o sargento em frente à vila de quartos onde Lourenço Júnior residia. Nutria verdadeiro ódio por Firmina. Certa vez, tentando esquivar-se de "Mundinha", Lourenço Júnior lhe explicara que iria casar em 2001 com Firmina. Essa confissão lhe foi fatal.

Desde o dia em que tomou conhecimento do casamento de Firmina e Lourenço Júnior que "Mundinha" passou a arquitetar um plano para se ver livre de Firmina. A princípio foram as fofocas que "Mundinha" propalava na rua, visando difamar a honra da pequena, uma mulher direita, avessa a leviandades. Não deram certo. As mentiras engendradas pela infiel mulher do sargento vinham logo à tona e tudo era esclarecido. Mas ela não desistia. Apenas mudou a estratégia, pedindo desculpas à Firmina e procurando demonstrar que não tinha mais nenhum interesse pelo noivo dela.

Em Belém é comum na semana do natal as pessoas prepararem uma maniçoba para a ceia da meia noite. Principalmente na periferia. Na Passagem Paraíso várias casas mandavam preparar a iguaria, servida na noite de natal e na passagem do ano, quando era contratada uma aparelhagem para tocar na rua e as pessoas amanheciam nas calçadas de suas casas dançando alegremente. Um reveillon pai d'égua regado a muita cerveja e batida. "Mundinha" preparou no quintal um panelão de maniçoba e na véspera de natal doou a comida para vários vizinhos. Seu gesto de boa vontade fazia parte de um diabólico plano tramado. Muita gente aceitou a maniçoba feita por "Mundinha". A mulher procurou Firmina e ofereceu-lhe um prato de maniçoba. Apesar de não comer maniçoba - Firmina era adventista e a temperança imposta pela igreja proíbe seus fiéis de comerem carne de porco, o principal ingrediente de uma suculenta maniçoba - Firmina aceitou o prato da comida, pensando em Lourenço Júnior.

- Aproveita para comer enquanto está quente Firmina, recomendou "Mundinha", à noiva do operário.

Firmina guardou a comida do jeito que recebeu das mãos de "Mundinha" na geladeira para servi-la a Lourenço Júnior, quando ele chegasse da rua. Ela já sabia que quando ele chegava em casa, saturado de bebida alcoólica, comia bastante antes de dormir. O natal do ano 2000 ocorreu em um domingo. No sábado, logo depois de haver sido liberado por "Gato" e receber sua semana acrescida do décimo terceiro salário, Lourenço Júnior começou a beber com "Saquinho" e "Tôco". Depois do boteco "Xamego" eles passaram pela boate "Locomotiva", pelo bar "Bimbala", pela boate "do Garrincha", atrás do Bosque "Rodrigues Alves". De lá eles foram para as casas de rapariga no centro comercial. A farra seguiu seu rumo: "Chuá", "Gaiola Dourada", "Patesco", "Xendengo", "Porta Larga" e em várias outras casas de mulheres da vida. Já por volta de uma hora da madrugada, com muito copo emborcado, eles tomaram um táxi e rumaram para o bairro do Guamá onde todos residiam. Na entrada do Beco do Pequiá eles tomaram a saideira e todos se separaram. Lourenço Júnior seguiu para o quarto onde morava. Sabia que Firmina o aguardava. Ao bater na porta foi recebido pela cara sonolenta da garota, que sem proferir qualquer palavra, seguiu para a geladeira, retirou a maniçoba que "Mundinha" lhe dera e aqueceu a comida no fogão. Sem comer o dia inteiro, o operário em poucos minutos comeu toda a maniçoba. Ele era assim: só comia no final da carraspana e adorava maniçoba. Tomou um banho e convidou Firmina para dormirem juntos. Antes de acomodar-se, o rapaz começou a sentir fortes dores abdominais. As dores atrozes eram de tamanha intensidade que ele passou a gritar e a assustar a vizinhança. Várias pessoas foram até à casa dele para saber o que se passava. "Primote", que morava em um quarto ao lado, se apresentou voluntariamente para levar, em companhia de Firmina, o amigo ao hospital. Jaime, o taxista, acordou-se e conduziu o operário para o Hospital do Pronto Socorro Municipal, na Travessa 14 de Março. Ao longo do trajeto, ele gemia baixinho e babava pelo canto da boca. Firmina asseava-lhe a boca com uma toalha de rosto. Ao ser atendido o rapaz apresentava um quadro de diarréia intensa, vômitos violentos, prostração e alteração profunda na face. Os médicos logo de início diagnosticaram a causa das dores abdominais do operário: veneno. Por volta de seis horas da manhã, Lourenço Júnior morreu. Devido a causa da morte, Firmina foi detida pela polícia. Ao explicar-se ao delegado, este foi bater à porta de "Mundinha". Sem qualquer gesto de arrependimento ela confessou o crime cometido. Chorou apenas quando soube que quem tinha morrido era Lourenço Júnior e não Firmina, o alvo visado pela assassina. Ela contou ao delegado que colocara na maniçoba "chumbinho", um veneno usado para matar ratos, e que depois foi proibida sua comercialização pelo Ministério da Saúde, devido seu amplo emprego como instrumento de crime.

