O LIVRO

O LIVRO

Josa Jásper

Chovesse ou fizesse sol, vovó nos visitava, quando éramos crianças. E, chovesse ou fizesse sol, estava com sua linda sombrinha azul, aberta.

Eu e meus irmãos já sabíamos qual seria sua primeira pergunta:

- Já leram "O LIVRO" hoje?

Também sabíamos que se referia à Bíblia Sagrada. Esse livro vovó não admitia que fosse precedido de um mero artigo indefinido, sob pena de sacrilégio, uma vez que se tratava da Palavra de Deus, inconfundível com qualquer outra obra literária jamais escrita! Quando, por descuido, deixávamos a Bíblia cair das mãos, vovó nos ensinava a beijá-la como sinal de respeito. Também dizia que Deus se obriga ao cumprimento das promessas registradas em Seu Livro, bastando que lhe apontássemos o registro, até que furássemos a página, pela aposição repetida do dedo, caso fosse necessário.

Assim, "O LIVRO" foi minha primeira cartilha, pois, de fato, aprendi a ler na Bíblia. O primeiro trecho lido, recordo bem, foi o Salmo 23:1 "O Senhor é o meu pastor e nada me faltará".

A infância ficou para trás, mas a fé nas palavras do Livro permaneceu. Isto me foi de grande valia quando, há 12 anos atrás, passei por um sério problema, de ordem conjugal, por inveja de uns e maledicência de outros, inimigos astutos e poderosos que encontrei entre os próprios amigos. Engendraram torpes calúnias e distorceram fatos perfeitamente justificáveis.

Soube da decisão de minha mulher através do seu advogado. Preferiu não discutir comigo sua "irrevogável" decisão. Saí da entrevista com ele arrasado e - pior ainda - sem a mínima noção do paradeiro de minha mulher e de nossa filha menor.

Nem sei como cheguei em casa àquela noite! Perdera-me em mim! Vaguei pelas ruas até cansar! No fundo, admito que tinha medo de encarar o apartamento vazio... Quase não me sentia: era um pensamento fixo ambulante!

Meu estado de nervos não impediu, felizmente, que eu achasse meu prédio e o buraco da fechadura, onde a chave relutava entrar. Só que saltei do ônibus dois pontos depois! Entrei. A solidão doía! Liguei e desliguei a TV por várias vezes. Não me fixava em coisa alguma, nem na programação, por melhor que fosse. Estaria enlouquecendo? Não...não era isso. Reconheci que minha mente estava ancorada em algo mais profundo e necessário: a reconquista da esposa! Mas eu diria que era uma fixação dinâmica. Meu alvo desdobrava-se em quadros múltiplos, rápidos e vívidos, que focalizavam minha vida por inteiro! Nesse percurso febril, cheguei à infância e... pronto! Lá aestava ele, "O LIVRO", com suas páginas amassadas e sua capa preta, , aberto, nas mãos da vovó, com sua sombrinha azul pendurada no braço. Ela tinha medo de esquecê-los na saída e dificilmente os largava...

"O Livro?!" Como não pensei nele antes? Se o problema de reconquista da minha esposa de algum modo afetasse a Deus,a resposta deveria estar ali! Não era "O LIVRO" a Palavra de Deus? E não era o casamento uma idéia Sua?

Nas noites seguinte, aproveitei a insônia para mergulhar nas páginas do Livro. Que Livro maravilhoso! Dormia, agora, entre as orações de Davi, as lamentações de Jeremias, os cantares de Salomão os sofrimentos de Já e os ensinos do Evangelho. Era particularmente difícil dormir sem minha esposa, pelo hábito que tínhamos de sempre adormecer de mãos dadas. Só o consolo do Livro me brindava com a sono, sempre ajudado por um pijama sujo de mulher que a saudade me fazia enrolar no rosto...

