Estada em Porto Alegre

Eu estava sentado na poltrona apreciando a brancura da fumaça que baforava se dissipar no breu. Pouco importaria descrever o quarto, posto que a luz era pouca: somente a que, vinda dos letreiros da rua, atravessava a janela e dava algum contorno às minhas pernas, cruzadas, e à cama. Era noite de quarta-feira e fazia menos calor que o usual. Tinha ao alcance da mão uma garrafa de vinho, mas bebia água, muita água. Do outro lado da rua podia-se ler sixsixsix lounge, que piscava frenético em azul, às vezes vermelho. Na parede, abaixo da janela, minha cama reluzia vultos em azul, às vezes vermelho.

Como disse, a luz era pouca, e não fosse aquela velha necessidade de poder que acompanha toda a humanidade em sua jornada, nada justificava tê-la vendado os olhos. Parecia inofensiva com os punhos presos às grades da cama e as tarjas sobre os olhos e boca. À distância eu percorria seu corpo alvo, quase sem cor, como ave de rapina que sobrevoa a presa, de pernas cruzadas e cigarro entre dedos. O silêncio era absoluto, só interrompido pelas minhas baforadas e pelas suas inúteis tentativas de fuga, que se tornavam cada vez mais raras.

Silvia sempre se gabara da sua audácia e amoralidade, e talvez tenha sido este o motivo principal da minha cisma com ela. Certa vez, lhe contei sobre meu plano e ela, rindo, certamente não levando minhas palavras a sério, disse-me que iria adorar. Eu gosto de jogos, sempre gostei. Mas também sempre me pareceu interessante dar ao “outro lado” a oportunidade de se pôr passo à frente. Não por julgar que tal ato seja nobre, ou coisa parecida, mas por aumentar os riscos. Nunca neguei o prazer da frase “eu avisei”. Como você pode conferir, eu assumo, sou um sujeito vaidoso. Ela, que rira antes do meu intuito, naquele momento não ria mais.

Compreenda, leitor, não se trata do vosso escritor um sádico, ou coisa que valha. Pelo contrário. Entendo que poucas pessoas podem experimentar na vida um momento de arrebatamento, um momento, ínfimo em tempo que seja, de sublimação, de exaltação dos sete sentidos, de completude do espírito. Eu não subjugava Silva naquele instante, o que fazia era dar-lhe a chance do grande gozo. Tratou-se ali de um opus magnum em que - para que não penses que sou demasiado vanglorioso - era ela a protagonista. Eu, o artista que admira sua obra com orgulho, e ela, o que fora Monalisa para Leonardo, Lusíadas para Camões, Fausto para Goethe, O Aleph para Borges,…

Eu me aproximei da cama. Ela percebeu. Lembro-me desta parte com detalhes. Suas pernas chocaram-se deslizando sobre o lençol, o que só a tornava ainda mais bela. Suas coxas, corpulentas, abundantes em carne, com quase imperceptíveis fios negros, uns aqui outros acolá, me fizeram salivar como um animal que passa fome. Quase desisti da minha empreitada, tamanho o prazer em vê-la daquela perspectiva. Por alguns segundos permaneci estático, com as canelas fazendo peso no ferro da cama e o joelho direito amaciado pelo colchão. Um arrepio me ocorreu, subindo pela coluna até à nuca, como se o próprio Deus houvesse me soprado as costas. Silvia se debatia por sentir minha presença, mas quanto mais se mexia, mais meus poros se arrepiavam. Nos meus olhos, algumas lágrimas me dificultavam a visão, mas eu não as limpei, os braços não se moviam. Provavelmente eu sorria.

