Este é o meu grito desesperado!

Este é o meu grito desesperado! Não quero falar, não quero conversar, não quero discutir: quero um aparelho que mande os sentimentos diretamente para outra pessoa; um aparelho que drible o espaço vazio da fala, que burle o aparelho da linguagem: que faça algo passar.

Dupla necessidade, portanto, deste aparelho: o estabelecimento de uma ligação sentimento-corporal (não mental, a mente não existe), e uma propriedade que burle o sentido até o que Barthes chama de rumor da língua: um espaço onde os estereótipos da língua, seus preconceitos, são deixados para trás, enganados, para deixar ouvir um não-sentido que seja criador.

Mas para quê tal aparelho? Para fazê-la entender, sempre para fazê-la entender. Entender que as possibilidades de vida fora de sua órbita e de seu sistema são tão escassas quanto a possibilidade de vida em outros planetas. Entender que essa dor que agora me oprime, que aperta minhas entranhas insidiosamente com a mão gelada da frustração e da impotência possa ser sentida por ela.

Nos entendamos em um ponto pelo menos: não quero que sofra, não quero que seja compassiva: quero que seja resgatado qualquer réstia de amor que ainda sobrou. Quero uma compreensão total e superficial, não profunda: quero que a beleza do brilho da superfície seja também o brilho de sua compreensão. Que ela toda possa compreender, não com o cérebro, órgão tão complexo: quero que compreenda com a ponta dos dedos, com os cílios; quero que compreenda num arrepio em sua espinha, que venha desde a base de sua maravilhosa bunda, suba por suas costas sensuais e suaves como pêssego e terminem em sua nuca insinuante e perfumada. É esse tipo de compreensão que quero: instantânea, não racional e superficial.

Uma frase de Lacan me fascina neste momento: “Amor é aquilo que não se têm e se oferece a quem não o quer”. Essa frase tem uma aparência pessimista, mas é uma das mais belas construções verbais em sua simplicidade aparente e seu conteúdo latente: oferecer aquilo que não se têm, oferecer ilusões reais, realidades imaginárias, imaginações que se travestem de real. Oferecer uma coisa inexistente, oferecer algo que não se têm para quem, definitivamente, não quer, não precisa, não admite nada fora de sua natureza. Lacan parece enunciar um princípio individualista do amor, quase como o Sartre que afirma que “o inferno são os outros”. Mas esta pequena passagem se abre, se abre a uma experimentação amorosa intensa, de compartilhamento do que não pode ser oferecido a mais ninguém: suas ambições, seus medos, frustrações, afeto, felicidade, etc. Ilusões? Nada de real? Já dizia Nietzsche: “Ao abolirmos o mundo ideal, abolimos também o mundo real”.

Parece que estou fazendo rodeios antes de entrar no assunto: mas não quero que isso seja encarado assim. Tudo que aqui está escrito pretende comunicar o desespero. “Se ele comunica o desespero, porque escrever a explicação?”. Aí você me pegou. Prefiro não responder. Sei que não consigo formular uma resposta a esta pergunta.

Ah! A síndrome do final de página, aí vem o inevitável malogro da linguagem: tentar lutar com ela para dar nome ao inominável, de dar de cara com o final de uma página e com a afasia que me atinge agora. Tentarei não me render tão facilmente ao peso de séculos de uma língua que me mostra agora sua energia.

De volta ao assunto em pauta: neurose maníaco-compulsiva? Depois da psicanálise tudo virou um grande catálogo de doenças. É claro que falo de uma psicanálise específica: a psicanálise normativa, a psicanálise adaptativa. Sua parte criadora, seu início criador, sua face sempre renovada não entra neste juízo de valor.

Estamos em face de um impasse: eu digo algo e você rebate outra coisa contrária. Digo A e você B, e ficamos numa posição delicada: quem vai criar o que foge a essa lógica e quebrar o ciclo do estereótipo? Quem vai derrubar o muro colocado entre A e B, criar uma linha de fuga onde A e B não se unem em uma síntese dos dois, mas fogem e viram uma coisa nova, nem um nem outro? Para isso preciso do meu aparelho.

Será que devemos criar um vacúolo de solidão, como diz Deleuze? Sim, mas o vacúolo de solidão deve ser bem entendido: ele não compreende separação no espaço, mas uma não opressão do sentido o fim do “o que você tem, fala...”, “nada não”, em direção a uma linguagem que não mais comunica, que não passe palavras de ordem, mas esteja ligada a uma pragmática do momento, a apreensão dos afectos e perceptos envolvidos em uma relação sempre ali sendo realizada. Novamente o corpo.

