A carta que não li ( conclusão )

Fiquei ainda alguns dias em Itapema para fazer as provas finais da faculdade, pois já estávamos na última etapa, decidi que não iria participar da tão sonhada formatura, do baile dos nossos sonhos e nem da viagem que havíamos reservado. Decidi também ir embora para Belo Horizonte, tentaria recomeçar minha vida e esquecer toda aquela desventura.

Em BH, vivi esses últimos anos, quase trinta. Refiz minha vida, conheci outras pessoas e logo que cheguei, comecei a trabalhar numa grande empresa. Fiz vários cursos de aperfeiçoamento e pós-graduação, e comecei a viajar para muitos lugares do Brasil e do exterior. Passei alguns anos sem retornar a Itapema, depois comecei a ir à cidade nos feriados e datas especiais, mas somente com intuito de rever minha família. Nunca mais vi o José Armando e evitava ouvir comentários sobre ele quando visitava meus pais, minhas amigas todas se mudaram e soube que ele também havia se mudado de Itapema e que havia se casado. Enfim, o assunto fora de vez enterrado.

Conheci meu marido Alberto com quem tive uma vida tranqüila e prazerosa, não foi um amor com a mesma intensidade com o qual vivi com José Armando, mas fui feliz, até que um acidente de trânsito tirou-lhe a vida há quatro anos. Tivemos dois filhos maravilhosos, Fernando e Murilo, hoje já formados e casados. Não tinha, portanto, maiores motivos para continuar morando em Belo Horizonte, além do mais, sempre gostei do interior e do meu estado, Santa Catarina. Com a minha aposentadoria, pude sacar meu fundo de garantia, dei uma boa entrada numa casa em Itapema e decidi voltar para passar algum tempo com meus pais que já estão velhos.

A tarefa de organizar as caixas parecia chamar-me à realidade, e percebi que se não deixasse aquelas lembranças, certamente iria arrastar a arrumação das coisas noite adentro. Decidi fechar o bauzinho de palha e retomar à minha tarefa, mas de repente um papel amassado chamou-me a atenção. A letra era de José Armando, a carta fora-me enviada depois de todas as tentativas de contato por telefone, eu recusava expressamente qualquer ligação que viesse dele. Recordo-me que já havia recebido vários bilhetes e que até li alguns, embolando-os e jogando-os no lixo, mas a carta, não me recordava exatamente porque a carta fora parar ali dentro do meu bauzinho de lembranças.

Resolvi abri-la. Dentro havia um bilhetinho de minha mãe com sua letra firme e caprichada, minha mãe era professora do primário e tinha uma letra invejável. Eis o que dizia o bilhete: Nara! Sei que não quer saber do José Armando, e apesar de ser contra minha vontade, sei que essa decisão é totalmente sua. Porém, minha filha, peguei essa carta no lixo do seu quarto, perdoe-me, não contive a curiosidade de lê-la, pois o envelope estava aberto. Sei que tem seus motivos, mas resolvi guardá-la, pois tenho visto você rasgar e jogar fora todos os bilhetes dele, e talvez quando a dor passar você venha querer ler esta carta, pois aqui estão todas as explicações que ele tentou dar a você. Talvez um dia você o perdoe. Sua mãe Maria Célia. Minhas mãos tremeram quando retirei o bilhete e comecei a ler a carta:

“ Meu eterno amor!