Logo cedo as estações de rádio noticiaram o assassinato do rapaz. Os jornais estamparam o rosto da criminosa e o corpo inerte de Lourenço sobre a pedra do necrotério do Hospital do Pronto Socorro. A taberna de seu "Zé de Rosinha" serviu de ponto de concentração para os atletas, confrades do morto e para a população da Passagem Paraíso. O time inteiro do Aritana Esporte Clube, agremiação em que Lourenço Júnior atuava como centroavante, começou a tomar na taberna de seu "Zé de Rosinha" os primeiros goles em homenagem ao falecido. Afinal ele era considerado o maior artilheiro que o time possuiu em seus quadros em todos os tempos, desde a época em que o Aritana era ainda denominado Palmar Esporte Clube.

Lourenço Júnior não pagava sociedade fúnebre. Muito menos sua família. O dinheiro que recebia não dava para essas despesas supérfluas. A família não tinha como enterrá-lo. "Gato" tomou a frente das despesas. Pediu para "Pingo", o dono da funerária, que preparasse um caixão e adotasse todas as demais providências, que ele assumiria o ônus. "Pingo" era famoso no bairro por andar com uma trena no bolso, medindo as pessoas, torcendo para que algumas delas partissem em paz, afinal era seu ofício fornecer caixão de defunto e sua prole precisava ser alimentada. Certa vez ele levou uns sopapos de "Nego da Capoeira", um dos mais perigosos marginais do bairro, por haver - sem autorização de ninguém - medido a avó que criara o malandro, preparado o caixão com antecedência e a velha, doente há vários meses, não morreu. Depois de ter sido medida por "Pingo" ela ainda viveu mais de cinco anos. "Nego da Capoeira" achou que o diligente e precavido agente funerário estava agourando sua "mãezinha", como ele chamava a avó, dona Castorina, e partiu para a violência.

O corpo do operário somente foi liberado às 17 horas para sepultamento, depois de ter sido submetido a necrópsia no Instituto Médico Legal "Renato Chaves", na Rua Barão de Mamoré. Depois de receber o armador em casa, despachado por "Pingo", a família resolveu que o enterro somente seria realizado no dia seguinte, ou seja, no dia de natal, pois aguardava a mãe de Lourenço Júnior residente em Macapá, que queria ver o corpo do filho antes de ser enterrado.

