Mesmo que Efêmero

O telefone toca, de madrugada.

Ele tinha acabado de voltar de uma festa, estava cansado.

O banho de água morna não havia sido o bastante para deixar-lo menos tenso.

Botou um CD do Chico Buarque para tocar, e tinha deitado na cama.

Com um cigarro aceso nas mãos, olhava para o teto do quarto... Na verdade ele não estava vendo nada, avistava um horizonte de imagens das quais apenas ele poderia descrever.

E o telefone continua tocando.

Ele se irrita, pega o telefone rápido, deita-se de novo, e com uma voz de tédio atende:

- Alô?

- Alô, Guilherme?

- É sim, quem tá falando?

A garota tosse com sua voz calma.

- É a Ana...

- Ana? Ana da onde?

Ele estava de saco cheio, queria dormir, não lembrava de nenhuma Ana... Na verdade se lembrava de várias Anas esse era o problema maior.

- Ana poxa... Conhece tantas Anas assim?

Ele no exato momento concordou silenciosamente...

- Olha, desculpa, mas Ana é um nome comum, conheço muita Ana, e sua voz não me é familiar.

- Ai, você fala assim e parece até que já esqueceu...

Ele não sabe o que dizer.

E Chico ao fundo canta Tatuagem.

- Tá ouvindo Chico?

- Tô...

- Eu amo essa musica... Você sabe.

- Sei?

- Até agora não descobriu que Ana eu sou poxa?

Ele acende outro cigarro.

- Desculpa tá difícil...

- Ana, ruiva... A que curte bossa nova.

- Ah... A ruiva da bossa nova!

- É!

- Lembrei... Tudo bom?

- Poupe-me de perguntas mecânicas... Tô entediada e pensei em te ligar... Tem algum problema?

- Não... Afinal, você já ligou e eu já atendi.

- Hum...

- Você gosta mesmo de Chico?

- Amo ué...

Ela suspira forte no telefone.

- Qual a sua música favorita?

Perguntou ele querendo puxar assunto, afinal, eles já estavam se falando no telefone mesmo.

- Eu te amo.

Guilherme estremece.

- Que?!

- Eu te amo.

- Como assim Ana?!

- EU-TE-AMO!

Ele não sabe o que responder...

Como assim ela ligava pra ele de madrugada e dizia isso?

Ele deveria estar ouvindo coisas, tinha ficado com ela apenas uma vez, em uma noite, em uma festa... Essa tal de Ana estava na lista das inúmeras garotas das quais ele já havia tido um contato intimo. A lista de insignificantes. Aquelas que ele nem se lembrava direito.

- Eu tô falando da música 'eu te amo', do Chico.

- Ah...

Ele gagueja e novamente não sabe o que dizer, pensa na maldita hora que foi perguntar qual era a musica favorita dela. Afinal, por que ele ainda tentava puxar assunto? Ele queria simplesmente dormir.

- Só não estava lembrando da musica.

- É aquela que o Chico fala do sangue que errou de veia e se perdeu...

- Sim, já lembrei.

Silencio.

- Sua memória anda fraca hein?!

Ele mal lembrava do rosto dela, só lembrava dos cabelos ruivos...

Gostava de cabelos vermelhos, indicavam uma intensidade. Fogo.

Mas realmente, ele não havia se lembrado dessa musica.

E por um segundo quando ela disse o 'eu te amo', sentiu um frio na barriga.

Um frio na barriga por não escutar isso há muito tempo e pareceu tão real que ele estremeceu, mesmo que o negasse.

- E a sua?

- A minha o que?

- Sua musica favorita dele oras...

- Ah... Não sei.

Ele vai até o som e bota no número da faixa 'eu te amo'.

- Essa!

Diz Ana como num impulso pelo telefone.

- Sim, é ela... Eu te amo.

- O nome dessa música é forte...

- E o mais engraçado é que ele em momento algum da musica diz que ama a mulher, mas está totalmente explicito.

- Se entornaste a nossa sorte pelo chão...

- E se na bagunça de seu coração meu sangue errou de veia e se perdeu...

- Linda demais.

- Verdade.

Os dois ficam em silencio ouvindo a musica.

- Talvez, 'eu te amo' mesmo.

- Ahn?

