O vento encantado

O VENTO ENCANTADO

Tem muita estória, Cirilo, acontecida nesta região das ilhas, que se eu te contar tu vai pensar que é prosa, ou potoca para distrair o tempo enquanto o peixe não vem e a gente fica na espera na montaria. Este mangue guarda muitos mistérios, que só quem convive com ele sabe. Outro dia, compadre Osmarino e este unzinho aqui, passaram maus momentos com a lufada do vento encantado, que alguns dizem que é o arroto da cobra grande e a velha Corina diz que é o sopro de Anhangá, o espírito do mau, que vive na mata desse mangue para atormentar a vida do cristão. Esta estória, Cirilo, é apenas mais uma de tantas estórias contadas pelo povaréu que habita esta banda.

Nesse dia, no dia do acontecido, compadre Osmarino já tinha puxado duas pêras de caranguejo e eu outras duas, porque era soatá e os bichos saíam do buraco em busca das condessas. Não precisava meter a mão no buraco. Era só ajuntar e colocar no paneiro de guarumã, que o compadre teceu para prender os caranguejos. Com a bóia garantida naquele dia, nós peguemos o rumo da vila, porque tinha um estirão do mangal até à casa da comadre Genoveva, mulher do compadre Osmarino e o sol estava a pino. Para esquentar o sangue e ajudar a enfrentar a lama do mangal só restava uma talagada da cachaça boa de abaeté. O compadre Osmarino bebeu no gargalo sua talagada e me passou a garrafa para que eu também pudesse beber a minha dose.

Nem bem a cachaça se aninhou na tripa, eu e compadre Osmarino sentimos a corrente forte de vento que vinha do centro do mangal, fazendo um rego fundo na lama do mangue. Era um vento frio, como se viesse das profundezas do rio, prenunciando desgraça, agourando os viventes, arrancando árvores pelas raízes, causando calafrios no corpo e na alma. Eu por esperteza fiz logo o sinal da cruz, que foi o que afastou o vento encantado para longe. Ele tomou outro rumo, afastou-se para dentro das roças de milho que margeiam o mangal, fazendo ondas entre as touceiras de milho. O compadre Osmarino, coitado, não teve a mesma tigueza. Homem de fé duvidosa, ele se esqueceu de realizar a benzedura santa, se imunizando contra a passagem do mal espírito. Depois da passagem do vento encantado, o céu azul e claro, com sol a pino, ficou tomado por nuvens negras, caídas do céu em fortes bátegas. Trovoada forte, com relâmpagos, como se fosse o dia do juízo final. Mais que depressa eu tomei as minhas pêras e o compadre Osmarino tomou as dele e partimos pelo caminho de chão, pisando a lama com os pés descalços, deixando rastros fundos no lamaceiro feito pela chuva.

Depois de três léguas a pé, com os côfos cheios de caranguejos - roteiro fácil para mim e para meu compadre, acostumados a caminhar longas jornadas, atrás de caça, passando dias dormindo em mutá feito de varas, aguardando a boa caça - este um aqui percebeu que o compadre Osmarino necessitava de ajuda, para carregar os caranguejos, pois ele caminhava com dificuldade. Não era o efeito da birita, porque o compadre tomou apenas uma dose. Dupla é bem verdade, mas insuficiente para deixar meu compadre tonto. Logo ele, acostumado a passar a noite bebendo. Logo o compadre Osmarino que se gabava de secar uma garrafa de "abaeté", tomando a cachaça pelo gargalo, retirando a garrafa da boca apenas para respirar e cuspir. Uma garrafa inteira, inteirinha. Não era uma dose dupla que ia deixar meu compadre embriagado. Havia alguma coisa errada com ele, já que durante a caminhada por debaixo da chuva forte, o compadre recusou duas vezes a garrafa, que este seu compadre generosamente lhe oferecia, para enfrentar a chuva grossa, que o vento encantado deixou em seu rastro sombrio. Ele, meu compadre, tinha direito a metade da cachaça. Ele contribuiu com a metade do dinheiro para comprar a bebida - sempre necessária - na taberna de Bento e de Nazaré, os únicos comerciantes com taberna sortida no arruado. Na terceira vez que lhe passei a garrafa, depois de retirar a rolha de caranã e o compadre recusou, aí eu me preocupei. Meu compadre não era desses de recusar um bom gole de abaeté pura. Pelo contrário, se alguém em uma rodada, demorasse a lhe oferecer a garrafa, meu compadre xingava logo a mãe do desmazelado, que é a coisa mais sagrada que tem na face da terra. Mas naquela hora, o compadre andava devagar, uma moleza, sem nenhuma sustança, como se estivesse com alguma enfermidade, como se fosse mulher parida. Eu desconfiei, já que o compadre não era homem de recusar cachaça, principalmente comprada com o seu suor e nem de se queixar de doença, pois mais difícil que fosse seu estado de saúde ele agüentava calado. Cabra macho, o meu compadre.

Peguei no ombro do meu compadre para saber o que ele tinha e senti sua pele ardendo em febre. Quarenta graus ou mais de febre. Trôpego ele pediu para que nós parasse já perto da casa de Genoveva. Eu animei meu compadre para continuar a caminhada, porque já estava perto do quintal da casa dele. Ele me atendeu, mas não deu mais conta de carregar seus côfos. Eu aliviei o peso do meu compadre e ele pôde caminhar até na entrada da cozinha de seu barraco, onde caiu e foi carregado para a rede, pelo negro "Dinho", enteado dele e por Genoveva, tremendo e gemendo, com fortes dores na nuca.