Com o caixão providenciado por "Gato" e as demais despesas assumidas por ele como última homenagem prestada ao amigo extinto, o corpo foi velado na Passagem Paraíso. A partir de sete horas da noite a casa não cabia as pessoas que queriam ver o cracão. A Passagem Paraíso ficou apinhada de gente. Os representantes da Liga do Esporte Amador compareceram. Presidentes de vários clubes da 3ª divisão do futebol paraenses registraram presença no velório. Atletas integrantes do Fuzuê Esporte e Regatas, do Tiradentes Atlético Clube, da Sociedade Esportiva Guamaense, do Norte Brasileiro, do Santa Isabel Esporte Clube, do Cosmos da Pedreira, se concentravam na taberna de seu Zé de Rosinha. O trágico passamento de Lourenço Júnior, o goleador da 3ª divisão do futebol, era motivo para que as garrafas de cachaça fossem destampadas, garrafões de vinho Galioto e cerveja serviam como alento para que o público esportista suportasse a infausta ocorrência. No início da noite foram colocadas mais de vinte mesas onde os craques da 3ª divisão, amigos e admiradores do morto, várias de suas namoradas, se revezavam no dominó, no baralho, na dama e no xadrez. As raras pessoas que não bebiam bebida alcoólica, tomavam chocolate com biscoito, café com bolacha e chá de erva cidreira, que Lucirene, a dedicada esposa do mestre-de-obra "Gato" providenciara. Depois de meia noite, "Silvalzinho", amigo de longas datas do operário e fulminante goleador, resolveu instalar sua aparelhagem para render sua última homenagem ao operário-atleta que não faltava um só dos seus "bailes da saudade". Ele pedira permissão à família, que não se opôs, pois era o desejo do morto que as pessoas não se entristecessem com sua morte, mas aproveitassem para demonstrar carinho e afeto por ele. Era o que o atacante dizia para "Saquinho" quando estava com ele diante dos copos de cachaça, sentado em tamboretes, na taberna de seu Zé de Rosinha, escutando as surrealistas braguinhas do taberneiro.

"Sinvalzinho" passou a executar as músicas prediletas do morto, canções de Paulo Sérgio que faziam parte da seqüência "o passado é uma parada", a predileta de Lourenço Júnior. "Guarânia da Saudade", "Índia", "A Última Canção", "Castelo de Sonhos", "Ao Por do sol", "Entre Espumas", "Contigo Ao Sol", "Cofrinho de Amor", "Pertinho de Você", foram alguns dos vários sucessos tocados na aparelhagem "Aliança" de "Silvalzinho". Sem qualquer constrangimento as pessoas começaram a dançar, embaladas pelos sucessos executados e pela cachaça bebida em homenagem ao morto. As músicas eram interrompidas, de vez em quando, pela gravação de uma fita cassete, com a narração feita pelo locutor de futebol Teodorico Rodrigues, da Rádio Marajoara, narrando o último golaço feito por Lourenço Júnior, contra o Cosmos da Pedreira, na decisão do campeonato paraense da 3ª divisão, que "Sinvalzinho", admirador do craque-capitão do Aritana Esporte Clube, gravara em sua aparelhagem. Quando o locutor gritava "goooooooooooool" ouvia-se uma algazarra de todos os presentes como se estivessem escutando a narração pela primeira vez.

Seu "Zé de Rosinha" teve que mandar, às pressas, "Palito", um de seus caixeiros, tomar a camioneta e ir até o depósito de bebida de Abílio Português e comprar trinta caixas extras de cerveja, porque o seu estoque acabou antes da meia noite e o povo precisava enfrentar a madrugada, a pior parte da noite, para quem tira sentinela de defunto. Sem cachaça é quase impossível o cristão manter-se aceso para falar bem do morto. Ele mandou também que o empregado adquirisse vinte caixas de cachaça, porque sua reserva de aguardente também secara. Com a perda do habilidoso jogador e dedicado operário, somente o consumo da cachaça podia aplacar a dor pungida, o sentimento sincero de perda do vibrante atacante, fulgurante goleador, temor de qualquer goleiro e da defesa adversária, autor de vários gols de placas nos campeonatos e torneios de que participou.

Um grupo de puxadores de maconha, liderados pelo malandro "Mucuim", todos amigos do falecido, acharam de render homenagem ao morto, acendendo alguns baseados. O cheiro da erva queimada a céu aberto, despertou as narinas treinadas e a atenção canina do investigador "Tonhão", que jogava no meio-campo do Aritana e armava o jogo para que o pranteado cracão finalizasse as jogadas. O policial ainda pensou em sacar de seu inseparável 38, que fazia tremer a bandidagem e dar uma lição nos puxadores da erva do diabo. Mas foi aconselhado por Natália, sua noiva, para que deixasse para dar uma lição nos viciados em outra oportunidade. Excepcionalmente - e unicamente por respeito ao companheiro de tabela no campeonato - "Tonhão" guardou sua arma e deixou, naquela noite, os maconheiros em paz.