Corpo perfeito? Longe disso, mas corpo investido de desejo, moral, política, deveres, escrita... Miller e Burroughs: o primeiro, profeta louco do desejo que escorre, do fluxo de esperma que corre pelas sarjetas da cidade-luz, do desejo a que não falta nada, nem sujeito, nem objeto, pura produção positiva; o segundo, com suas experimentações com drogas, suas viagens no mesmo lugar, sua proposta para uma reforma do corpo (“porque temos uma boca e um ânus?”). A relação dos dois com Deleuze e com Deleuze & Artaud: o corpo-sem-órgãos. Espaço do desejo, espaço criado por cada um onde o desejo circula, CsO paranóicos, CsO drogados, CsO fascista, CsO experimental.

“Puta que o pariu! Chega de viagens teóricas! Queremos sangue, tripas, desespero, ranger de dentes, nervos em frangalhos, choradeira, corações dilacerados! Nos dê carne, sangue e vísceras! Nos alimente com seu desespero!”.

Certo, certo... Voltemos ao leitmotiv deste texto. Depois do aparelho de compreensão, para a comunicação direta entre dois corpos, que estão em relação direta por meio daquilo a que se convencionou chamar amor, precisamos agora de uma possibilidade de esquecimento, para a comunicação do desespero e da falta de vida sem ela ser devidamente recebida e compreendida imediatamente, sem o delay do repensar o que já se passou. “Esquecer? Você não quer que ela relembre? Que volte pra você em nome do que vocês já viveram e do que você sentia e sente e, segundo você, ela também? Contraditório e fantasista. Condenamos você em nome da Organização da Ordem e Bons Costumes dos Escritores (OOBCE), sobre o desrespeito aos princípios de Estilo literário e Não-contradição!”. Vocês não compreendem. Não quero mais ninguém se intrometendo no meu texto, viu? Deixem-me em paz! Cambada de cupinchas e investigadores da verdadeira causa literária. Fodam-se vocês!

O esquecimento é a outra matéria básica para a possibilidade de uma compreensão completa. Se tudo que fizéssemos fosse lembrado, não poderíamos criar, viver, aliás, nem sobreviver poderíamos. Mas não discutiremos isso. O esquecimento que procuro é apenas pontual. É o momento de suspensão de qualquer sentido histórico que seja o bastante para o funcionamento para nossa querida máquina. Esse momento tem que ser como o momento do gozo: experimentado quase como uma desintegração, um desfazer-se, uma suspensão que nos leve a experimentar o extremo perigo da desfazer-se e, depois, o prazer (neurótico) da reintegração. (Gozo e prazer são distintos, tanto conceitualmente quanto na própria vivência de cada um) O esquecimento tem que ser o gozo de saber que algo passa, algo que foge, algo criador.

Pesado demais, lento demais, teórico demais... Fazer o quê? É a forma encontrada para fazer passar o desconforto, o sentido dominante do desespero no momento da escrita deste texto. Que seja lento, chato, teórico, estranho e, acima de tudo, que passe a principal intenção do que escreve: mostrar o tédio.

Ainda procuro a minha máquina. Quanto a impossibilidade de sua criação, isto não é importante. Espero que este texto seja minha máquina, que ele possa assumir o local deste aparelho tecnológico imaginário.

O texto é seu, jamais foi meu e nunca será de mais ninguém. A única cópia será sua, em sua homenagem, em sua honra, em nome do que quiser. Escravo de sua magia, a asfixia não faz parte da minha vivência de você. Eu a vivo como a experiência última do gozo liberador: me desfaço em uma lógica psicótica e sou reconstruído pelo prazer neurótico agregador de só viver quando em sua companhia.

Quanto a OOBCE, é a intrusão do exterior na nossa tentativa de relacionamento puro. O silenciamento de suas invectivas é apenas uma das barreiras a ser quebrada para o funcionamento desta máquina. Agora me apago também, para dar espaço ao branco da página, que pode ser melhor entendido do que estes intrusos significantes escritos durante todo este pequeno texto.

Daniel Rossi
Enviado por Daniel Rossi em 11/02/2009
Reeditado em 09/10/2009
Código do texto: T1432703
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