Quando encostei a tesoura na sua perna, ela, para minha surpresa, pausou os movimentos. Imaginei o frio das lâminas de inox escorregando pelo quente da pele, e então a passei com mais suavidade, de modo que as pontas desenhassem formas imaginárias e casuais pelas suas coxas nuas. Não contive a curiosidade, e enquanto subia com a ferramenta, percebi que se arrepiara também. As pontas das lâminas, não tão afiadas, tocaram a virilha de Silvia, e um suspiro. Por algum momento, senti que não mais controlava o destino da minha prisioneira, mas que era ela quem me guiava. Neste mesmo momento, percebi em mim alguma raiva, mas não parei para pensar sobre. Cortei o tecido da calcinha, fazendo com que a gélida lâmina passasse propositadamente pelo seu sexo.

Ouvi que ela tentara falar alguma coisa. Não houve como saber o quê, mas foi o suficiente para que eu interrompesse o passeio. Estiquei o corpo e a olhei. Olhei para a cama, para os travesseiros e o lençol. Eu não os trocava havia mais de semana, e o pensamento de que o seu pavor, a sua agonia, e agora, a sua loucura - pois certamente sentia-se confusa com o próprio prazer - se passavam sobre os meus cheiros, os meus suores, exatamente no lugar onde descanso o corpo e invento insanidades me agradou, me agradou muito.

Andei até a mesa e peguei o vinho. Era tinto, como preferia minha presa, e um intenso cheiro de álcool saia dele. Dei um gole e o ofereci a ela, que nada disse, como era de se esperar. Me aproximei da cabeceira dizendo em voz alta 'bebendo, Vida, recusamos o sólido. O nodoso, a friez-armadilha de algum rosto sóbrio, certa voz que se amplia, certo olhar que condena o nosso olhar gasoso. Então, bebendo?' Encostei a boca da garrafa no seu rosto de menina e falei em tom sério: a Vida é líquida. Então, bebendo? Ela permaneceu imóvel.

Vou vos poupar dos detalhes mais sórdidos do nosso jogo, até porque a memória me faltaria e não quero fazer destes escritos uma ficção. Verdade que dei a Silvia poucas possibilidades de ação, mas não pense que agi ao meu bel prazer. Dialogamos, sim, conversamos e muito, embora eu a tivesse mantido com venda sobre os olhos e os punhos no gradeado. A certa altura da madrugada, livrei sua boca a fim de que pudesse compartilhar comigo o vinho. Ela sequer gritou. Nenhum grito, nenhuma palavra, doce ou áspera. Gostei disso nela, embora estivesse esperando reação diferente. Silvia tinha lábios grossos e avermelhados, não poderia me negar o prazer de vê-los, por mais que calados, funebremente calados.

Durante cerca de uma semana eu cuidei de Silvia com zelo que surpreendeu a mim mesmo. Lhe dei comida e bebida. Cuidei das suas necessidades orgânicas, dei banho, e também muita atenção e carinho. Houve vezes que, me recordo, passara horas deitado do seu lado, acariciando sua pele, seus cabelos finos e dizendo como era formidável a sua beleza. Cheguei a presenteá-la com um livro de poemas da Hilst. Li e reli insistentemente uma série deles para ela, e notei que apreciava um em especial: Do Desejo. Este eu citava cuidadoso com a pronúncia das palavras e as curvas das vírgulas. Este eu já tinha de cor, e o recitava banhando seu corpo com vinho.

Desde então nunca mais estive em Porto Alegre, e não mais vi Silvia. Escrevo este relato, a partir do que a memória me permite pois, já se foram alguns anos, e não são poucas as vezes que acordo suado, no meio da noite, com a sua voz rouca nos ouvidos e o desenho dos seus olhos na minha frente. Justamente sua voz, que excetuando poucos instantes de tosse, não ouvira durante todo aquele tempo, e seus olhos, lindos olhos pequenos, quase nipônicos, que mantive sob venda. Talvez agora eu consiga exorcizá-los da mente e talvez agora encontre alguma paz nos sonos.

Diogo Nunes
Enviado por Diogo Nunes em 03/12/2008
Reeditado em 06/12/2008
Código do texto: T1316827
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