O povo não arredou pé da casa do morto e de toda a Passagem Paraíso - a casa ficou pequena para conter a multidão - até a hora do enterro, marcada para às 10 horas da manhã. A aparelhagem de "Sinvalzinho" não interrompeu um minuto sequer sua apresentação executando os sucessos do presente e do passado. A aparelhagem somente silenciou as caixas e o treme-terra encerrou a homenagem ao grande esportista falecido quando o féretro saiu do interior da residência do irmão de Júnior, na Passagem Paraíso. Os amigos do operário decidiram que o caixão seria conduzido a pé pelas ruas do bairro do Guamá. Eles dispensaram o furgão da "Portal da Eternidade", a funerária de propriedade de "Pingo" e os ônibus colocados à disposição pelo agente funerário para conduzir as pessoas. Mesmo porque, ainda que "Pingo" colocasse uma frota inteira de coletivos, seria insuficiente para comportar tanta gente disposta a acompanhar o enterro "daquela máquina de fazer gols", como dizia Teodorico Rodrigues em suas narrações na Rádio Marajoara.

Por onde o cortejo fúnebre passava, pelas ruas e vielas, becos e passagens, travessas e logradouros, aumentava-se consideravelmente o consumo de bebida alcoólica, especialmente cachaça. Os vendedores de churrasquinho de gato, acompanharam também o cortejo e aumentaram a fatura que já fora ancha durante a noite. Operários e atletas se revezavam na alça do caixão. Exceto "Gadebota", um negro vaidoso, que recebera essa alcunha por somente tirar as botas que usava permanentemente para tomar banho. Odete, sua fiel esposa, dizia que, às vezes, ele se esquecia e dormia com as botas. O apelido original era "Gato-de-botas" que o povo abreviou para "Gadebota". Com as botas lustradas, Francisco Bandeira - esse era o nome de "Gadebota"- não ia perder a oportunidade para exibi-las para todo aquele povo que compareceu ao velório e enterro do craque destruidor de invencibilidades.

O vereador Fernando Mata Rato aproveitou o ensejo para consolidar seu prestígio eleitoral. Munido de um megafone ele conduzia a multidão, ora puxando uma oração, repetida pelo povo, ora cobrando da justiça uma punição exemplar para "Mundinha", repudiando o "ato de selvageria e barbárie cometido por uma mulher casada, mãe de três filhos e que deveria colocar-se no lugar que lhe cabia de rainha do lar e não assassinar as pessoas por pura inveja, movida por um ciúme mórbido". Demagogia ou não, Fernando Mata Rato era quem patrocinava as camisas, calções e chuteiras do Aritana Esporte Clube e por isso obteve autorização de Albino Valente, presidente do clube, para pronunciar-se ao longo do cortejo. Ele ainda teve um atrito com o vigia do cemitério de Santa Isabel, porque queria adentrar o campo santo com o megafone em pleno funcionamento. Orientado pelo diretor do cemitério, o vigia obstou-lhe a intenção, sem antes ouvir as palavras de protesto do edil, do lado de fora da grade do cemitério "pelo verdadeiro atentado à liberdade de manifestação e agressão aos princípios democráticos" e que a atitude de "Carretel" - era como chamavam o vigia - refletia o caráter autoritário da administração do atual prefeito (contra quem Fernando Mata Rato fazia oposição na Câmara), contumaz violador das instituições democráticas e dos direitos individuais e coletivos". Fernando Mata Rato foi aplaudido pelas pessoas que acompanhavam aquele ato de caridade e fé cristã, que não conseguiam entender a razão pela qual "Carretel" queria impedir aquele legítimo representante do povo de externar o sentimento de repúdio ao ato de perfídia que resultou no assassinato precoce do craque, capitão do Aritana. Naquela conjuntura, o povo falava através da voz do vereador, elogiando o demolidor de zagas e condenando a violência que o governo não consegue conter contra pacatos cidadãos. Definitivamente "Carretel", que era amigo do morto, estava equivocado. Em voz baixa ele explicou-se ao líder Fernando Mata Rato, esclarecendo que "recebera ordens de cima" para impedi-lo de prosseguir seu papel de pregoeiro. Mata Rato exonerou imediatamente o coveiro e vigia do cemitério de qualquer responsabilidade - afinal "Carretel" era seu eleitor e o vereador não ia querer perder o voto e o apoio da numerosa família do coveiro - e mudou o tom do discurso, centralizando suas críticas ao prefeito municipal, responsável não apenas por atos de censura - como este materializado por "Carretel", sob verdadeira coação da administração municipal - mas também pelo abandono de toda a cidade de Belém. A prova - salientava o orador quinhentista - os presentes poderiam constatar no próprio cemitério, destinado a receber eternamente nossos entes querido, tomado pelo capim, com iluminação deficiente, sem segurança e sem a adequada limpeza. Nosso goleador não merece esta falta de respeito do prefeito que se encastela no Palácio Antônio Lemos e se esquece dos problemas do povo. A multidão embriagada com as palavras de Mata Rato e com a cachaça bebida durante a noite na Passagem Paraíso, durante o velório, vibrava, hipotecando apoio político e solidariedade ao líder guamaense.

