Calibre 38

CALIBRE 38

A única certeza da vida é a morte.

(Provérbio popular).

José Augusto Carvalho

À falta de um grito, morre um burro no atoleiro. Nem sempre a gente sabe que faz um jirau quando acha que está fazendo um giro. Pega pelos cabelos a oportunidade de um negócio e acaba pegando gato por lebre, na crença de que agiu direito. Mas nem a todos é dada a chance de prever o futuro. Quem pode saber do que é capaz, num repente de impulso impensado? Que doutor na arte de pontuar pode saber que vírgula pôr numa frase ainda não dita?

Não gosto de armas, mas, quando vi aquele Smith & Wesson 38 de cano niquelado com delicados desenhos gravados em sulcos e coronha de madrepérola, na mão do Belisário, apaixonei-me de imediato. Belisário, meu vizinho, queria entregá-lo às autoridades, aderindo à campanha de desarmamento. Ele receberia no máximo o equivalente a cem dólares por uma preciosidade que deveria valer no mínimo quinhentos. Tentei convencê-lo de que para mim aquela peça — sem as balas — serviria apenas de enfeite ou de peso de papéis no meu escritório. Sou pacífico. Não teria coragem de usar uma arma contra uma pessoa. E Belisário sabia disso. Eu seria capaz de dar até mil dólares pela arma que nunca vi tão maravilhosa assim, nem mesmo nos meus tempos de recruta, no tiro-de-guerra, quando fui encarregado de limpar a coleção de armas portáteis de todos os tipos e tamanhos que o coronel Azevedo mantinha dependuradas nas extensas paredes de sua sala de estar.

A primeira vez que me apaixonei por uma arma de fogo foi exatamente na casa do coronel Azevedo: uma garrucha de carregar pela boca, de dois tiros, dois canos e dois gatilhos, parecida com essas pistolas de piratas de filmes de aventura. A arma antiga tinha a coronha de ouro, trabalhada com figuras de alto relevo. Mas não era tão bonita quanto o Smith & Wesson 38 de cabo de madrepérola que meu vizinho Belisário iria trocar por bagatela numa delegacia qualquer, só para cumprir sua parte na campanha do desarmamento.

Não consegui entender, na época, como o coronel Azevedo tivera a coragem de gastar metade do seu soldo de um mês inteiro na compra de um bacamarte do século XVII, de cano meio enferrujado. Era uma espécie de espingarda grossa e curta, de cano alargado na boca, como uma corneta. Mas entendi depois esse capricho dele, quando vi aquele Smith & Wesson 38 na mão do Belisário. A cada quem sua ambição: não é o tamanho da fome que dá valor ao pão?

Eu invejava o meu vizinho Belisário: tinha uma dezena de carros antigos estacionados sob um galpão do imenso quintal de sua casa elegante, um sobrado de mais de 800m², em cujo terraço, ao abrigo de qualquer olhar indiscreto, havia uma piscina de 25m. de extensão por seis de largura, com quatro metros de profundidade maior e oitenta centímetros de profundidade menor, em declive.

Mas Belisário me assegurava: eu não tinha razão de invejá-lo, porque eu tinha uma mulher tão bonita quanto a dele e, de quebra, quatro filhos, todos homens, e um bom emprego que, se não me permitia luxos, rendia um bom salário que sustentava com dignidade minha família e os meus lazeres de classe média. Belisário era de ir todo ano à Europa ou aos Estados Unidos, dependendo do tamanho e da época das férias, e, quando voltava dessas viagens, sempre me convidava e à minha família à casa dele, para ver o vídeo de suas andanças. Como não invejá-lo?

Mas ele dizia que sua felicidade era uma gota diante do mar que ele imaginava ser a minha, porque seu maior desejo era ter filhos. Não queria adotar, porque sua Marina queria ter a experiência de gravidez e sentir o prazer da maternidade parida. Mas Belisário não podia dar-lhe esse prazer, porque era estéril.

Quando insisti para que ele me vendesse o Smith & Wesson 38 de cabo de madrepérola, ele me sugeriu uma troca inusitada: o revólver pelo meu sêmen. Não se faz fritada sem quebrar ovos. Ele queria que eu desse o meu sêmen à mulher dele, num consultório médico. Ele não queria o esperma de qualquer um, de um desconhecido, de ignorada saúde genética ou de hereditárias insanidades físicas e morais. Não queria ser pai de um degenerado. Garanti-lhe que poderia confiar num banco de esperma, sem precisar da minha contribuição. No íntimo, eu não queria passar pelo vexame da auto-satisfação erótica, não queria ser tomado por um quiromaníaco, daí minha recusa, daí meus argumentos a favor dos bancos de esperma. É claro que, se eu depositasse meu sêmen diretamente nos devidos e naturais receptáculos, eu até que poderia aceitar, porque Marina era de deslumbrante beleza, mas essa era uma proposta que eu nunca poderia fazer ao Belisário, a menos que quisesse, no mínimo, perder um amigo, ou ter a cara quebrada no sentido próprio e no sentido figurado. Tentei garantir ao Belisário que as coisas hoje são feitas com cuidado: que ele procurasse mesmo um banco de esperma, sem medo, sem problemas. Mas – Belisário refutou – que experiência tinha eu do amém da missa alheia? Como saber que o bebê que nascesse assim teria pedigree para sossegar os pais? Ele manteve-se irredutível.. Conhecia-me há muito tempo, conhecia minha família. A coisa ficaria em segredo entre nós três, entre mim, ele e Marina, a mulher dele. Ele não queria nem mesmo que a minha mulher Susana soubesse da história, porque poderia haver o risco de meus filhos acabarem sabendo que tinham um irmão na casa do vizinho. Seria chato para ele, comprometedor para mim, inaceitável para Marina.