Identifiquei-me tanto com os Salmos de Davi , que me parecia ter escrito o que ia lendo: "Todas as noites faço nadar a minha cama. Molho o meu leito com as minhas lágrimas" (Sl 6:6). Outras vezes, sentia-me como Jó: "Eis que o que eu temia me veio e o que eu receava me aconteceu" (Jó 3:25). Convenci-me de que não se pode desintegrar um homem íntegro. Eu estava com Deus e permanecia atento ao Livro, batalhando por minha vitória: "Se permanecerdes em Mim e as minhas palavras permanecerem em vós, pedireis o que quiserdes, e vos será feito" (Jo 15:7).

Só faltava achar alguma promessa específica, onde eu pudesse concentrar toda a fé que me restava para exigir a ação de Deus, como ensinava vovó. Achei-o no Salmo 68:6 "Deus faz com que o solitário viva em família, liberta aqueles que estão presos em grilhões ; mas os rebeldes habitam em terra seca". Minhas preces teriam, a partir de então, o alicerce de uma clara promessa do Livro! Orava sempre apontando para aquele infalível versículo bíblico: "Eterno e soberano Pai, lembra-te de que aqui está escrito que Tu fazes com que o solitário viva em família. Sinto-me só. Traz minha família de volta, em nome de Jesus! Amém!" Deu resultado: a esposa voltou! Nem precisei furar a página do Livro com o dedo, no caso extremo sugerido por vovò...

Deixe-me resumir como foi. Em 15 dias ela deveria trazer-me a filha para passar o final de semana comigo, por imposição judicial. Não esperei. Convenci meu advogado a entrar em relação com o advogado dela, marcando um encontro entre nós dois. Orei o Pai Nosso junto com ela e ainda a convenci a prestar atenção em algumas cartas de amor que me escrevera. Li-as com emoção profunda e sincera. Fiel aos ensinos do Livro, asseverei a ela que o amor jamais acaba (I Co 13:8). "Pois o meu acabou", disse-me ela. Pedi, não sei porquê, que o repetisse, olhando para o fundo dos meus olhos. Repetiu. Notei, contudo, que não me encarava direito. Suas pupilas dançavam. Vi o brilho triste de uma gotinha de lágrima, teimosa por não cair, no canto interno do seu olho esquerdo. Reluzia como um "SIM!" disfarçado. Se algum mérito eu tinha, certamente um deles era o de não crer em verdades proferidas no ardor da ira. Surpreendi-a com um firme e pausado "N-Ã-O A-C-R-E-D-I-T-O !" e fui-me embora.

Cada encontro tinha aa sua dramaticidade própria. Certa vez, busquei-a entre seus amigos. A amiga piscou um olho para mim e disse bem alto, enquanto apontava para uma porta fechada: "Ela não está!" Entendendo o "teatrinho", também falei alto coisas que desejei que ouvisse; até cantei uma canção que compus para ela... Outra vez, fez-me esperar quase uma hora junto ao "Relógio das Flores", sentado

num banco da praça deserta. Quando, já desiludido, reclamava para o Autor do Livro (vovó dizia que Deus era o Autor; os homens, simples escritores do Livro), eis que ela surge por detrás, tapando-me os olhos com as mãos... Estava linda! Naquela noite, gastei tudo o que tinha num jantar de gala, na suíte presidencial de um hotel de luxo em que dormimos, embora desperdiçássemos a noite com inúmeras discussões insensatas...

Bem... Não castigue mais este sensível escritor com a lembrança daqueles dias tão difíceis, senão estes escritos acabam se tornando um livro... o mais triiste deles, na maioria das páginas!

Dois meses e vinte-e-dois dias depois de sua partida, minha esposa estava em casa! Amamo-nos mais do que nunca, convictos de que nosso amor tornou-se imbatível, após as duras provas por que acabara de passar! Sou um vitorioso! De fato, nunca me senti totalmente abandonado. Havia uma Presença Maior comigo. Por vezes, tive o privilégio de senti-la bem juntinho a mim...

Eu tive, além do mais, uma avó que, como ninguém, soubera firmar a minha fé em Deus. E, com toda certeza, ainda tinha outra coisa a mais: eu tinha "O LIVRO"!