Cirilo, pela benção de Deus, o compadre Osmarino passou onze dias, ardendo em febre, que não apartou do corpo dele, desde o dia em que o vento encantado passou por nós, arrancando árvores, deixando sulco na lama do mangal, destruindo os roçados de milho e mandioca. Meu compadre ficou mofino, não comia nada. A cuia de caribé que Genoveva, com esforço, fazia ele beber, era bater no bucho e voltar. Médico? Isso é coisa de cidade grande, Cirilo. O último médico que apareceu no arruado foi em 54, por ocasião da eleição do general Barata. Ele trouxe um comando médico que receitava remédio pra lombriga, quinino para os maleiteiros e arrancava os cacos de quem padecia de dor de dente. Meu compadre Osmarino tinha que se conformar com os remédios caseiros, ungüentos que Genoveva preparava com casca de pé de pau, tencionando curar o marido e com as rezas que as mulheres faziam. Não fosse o pai Vicente - que muita gente fala mal, dizendo que o pobre do velho tem um trato com o diabo e que não gosta de mulher - e o compadre Osmarino hoje não estava aí, vendendo saúde e bebendo suas doses.

Numa sexta-feira de agosto, pai Vicente entrou na casa de Genoveva. Ela teve que chamá-lo, diante do desespero de ter que perder o marido ainda na sustança de seus trinta anos. Era a única e última esperança para Genoveva e o compadre Osmarino, já que as rezas e orações dos cristãos não deram certo e o compadre definhava, quase moribundo. O velho feiticeiro, misto de pajé e pai-de-santo, temido por todos do arruado, pelo poder que tinha e pelas mandingas que preparava, pediu para ficar só com o enfermo. Invocando os espíritos da floresta, pai Vicente ficou autuado, incorporando várias entidades da mata. Incorporado, ele passou a conversar com os espíritos encantados. A primeira entidade incorporada em pai Vicente foi a cabocla Mariana, depois seu Cobra Coral, Zé Tupinambá, a cabocla Moana, o índio Caiapó e por fim seu Pena Verde, o pai da floresta. Com sua autoridade de morubixaba, seu Pena Verde exigiu um cachimbo de fumo de rolo que acendeu com um tição da tacuruba que ardia no canto da choupana coberta com palha de açaí e de chão batido. Genoveva atendeu imediatamente o pedido do encantado. Seu Pena Verde exigiu de seu cavalo uma dose de cachaça, servida na cuia. Ele bebeu a aguardante gostosamente, rindo com seu riso de trovão, gargalhando na voz de seu cavalo, dando fortes baforadas no cachimbo de embaúba. Seu Pena Verde tragava a fumaça e a expirava pela boca, sobre o rosto do compadre Osmarino, que parecia despertar de um sono letárgico, sentando-se na rede, tecida por Genoveva com fibra de malva, que lhe servia de leito, depois de adoecer com a enfermidade aplicada pelas entidades da floresta, na passagem do vento encantado. De repente seu Pena Verde, passou a cantar uma canção de índio, que o compadre Osmarino ouvira há muitos anos, que Jaci, a sua mãe índia, cantava para ele dormir, em sua infância, quando o arruado era ainda uma taba de índios. Depois de cantar, seu Pena Verde aplicou uma violenta mordida nas costas de compadre Osmarino, que não se conteve de dor, emitindo medonho grito, que assustou todo o arruado.

Égua, Cirilo, sem sacanagem, até hoje quando lembro o grito medonho do compadre Osmarino, me dá calafrio e as pernas bambeiam. A entidade, na mordida aplicada nas costas de compadre Osmarino, retirou uma cabeça de aracapuri, o peixe amaldiçoado, usado em trabalhos de quimbanda, que as entidades do mal aplicaram no corpo do compadre Osmarino na passagem do vento encantado. Seu Pena Verde explicou que o vento encantado é constituído por uma legião de espíritos da floresta transformados em vento e que afetam o cristão, quando ele não tem a sabedoria de fazer o sinal da cruz diante do mal. A cabeça do peixe amaldiçoado foi escarrada por seu Pena Verde na mesma cuia que ingerira a cachaça. Com outra cuia cheia da pinga boa de abaeté, seu Pena Verde lavou a boca, gargarejando e sorvendo a bebida, estalando a língua, depois de engoli-la. Após beber uma garrafa inteira de cachaça, seu Pena Verde foi embora e seu cavalo ficou dormindo em uma cadeira de cipó. Pena Verde voltou para seu reino na selva amazônica, nas nascentes dos rios onde ele ergue sua taba, onde vive na companhia de outros encantados. Ele somente se afasta de seus domínios quando é invocado para fazer justiça. Quando Pai Vicente acordou, o compadre Osmarino já estava de pé e pedia comida, bonzinho como se não tivesse já com o pé na cova. Meu compadre exigiu logo da comadre Genoveva um prato com carne de tatu fresca, servida com farinha d'água e mandioca, que ele comeu e repetiu.

Cirilo, tu pode até não acreditar no que eu tô te relatando, mas este cristão assistiu a cura do compadre Osmarino, feita em questão de minutos por um espírito da floresta, que muita gente não põe fé.

Agora, Cirilo, o compadre Osmarino aprendeu a lição. Ele não pode se deparar com uma lufada de vento que ele faz logo o sinal da cruz. Por mais que seja uma simples brisa primaveril, que meu compadre procura logo se imunizar com a benzedura santa, contra as entidades do mal. Sabe como é Cirilo, gato escaldado tem medo de água fria.

IVANILDO ALVES
Enviado por IVANILDO ALVES em 31/01/2008
Código do texto: T841486