A Ultima Cerimônia

Quando os convidados começavam a sair foi que ela percebeu que iria para o seu apartamento à meia-noite e, mais uma vez, estava sozinha. Abriria a porta, penduraria as chaves no lugar e, tirando os sapatos, procuraria algo para comer. Aquela solidão ambígua que era boa e ruim. Parte de sua família morava ali, no mesmo andar, mas não era essa companhia que ela sentia falta. Havia um espaço vazio em seu coração.

— Donna! – alguém chamara ao seu lado – Onde é que você estava?

Então ela percebera que viajava nos pensamentos, parada com cara de boba, sentada numa das mesas da recepção.

— Desculpa, Sara. Acho que já estou ficando cansada. Vou pra casa. A gente se vê depois.

E se vai. Não demora muito e ela chega. Pega um ultimo pacote de encomendas com o porteiro e aperta o botão do elevador. Poucos segundos e a porta se abre. Donna, cantarolando distraída caminha em direção à sua casa e, no corredor, quase invisível, alguém tentava encontrar a chave certa para sua própria porta, confuso com todas elas.

— Oi, Donna!

— Oi, Sam.

Num movimento rápido e leve, Sam está ao lado de Donna e segura gentilmente a sua carga. Ele diz algo e o rosto dela se torna suave, numa outra ocasião ela soltaria um sorriso feliz, mas não hoje. E eles estacam na porta dela.

— Só você mesmo, Sam. Obrigada. A propósito, sua chave. – e entrega o chaveiro com uma das chaves destacadas.

— Obrigado, Donna. Tenha uma boa noite.

— Boa noite, Sam…

Ele volta à sua porta e antes de abrir olha mais uma vez. Donna entra e olha para fora pelo espaço da porta antes de fechá-la. Ela sorri.

— Boa noite, Donna. – a porta se fecha – Boa noite…

Mais um dia, mais uma festa. A roupa deslumbrante de Donna ainda a deixava bela mesmo sem os sapatos ou o penteado desmanchado. Quando o elevador abriu, Sam saía de casa para pôr o lixo fora, do outro lado do corredor, paralisando na hora.

— Você… está linda, Donna.

— Ah, Sam. – sua voz era apagada – Você é… tão gentil.

Mesmo longe, Sam pôde notar, no ultimo relance de vista, antes que a porta se fechasse, uma gota prateada deslizar no rosto de Donna. Ele sentiu queimar no peito a dor de sua vizinha. Deixou o lixo onde estava e correu àquela porta. Estacou. Ergueu a mão para bater. Recuou. Virou a cabeça para o lado tentando encontrar o que dizer. Enfim, desapontado, trouxe a mão de volta e andou entristecido pra casa.

É noite agora. Mesmo fazendo frio, era bom sair à noite pra andar. Sam desce as escadas da frente e segue pela calçada, indiferente às pessoas na rua. Um dos postes estava quebrado e deixava parte da rua mais escura que o normal. Olhando para baixo, Sam percebe uma sandália feminina jogada na calçada. Só então ele percebe um som gutural, ínfimo e constante, vindo do lugar mais escuro dali. Ele pára. Ergue os olhos, vê atirado no chão um perfil conhecido que balançava compassadamente com soluços audíveis.

— Donna! – ele corre até ela. – O que aconteceu?

— Nada! – ela esganiça.

— Mas… – ele tenta levantá-la do chão – Vem, vamos pra casa.

— Não! – ela grita, erguendo-se mais rápido que o esperado, esgueirando-se nas paredes – Por favor, Sam… por favor, me deixe…

Ela se afasta rapidamente na direção do prédio, secando o rosto com as costas das mãos, e desaparece mais uma vez nas sombras. Sam permanece estático por algum tempo.

— Donna…

O casamento de um velho amigo comum iria reunir Donna, Sam e outros conhecidos num grande evento. Toda a parte litúrgica se passara naturalmente, com todos os véus, beijos e arroz jogado pela escadaria abaixo. Donna driblara a paciente espera de Sam e chegara sozinha ao endereço. E lá estava ela, mais uma vez, destacando-se da multidão por sua presença empolgante. Os amigos de Sam já sabiam que ele usaria a companhia deles apenas para disfarçar a sua presença, porque, naquela recepção aos convidados, ele estava disposto a desvendar o mistério, podendo observar sem ser notado, analisando as possibilidades, guardando as conclusões até a hora mais propícia.

Passa o tempo proveitosamente. Quando as garotas se amontoaram para pegar o buquê, Sam já tinha algumas suposições. Na verdade, ele apenas confirmou teorias pensadas em dias anteriores. Donna era popular, conhecida entre as pessoas, tinha aquela armadura que a fazia forte, animada, mas por baixo dela era sensível e extremamente romântica. E estava ferida. Entre uma e outra conversa vívida, seus olhos mergulhavam num abismo e ela fixava o nada à sua frente, como se tentasse agüentar uma dor abissal sem ser percebida. Então a chamavam de novo, para mais um gole de vida, que ela não podia saborear de verdade. Alguém causara dano ao seu coração, mas entre tantos, era impossível dizer de quem ela fora vítima.

As pessoas se movimentavam em todas as direções. Voltando à sua mesa, um casal cumprimenta Donna, que se levanta para abraçá-los. Uma sensação inquietante pôde ser percebida até mesmo na distancia entre eles e Sam. Depois de trocarem palavras, eles se vão, deixando Donna prostrar-se novamente, o mesmo olhar vazio de antes, agora talvez mais intenso. Quando consegue mover-se, ela engole o conteúdo de sua taça e se decide a ir embora naquele instante.

Algo precisava ser feito.

Sem perdê-la de vista, Sam a segue cuidadosamente. O movimento das pessoas vai diminuindo até que eles se vêem na rua deserta. Ela parece tão abalada que não percebe estar sendo acompanhada até Sam se revelar.

— Donna!

Ela pára, demora um pouco para virar-se. Realmente pretendia começar um lamento silencioso. Consegue manter-se forte.

— Sam…

— Isso não pode continuar assim.

— Não é nada, Sam – ela tenta se afastar, mas Sam vai se aproximando passo a passo enquanto fala.

— Você não pode, dia após dia, continuar indo a festas, tentando ligar-se a uma ilusão, se humilhando a quem quer que seja.

— Não, Sam… Eu só quero… terminar essa noite.

— Olhe ao seu redor, Donna. Você, há algum tempo, já não precisa procurar tão longe.

— O que você quer dizer?

— Eu, Donna. Confie em mim. – a voz dele era suave, e fez Donna parar de pensar e prestar atenção só nele – Eu acompanhei o seu caminho. Eu estava lá, em cada curva, por todo o tempo, mesmo que você não quisesse dizer nada. – eles estavam a centímetros de distancia – E isso porque… eu te amo mais que qualquer coisa.

Então aconteceu. Num leve movimento, a mão dele tocou o rosto dela, enquanto Donna deixava-se levar, seus lábios carinhosamente entre os deles, alternando leveza e intensidade, num momento que poderia durar para sempre.

Talvez a noite não precisasse mesmo terminar agora.