POEMA PARA DUAS LÁGRIMAS

Sempre que ele descia do velho ônibus que o conduzia à Vila das Hortências, avistava aquela linda jovem à janela baixa, de sua casa cercada de roseiras floridas e multicores e aquele jasmineiro que, pendido por sobre o muro, deixava impregnar o ar com seu perfume embriagador.

Desde que começara o ano letivo, um velho professor da pacata escola da vila havia aposentado e, por ordem de escala da Secretaria da Educação, ele, concursado, ocupara a vaga do antigo professor de matemática.

Apesar de seus vinte e cinco anos de idade, havia terminado o curso, prestara concurso estadual e podia agora, exercer a profissão que aspirara desde a infância: professor.

Morava distante da escola, em uma casa enorme, com grandes jardins e aquários.

Nunca alguma coisa o atormentara tanto quanto à moça da janela! Mas era um tormento diferente, era como um sonho: aqueles olhos verdes e tristes o acompanhavam desce o descer do coletivo até dobrar a esquina da rua da escola. Longos cabelos negros contrastavam com a maciez e a candura de sua pele. Tudo nela era tão gracioso e ao mesmo tempo tão triste e melancólico. E durante seu trajeto ele sonhava:

-Talvez, algum dia, eu devesse parar em frente de sua janela e cumprimentá-la. Ela não hesitaria em responder, eu sei. – e num suspiro – Parece um anjo!

E o jovem professor dava vazão aos seus devaneios:

-Bom dia!

-Oh, bom dia, professor! – respondia a jovem entre assustada e feliz. E ele, inclinava-se por sobre a cerca branca do pequeno jardim, colhia a rosa mais bela e lhe ofertava:

-Uma rosa para uma santa! Queira aceitá-la e guardá-la, para um dia, quando já estiver em avançada idade, recordar-se do velho professor.

-Sempre hei de recordar-me do senhor!

E ele prosseguia:

-Hoje não há aula. É feriado. E o dia está tão bonito! Porque não vamos passear? Podemos ir até a praça...

E em curto espaço de tempo, lá iam os dois, de mãos dadas, observarem o chafariz da praça da vila. Não conversavam. Apenas o coração e os olhares falavam por ambos. De vez em quando, ele roubava uma flor para ofertar à sua musa. Ela era irreal.

Era como se aquela casinha baixa e pintada de cor de rosa fosse feita especialmente para abrigar um anjo. E ela, com certeza era o anjo enviado à terra para guiar o seu coração jovem e enamorado.

Sim. Agora havia a certeza. Ele a amava. E uma tarde, se declarou:

-É isso...eu a amo! – balbuciava ele, corado como uma cereja.

Ela tomava as mãos dele entre as suas e o censurava delicadamente:

-Porque ficou tão vermelho ao me dizer isso? Por acaso é crime duas pessoas se amarem?

-Não...não é crime. É sacrilégio confessar meu amor por uma santa.

-Mas as santas também são adoradas e amadas. E eu não sou nenhuma santa, seu bobo!

E ambos riam despreocupados.

Subitamente a sineta da escola o fazia voltar a realidade e o seu sonho era interrompido. Oh, se tudo fosse verdade! Se todas essas palavras, esses momentos, não fossem apenas fruto de sua imaginação!

Certa noite, em seu quarto, lembrando-se da moça da janela escreveu um poema:

“Na escuridão do meu deserto de neve

houve o lampejar por um momento breve

de uma luz forte e deveras cintilante...

Senti na obscuridade a essência do jasmim,

a vi sentada numa estrela olhando para mim

sem saber já ser eu seu doce amante.

Olhe-me nos olhos e procure responder

ao bom dia que eu vou lhe dizer

e depois, lentamente irei saindo...

Tirar tanta força do coração

e esta será a sublime condição

para que eu possa morrer sorrindo.”

Escreveu e leu. Releu. Tornou a ler. Talvez não o tenha apreciado muito, não era um poeta, até então, mas mesmo assim prometeu a si mesmo que o entregaria à jovem da janela.

No dia seguinte, porém, não teve coragem suficiente para lhe falar. Ao passar por ela, que o olhou tão melancolicamente como sempre, apoiada ao parapeito da janela, as palavras morreram-lhe na garganta. Apenas a olhou e deu-se a impressão que seus olhares falaram mais alto.

Chegou por fim o mês das férias escolares.

Já sentia um medo indescritível só em pensar em não vê-la por trinta dias, que para ele, seriam como uma eternidade.

Naquele dia não a viu.

Não voltou à escola e mesmo assim, a imaginava sentada, a olhar pela janela, vê-lo descer do ônibus e caminhar pela calçada solitaria e esburacada.

Sentia falta também de seus alunos, porque as crianças o faziam recordar-se dela. Tão meiga, tão inocente e pura.

E os dias correram céleres, vazios e angustiantes e como único ponto de apoio, a esperança de revê-la.

Faltando um dia para o reinicio das aulas, tomou a decisão de vê-la a qualquer custo, no dia seguinte. E tinha certeza de que a veria e assim, entregar-lhe o poema e lhe falar de seu amor.

E a ansiedade transformou-se em expectativa ao descer do velho ônibus, com os livros sob os braços e o poema nas mãos.

Olhou para a janela.

Foi como se um raio o tivesse fulminado. Estava fechada.

As roseiras estavam mortas e despidas de qualquer folha ou flor.

Criou coragem e encaminhou-se para a casa vizinha, onde no pequenino terraço, uma garotinha brincava solitária, com uma pequena boneca de pano, velha e feia.

-Onde está a moça que ficava sempre à janela daquela casa? – arriscou com a voz embargada e trêmula.

-A Ângela? – respondeu a criança, num pequeno e tímido sorriso, onde a falta de alguns dentes justificava sua troca.

Então ela se chamava Ângela... e ele acertara. Era mesmo o nome de um anjo. E a garotinha prosseguiu:

-O senhor não sabe? Ela não andava... ficava só naquela feia cadeira de rodas...Por isso ficava sempre na janela olhando a rua. Ta fazendo uns quatro dias que ela morreu. Morava com seu pai, já velhinho... ele se mudou...acho que para outra cidade.

Estremeceu.

Duas lágrimas teimosas escorreram pela sua face. Prosseguiu seu caminho, amassando com carinho papel onde estava escrito o poema feito para a moça da janela. Guardou-o no bolso e entristeceu. Agora ele tinha certeza. O Senhor a havia chamado, porque realmente ela era um anjo. E nada, nem suas palavras de amor, nem seu poema de tristeza e esperança poderiam macular a pureza daquela pequena criatura.

A sineta da velha escola da Vila das Hortências soou.

O professor sentiu então, que mesmo assim, a vida continuava.

Só que desta vez, triste, escura e vazia!

Dia 22 de Agosto - Dia do Escritor Louveirense.

Ademir Tasso
Enviado por Ademir Tasso em 26/08/2009
Reeditado em 27/08/2009
Código do texto: T1776356
Copyright © 2009. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.