Relutei muito em aceitar. Mas aquele Smith & Wesson 38 de cabo de madrepérola era paixão à primeira vista. Pedi-lhe tempo para pensar. Não fosse ele entregar a arma às autoridades... Não seria pela falta de um revólver que a campanha do desarmamento se frustraria...

Belisário deu-me um prazo de dois dias. Convidou-me a dar-lhe a resposta durante um churrasco na casa dele, no terraço onde havia a piscina em que Marina costumava banhar-se nua, na certeza de não ser olhada a não ser pelo marido. O que achei um desperdício de beleza. Mulher com tantas exuberâncias deveria ser exposta à visão coletiva, mas é natural, embora desumano, que todo marido queira preservar apenas para si próprio o usufruto de um privilégio desses...

Durante o churrasco, o assunto voltou à baila: se eu estivesse disposto a ceder-lhe à esposa o meu esperma, ele seria feliz de ser pai de uma criança mental e fisicamente sadia, como os meus quatro garotos. Não é do meu feitio o prazer solitário, ainda que com a ajuda de alguma mulher ou por uma causa nobre, mas ele voltou a exibir-me o Smith & Wesson 38 de cabo de madrepérola com um sorriso desafiador no olhar malandro direcionado para o corpo deslumbrante de Marina, secando ao sol, num minúsculo biquíni. Parecia dizer-me que uma beleza dessas precisa perpetuar-se na sua prole.

Com palha e milho leva-se o burro ao trilho. Num gesto impulsivo, a denotar minha fraqueza, tomei-lhe o revólver da mão, verifiquei que estava carregado, e suspirei, vencido: trato feito. É pela gula que se pega o guloso. Afinal, no íntimo, pelo menos, eu me sentiria orgulhoso de um filho biológico já nascido de bunda pra lua, rico e fadado ao sucesso. Foi esse o argumento que menti para mim mesmo, tentando livrar-me da corrupção de que minha consciência me acusava. Afinal, eu estava sendo comprado, ia fazer o que me desagradava duplamente – pelo ato solitário dos onanistas e pelo segredo que eu guardaria até da minha própria esposa, a quem havia jurado fidelidade no para-sempre diante do altar. Mas aquele Smith & Wesson 38 de cabo de madrepérola e cano niquelado com desenhos gravados em sulcos era uma tentação...

Durante um dos dias férteis de Marina, fomos ao ginecologista já previamente advertido das intenções de Belisário. Fiquei com vergonha quando Belisário me entregou uma revista pornográfica de origem sueca para que eu “trabalhasse” à pala das fotos eróticas das louras espevitadas, mas o que é que não se faz por um amigo ou por um revólver 38 de cabo de madrepérola e cano niquelado com desenhos gravados? Depois de algum tempo, pude entregar o produto do meu exercício solitário à assistente do ginecologista, que já tinha a paciente preparada para receber minha oferta.

Mas a experiência não deu certo. Dois meses depois, fizemos nova tentativa, desta vez com mais calma e sem outro Smith & Wesson 38... Fiquei meio cabreiro, não fosse a coisa virar rotina. Mas ainda não fora dessa segunda vez que Marina engravidara.

Na terceira vez, o ginecologista decidiu mandar meu sêmen a um laboratório, a fim de que se fizesse o espermograma, porque imaginou que talvez houvesse problema com a mobilidade ou com a quantidade dos espermatozóides. O resultado foi duro e abateu-me de vez: eu também era estéril.

Assim que recebi a notícia, falei com Susana sobre o fim do nosso casamento. Ela demorou a entender como eu havia sabido de sua traição, e sugeriu-me, em sua defesa, o exame de DNA. Belisário exigiu que eu lhe devolvesse o revólver. Deixei de olhar meus filhos com o carinho de antes. Não consegui encarar de novo a minha mulher. Há certas coisas assim que nem um espelho polido: pra se sujarem basta o bafo.

O divórcio saiu três meses depois que o exame de DNA comprovou que nenhum dos meus meninos era meu filho. Não quis saber o nome do pai deles... Arrependo-me apenas de ter amado Susana... Mas quem pode mandar no coração? Eu ainda gostava dela, ainda a amava, apesar de tudo. E foi por orgulho, apenas por orgulho, que lhe propus o divórcio. A proposta custou-me o mundo que eu construí em torno da minha família ou do que acreditei ter sido a minha família, pelo muito que a amava (e ainda amo), mas bem sabe o pé onde lhe dói o calo...

Assim que o divórcio saiu, peguei o Smith & Wesson 38 de cabo de madrepérola e cano niquelado com desenhos em sulcos, com a intenção de devolvê-lo ao Belisário, que já me enchia a paciência com a cobrança. Mas, na caminhada até a casa dele, pensei que, afinal, a culpa da dissolução da minha família era dele. Eu era feliz, eu me julgava pai de quatro meninos, eu achava que minha mulher era só minha... Que importa se a felicidade é fruto da ignorância? O que importa é que eu era feliz. Pelo menos eu achava que era feliz. E foi a idéia besta de Belisário que acabou com a minha vida.

Quando cheguei à casa dele, ele se preparou para receber de volta o revólver que eu trazia na mão. Não resisti e atirei.

Depois, sentei-me no chão à espera de que Marina aparecesse e chamasse a polícia.

José Augusto Carvalho
Enviado por José Augusto Carvalho em 05/02/2008
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