Não tenho mais coragem para procurá-la e de hoje em diante a deixarei em paz. Antes, porém gostaria de expressar nestas trêmulas linhas, todo o meu amor e dizer-lhe o tamanho da dor que estás causando destruindo esse sentimento tão nobre e tão puro, o nosso amor. Dentro do meu peito, meu coração não encontra mais espaço, meus soluços e minhas lágrimas sufocam-me, e a dor é tão grande que chega a ser física. Não encontro explicação para sua atitude, estou desprovido, não tenho nenhuma arma a meu favor, nesse crime que não cometi. Espero que leia minha carta, estarei à mercê do seu juízo, implorando que me julgues com piedade. Ficarei aguardando minha absolvição ou minha sentença. Querida, estou em suas mãos, mas antes preciso que conheça o que realmente aconteceu naquela noite, que nunca em toda minha vida hei de esquecer. Eu estava indo à sua casa como havíamos combinado, ao descer as escadas do casarão, percebi que o Jader e o João Paulo estavam no portão a minha espera. Cumprimentei-os, eles já haviam tramado toda a conversa de embromação para levar-me à casa do Ricardo. Diziam que tínhamos que ir à casa do Ricardo, que ele havia quebrado a perna e estava sendo levado para Florianópolis naquele momento para ser operado. É claro que eu disse que não podia ir, pois havia marcado com você de irmos ao cinema, mas eles insistiram tanto que me convenceram. Então aconteceu a indesejável festa e todos os pormenores que você já conhece. Porém você não conhece a verdadeira trama que me fez perder os sentidos, depois que você decidiu não me ouvir e depois de verificar que eu não tinha mais nenhuma chance com você, resolvi procurar o Ricardo que me elucidou os fatos acontecidos naquela noite. Na verdade eu não me embebedei, eu achava ter sido isso que tivesse acontecido, mas fui vítima nessa história. Ricardo me esclareceu que eu fiquei meio louco a partir do segundo copo que me fizeram virar e logo em seguida adormeci, prostrei-me na verdade, e que as malditas fotos foram forjadas pela Mariana, depois que eu já estava apagado, e disse ainda que eu não acordei mais, até o dia seguinte, quando seu pai muito preocupado me levou ao hospital, para saber se estava tudo bem comigo. Eu estive internado até as cinco da tarde naquele dia e quando acordei, eles me disseram que eu havida bebido demais. Enquanto eu estava no hospital, o pai do Ricardo reuniu toda a turma para apurar o que realmente havia acontecido e a Mariana não teve saída e se entregou, disse haver colocado uma pequena quantidade de remédio no meu copo com a intenção de forjar as fotos que tirou, e que não sabia que o remédio pudesse causar aquilo tudo que estava acontecendo comigo. Isso ficou em sigilo, para que o meu pai não soubesse, mas o Ricardo, sendo meu amigo e vendo a dor que eu estou passando, me revelou tudo que aconteceu na festa. Bem, eu não posso fazer pelo nosso amor, mais do que isso, dizer a verdade, além de soluçar todas as noites que se tornaram sombrias desde que você se foi, embora desejo que saiba, que mesmo que não queira me ver nunca mais, eu nunca deixarei de amar você, mesmo que você não volte para mim e ainda que a morte venha separar-nos de vez, eu sempre hei de amar você. Quando você se foi de Itapema levou consigo todos os meus sonhos, levou meu sorriso e minha vontade de viver. Meu eterno amor, se responderes minha carta, eu serei o homem mais feliz do mundo! Vou pintar seu quarto de azul como você tanto queria e vamos nos casar correndo, sozinhos para que ninguém possa atrapalhar a realização do nosso sonho de amor. Responda-me amada minha, aquiete esse meu coração que está a querer sair do meu peito.

Do eternamente seu, José Armando!"

As lágrimas caíam abundantemente pelo meu rosto e quando terminei de ler algumas já manchavam o papel amassado. Deixei o papel sobre a cômoda por medo de destruí-lo com minhas lágrimas. Ah, José Armando! Como pude fazer o que fiz com nosso amor?! Por que não ouvi a minha mãe? Como fui tola e inconseqüente? Meu Deus, como nós nos tornamos mulas de carroças, quando não queremos enxergar o que está à nossa frente. Ciúmes, ciúmes tolos. Pobre José Armando, como deve ter sofrido com o meu silêncio e com minha tola determinação. Como estaria ele agora? Estaria casado? Seria Feliz? Sempre repeli assuntos que falassem dele. Lembro-me que uma vez minha irmã me disse algo sobre o seu casamento, nessa época eu também já estava casada, e respondi apenas: Que seja feliz! E agora aqui estou, retornando a Itapema, será que ele ainda vive por lá? É pena não poder dizer-lhe que só hoje li a sua linda carta. Quanta saudade!

Devolvi a carta ao bauzinho de palha e retornei à tarefa de embalar minhas coisas, já era muito tarde quando consegui organizar tudo que deveria seguir no caminhão. Eu iria mais tarde com meu filho mais novo que iria passar o fim de semana em Itapema para me ajudar organizar a nova casa.

No dia seguinte despachamos o caminhão e seguimos de avião até Blumenau, onde pegaríamos um carro para Itapema. Dormimos na casa de meus pais e no sábado começamos a organizar a mudança. À tardinha resolvi fazer uma caminhada e subi a rua Santa Clara até Praça da Paz. Quantas recordações! Cruzei as alamedas de azaléias que ainda perduravam nos mesmos canteiros depois de tantos anos, as recordações chegavam à minha mente a cada detalhe que via, cruzei a praça e dei-me de frente com o casarão, hoje totalmente reformado, pintado em tons modernos, desenhos coloridos em tons pasteis davam novo visual à fachada, mas o estilo ainda era o mesmo, a escadaria que saía do andar de cima e descia até perto do portão, as janelas coloniais, até as trepadeiras da sacada, ainda estavam lá. Transportei-me para um tempo de saudades e fiquei entorpecida diante daquele portão que tantas vezes se abriu para eu entrar. A saudade misturava-se à consternação de ter perdido o meu grande amor e os melhores anos da minha vida. Ali naquele torpor não me dei conta de que poderia estar sendo inconveniente. De repente a porta mágica se abriu e um homem descia as escadas, seu porte elegante, passos firmes e decididos, o cabelo agora um pouco grisalho ainda caía-lhe na testa com o movimento de seus passos... Era ele! Como estava bonito, os anos acrescentaram-lhe algumas linhas de expressão, mas não lhe tirou a harmonia de sua bela aparência.