Ele pensa antes de responder, e num suspiro diz:

- Talvez 'eu te amo' seja minha favorita também.

- Ah...

E novamente o silencio.

- Guilherme, escuta, fiquei com sono... Vou desligar ok?

- Tudo bem...

- Você parece estranho, aconteceu alguma coisa?

- Não... Só estou filosofando o eu te amo.

- Mas não tem o que filosofar no eu te amo.

- Claro que tem!

- É o nome da musica, o Chico fez como declaração pra alguém que ele deve ter sofrido bastante em terminar o relacionamento.

- Não tava pensando no sentido da musica, tava pensando no sentido das palavras mesmo.

- Ah... Eu te amo.

- É... Eu te amo.

Ele bota a musica para repetir.

- Por que essas palavras significam tanta coisa pra muita gente?

- Porque elas resumem sentimentos...

- Mas por que todo mundo quer sempre tudo resumido?

Quando ele ficava com sono, pensava em trilhares de coisas...

- Não sei, talvez porque não dê pra fazer loucuras de amor todos os dias...

- E por que queremos tanto loucuras de amor todos os dias? Por que temos sempre que provar a alguém o que sentimos? Por que usamos essas três palavras, que são apenas palavras... Entende?

- Sei... Mas são assim as coisas. Eu não vivo sem um 'eu te amo'.

- Você tem escutado isso de alguém ultimamente?

- A ultima pessoa que me falou foi você... Há uns segundos atrás. Mas não valeu né...

- Ah, mas sério... Os garotos, homens, costumam dizer isso pra você?

- Meu ex falava... Mas eu nunca acreditei.

- Então como você tá viva se você não vive sem um 'eu te amo'?

- Talvez eu esteja morta, e ninguém perceba mesmo...

Silencio.

- Eu só falei que amava alguém, uma vez...

- E aí?

- E aí que ela não deu valor... Por isso eu fico me perguntando o porquê dessas palavras.

- Eu te amo?

- É... Eu te amo.

- Tem gente que não sabe dar valor mesmo... Mas você falou de coração?

- Acho que sim.

- Então não falou de coração.

- Como você sabe? Você nem me conhece!

Ele se enfurece com a afirmação da ruiva louca que ligara para ele do nada, o deixara confuso e ainda ousava se meter em sua vida.

- Mas não preciso te conhecer pra saber disso... Você nem lembrava quem eu era!

- E daí?

- E daí que você tem todo o aspecto do cara inconstante, desmemoriado, Don Juan, sai em busca de um amor todas as noites, mas só encontra ovelhas, e jogos, e sente-se sozinho sempre, além do mais não tem certeza dos seus sentimentos... Ou estou errada?

- Certo.

E ela de fato estava certa.

- Então...?

- Tudo bem, você conseguiu me definir...

- Então, da mesma forma que eu te defini em palavras, as pessoas costumam definir em palavras o sentimento.

- Eu te amo?

- É... Eu te amo.

- Talvez seja isso mesmo...

- Talvez não! É isso.

Silencio.

- Putz, perdi a noção da hora... Tenho que desligar, são quatro da manhã.

- Tudo bem... Me liga qualquer dia desses pra marcar alguma coisa...sei lá.

- Aham, espero que você lembre de mim da próxima vez...

- É só você falar 'Ana do Eu te Amo'.

- Boa idéia. Beijos...

- Beijos...

- Boa noite.

- Pra você também Ana.

- Dorme bem.

Ela desligou o telefone...

E ele ficou dividido entre o tu-tu-tu e a voz do Chico se lamentando.

Nessa madrugada ouviu a musica inúmeras vezes e se arrependeu por não ter pedido o telefone da 'Ana do eu te amo', para poder ligar em outra madrugada e trocarem palavras como aquelas, a 'eu te amo', mesmo que sem essa intenção.

Curiosamente sentiu cheiro de morango, lembrando-se que essa Ana era a mulher ruiva que usava a coroa e que pedira para ele colocar Tatuagem quando passaram a noite juntos.

"Morangos... Coroa... Tatuagem... Eu te amo."

Dormiu como há tempos não dormia.

(Texto de 2007)

Anastásia Ottoni
Enviado por Anastásia Ottoni em 06/04/2009
Reeditado em 06/04/2009
Código do texto: T1524959
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