- Não foi à toa que eu e minha família inteira votamos e fizemos boca-de-urna para seu Fernando, confidenciou "Lázaro Tucaninho" para um grupo de amigos do falecido.

Para solucionar o grave incidente, resultado da intransigência do administrador do cemitério, "Gato", orientado por Fernando Mata Rato, declarou que o enterro somente prosseguiria se o líder do cortejo e mecenas do Aritana Esporte Clube entrasse com seu megafone. Caso contrário eles seguiriam em passeata até a prefeitura e pediriam a exoneração do administrador do cemitério, "afinal estamos em uma democracia e em uma verdadeira democracia até o desejo dos mortos devem ser respeitados, pois esta era a vontade do operário Lourenço Júnior: que ninguém chorasse em seu enterro, que tomassem um porre em seu louvor, que o cortejo fosse realizado em tom festivo" explicava o mestre-de-obra ao administrador do cemitério chamado às pressas para dar uma solução ao problema. Diante da demonstração de unidade popular em torno da liderança do vereador Fernando Mata Rato, o advogado José Maria, mais conhecido por "Zé da Bilene", administrador do Santa Isabel, autorizou a entrada do vereador com megafone em pleno funcionamento, se desculpando com o edil, sob a alegação de que "Carretel" entendeu mal suas ordens. Depois que o corpo desceu a campa fria, Fernando Mata Rato e Alcindo Pena ainda usaram do megafone instalado em um mausoléu ao lado da cova em que o cracão foi inumado para agradecer aos presentes o comparecimento e a solidariedade. Da tribuna improvisada Fernando Mata Rato anunciou que o troféu, "desde já ofertado por este parlamentar para o campeonato de 2001, da 3ª divisão do campeonato paraense, receberia o nome de Lourenço Júnior, como homenagem póstuma ao atacante falecido". Com o discurso apoteótico do edil, o padre Nilton Nogueira deu por encerrado a cerimônia fúnebre e a multidão começou a dispersar-se do cemitério, ancorando nos botecos adjacentes ao cemitério. Jamais o Guamá assistiu um enterro com tamanha mobilização popular como o do operário Lourenço Júnior. Firmina perdeu o noivo, o Aritana ficou desfalcado de seu capitão, com excelentes perspectivas de ser contratado por Remo, Paissandu ou outro clube grande. A construção civil não contou mais com o esforço do mais aplicado de todos os trabalhadores que labutavam sob a orientação caxias de "Gato". "Saquinho" perdeu seu irmão de copo. Nunca mais o campeonato da 3ª divisão contou com um craque como Lourenço Júnior: portador de dois canhões nos pés.

IVANILDO ALVES
Enviado por IVANILDO ALVES em 26/01/2008
Código do texto: T833854