Descia descontraído e quando me viu, assustou-se, mas não pareceu me reconhecer de imediato, apenas perguntou-me:

- Bom dia, Senhora! Gostaria de falar com alguém?

Eu acordei de meus devaneios e percebi que não poderia mais afastar-me sem que ele percebesse e ao levantar o olhar ele me reconheceu.

- Nara!!! Não é possível! É você mesmo, Nara?

- Sim! Desculpe-me! Eu estava passando por aqui e ...não resisti ao desejo de olhar o casarão.

- Mas não há por que se desculpar. _ Ele também ficou constrangido. - Não quer entrar?

- Não, obrigada, fica para uma outra vez.

- Por favor, entre; não se acanhe, não há ninguém em casa, estou sozinho hoje.

Ele já abria o portão e tinha tanta certeza que eu fosse entrar, que não consegui resistir ao seu convite. Subimos as escadas devagar, ele abriu a porta, entramos na grande sala. As lembranças teimavam em vir à minha mente, fiquei a olhar os detalhes, tentando me lembrar da decoração da casa.

- Depois que minha mãe morreu eu comprei as partes do casarão e voltei a morar com meu pai, mas ele passa um tempo aqui comigo e um tempo com a Clarisse em Florianópolis.

Havia uma pergunta que não queria calar, e por mais que eu a afastasse ela retornava.

- E sua família? Soube que se casou.

- É verdade, eu me casei e tenho um casal de filhos, mas não fui muito bem sucedido no casamento, me divorciei há mais de dez anos, meus filhos ficaram comigo, mas já estão morando fora. Soube que se casou também e que se enviuvou. Eu sinto muito Nara!

- É verdade, eu me casei e tenho dois filhos também, mas já estão casados, agora me aposentei e estou retornando a Itapema, comprei uma casa na Rua Santa Clara, quero passar algum tempo perto de meus pais.

- Oh! Mas que boa notícia! Então nos veremos mais vezes com certeza.

Sabia que era muito tarde para falar do nosso amor, mas sentia que precisava encontrar um meio de ele saber que só ontem havia lido sua carta, porém estava muito constrangida. Por um longo tempo ficamos sem assunto, parecia que ambos recordávamos nosso passado. Depois de alguns minutos ele rompeu o silêncio e tinha um tom de amargura na voz.

- Você não respondeu a minha carta!

- Perdoe-me!

Eu não conseguia falar, temia magoá-lo mais uma vez contando a verdade, mas temia não ter uma segunda oportunidade de dizer-lhe. Reuni todas as minhas forças e coragem e comecei a falar. Não parei, fui até o fim mesmo me atropelando nas lágrimas que desciam como cachoeira morna pelo meu rosto. Quando terminei de contar-lhe tudo que se passara na véspera de minha viagem, ele havia se sentado ao meu lado e abraçava-me. Choramos juntos e permanecemos abraçados por um longo tempo.

- Eu fui tola e inconsequente, hoje percebo que o que aconteceu naquela noite, nunca poderia ter sido de sua vontade ou de sua permissão, sei que não adianta pedir-lhe perdão agora, eu devia ter lido aquela carta, mas eu estava dominada pelo ciúme, e tudo que vinha de você eu jogava longe de mim. Não mereço seu perdão, e sei que isso não fará retrocedermos no tempo, mas é muito importante para mim, preciso que me perdoe, se puder.

Ele segurava as minhas mãos e me olhava dentro dos olhos com o mesmo olhar expressivo e firme, que sempre me olhou, e enxugando as minhas lágrimas, declamou a mais linda declaração de amor que já ouvi.

- Minha adorada! Eu vivi os anos mais lindos da minha vida ao seu lado, ainda hoje me lembro dos nossos passeios no parque, o seu vestido de flores, esvoaçando ao vento enquanto corria atrás daquela borboleta azul, que teimava em levá-la pra longe de mim. E também vivi os anos mais tristes de minha vida depois que você se foi. Todas as coisas bonitas do mundo perderam o brilho, a cor e a alegria, eu não tinha vontade de sair nem de conversar, sofri muito a sua falta, tentei te esquecer, tentei até me apaixonar novamente. Tolices, isso só acontece uma vez na vida e comigo o amor tinha um nome: Nara! Mas não choremos mais querida, se não podemos voltar o calendário de nossas vidas, podemos reparar o que fizemos de errado. Nós fomos dois tolos infantis, não podemos regressar ao passado, mas podemos escrever uma nova página da nossa história.

- Eu não mereço você! Você é um homem bom demais, José Armando!

- Aquela proposta que lhe fiz na carta, ainda está de pé, se você disser que sim, meu amor, vou pintar o quarto de azul como você sempre sonhou...

Não precisávamos falar mais coisa alguma. Naquele momento começamos a reviver o nosso grande amor...

Maria Helena S. Ferreira Camilo C. Lucas