O vício do amor

Ele sempre a via. Era como uma repetição de um relógio. Mas ao contrário dessa mesmice cotidiana do relógio, amá-la, mesmo que de longe, sem ao menos saber seu nome não era nada cansativo ou monótono.

Inclusive foi graças a esse amor, que ele nunca mais perdeu o horário de entrar no serviço e nunca mais sua esposa brigou por causa dos atrasos para o jantar ou das cervejinhas com os amigos. Sim, graças a esse amor ele se tornou um homem regrado, trabalhador, pai de família, cumpridor de suas funções.

Porém, esse papel que vinha desempenhando ao mesmo tempo em que deixava e esposa e filhos felizes, fazia dele um traidor. Sim, era um traidor e hipócrita. Viu que ele se tornara tudo àquilo que ele menos gostava num ser humano.

Chegava cedo ao trabalho, não por amor ao que fazia - na verdade detestava ser contador - e nem mesmo por medo de levar uma bronca de seu chefe. Chegava cedo porque sabia que todos os dias, no mesmo horário, ela estaria naquela estação, pegaria o mesmo trem pontualmente, entraria no mesmo vagão que ele e se sentaria da forma sempre elegante, cruzando as pernas, deixando a saia delinear a curva de suas coxas sem vulgaridade. Era uma maneira elegante de ser que poucas mulheres conseguiam esse êxito. Ele estava viciado naquela cena. Não era um vício carnal, mas sim um vício entorpecente, de puro êxtase. Êxtase do qual ele nunca mais queria viver sem.

Procurava fazer o seu trabalho da melhor maneira possível, tentando sempre agradar o chefe, chegando ao limite de ser puxa saco, pois seu maior medo era perder aquele emprego. Perder aquele emprego significava não ter mais as suas duas doses diárias de droga: aquela mulher misteriosa. Aquela mulher de pescoço fino, pernas alongadas, cabelos lisos usando óculos de aro vermelho.

"Deve ser secretária de algum grande executivo", pensava ele.

Passava o dia esperando chegar as 17.30 h para ir embora, pois sabia que iria encontrá-la novamente, linda e sensual como sempre.

Todo o dia, na estação ele pensava "Dessa vez vou puxar assunto!". E da mesma forma, ele sentia as pernas tremerem e as mãos suarem frio ao ver aquela mulher, que para ele era a personificação da perfeição. Logo, preferia se manter a uma certa distância e simplesmente admirar aquela obra de arte viva.

Chegava em casa nem sabia como, pois tudo o que tinha em sua cabeça era aquela mulher. Sua esposa vinha recepcioná-lo com um delicioso beijo na boca e antes que as crianças pudessem chegar da casa dos avós, ela fazia amor com seu marido, ali no chão da sala mesmo. Enquanto que ele fazia amor com aquela estranha.

Sempre era uma explosão de amor. Cada dia era uma exploração nova em cada pedaço do corpo daquela mulher, que sempre rondara seus sonhos mais íntimos. Fazia tudo o que ela pedia. Fazia coisas que nunca sonhara em fazer com sua esposa. Depois de alcançado o ápice, ele voltava a sua realidade e vira que ali estava a sua esposa, a mãe de seus filhos, aquela mulher com quem ele casou por amor e que se guardou tanto tempo para aquele homem.

Ele via o rosto dela de completa satisfação e tinha vergonha de si próprio, pois a traiu. Aliás, a vinha traindo há alguns meses já. Sentia vergonha de si mesmo.

"Será que ela não percebeu que estou agindo de forma diferente com ela?" - pensava ele consigo próprio. "Seria muito mais fácil pra mim se ela percebesse e me cobrasse uma satisfação."

Ao colocar as crianças para dormir, imaginava como seriam seus filhos com aquela mulher misteriosa. Ia dormir com vergonha de si, mais uma vez, pois além de trair a esposa, traía os filhos, a quem amava tanto, lhes dando outra mãe. Uma mãe que nem sabia o nome.

"Que vergonha."

Mas era uma repetição. Não tinha como escapar daquele vício. A misteriosa mulher nunca o notara, mas ele não conseguia mais se livrar dela. Mesmo sabendo que era errado, que ia contra os seus princípios, tirar aquela mulher de sua cabeça era renunciar a um amor tão puro e ingênuo como nunca teve na vida, nem mesmo com sua esposa. E sabia que se abrisse mão daquela visão diária, o seu casamento, a sua vida perfeita, invejada por vários viraria um caos.

Como não sabia o que fazer, simplesmente decidiu não se preocupar mais. Resolveu levar essa situação até onde fosse possível.

E assim foram dias e meses. Empregado promovido, pai mais presente com os filhos e esposa cada vez mais satisfeita em todos os sentidos.

Um dia, pontual como sempre, ele olhou para aquela mulher misteriosa, linda como sempre, e a viu sorrindo. Achou estranho, pois nunca a vira sorrindo antes. Mas pensou que ela deveria sorrir mais, pois como era esperado, tinha um sorriso lindo, compatível com a beleza daquela mulher.

Uma pessoa atrapalhava sua visão e se afastou um pouco para o lado, ficando próxima a porta. Viu que ela estava falando ao celular. O riso se transformou em gargalhada. Ficou intrigado. E de repente se viu com raiva. Percebeu que estava com ciúmes daquela mulher rindo para outro alguém, principalmente se outro alguém fosse algum homem.

Tentou se aproximar mais para ouvir o que ela dizia. Tudo o que ele conseguiu ouvir foi 'ok, então amanhã está tudo combinado para amanhã!'

Deveria ser o dia mais feliz da sua vida, no mesmo dia vira o sorriso dela e ouviu a sua voz, mas o ciúme era tanto que ele nem conseguia pensar nisso. Tudo o que rondava a sua cabeça era: o que estava combinado para amanhã? E com quem?

Mal conseguiu trabalhar. Ás 17.30 em ponto já estava na estação. Ela não estava. Ela não pegou aquele trem. Desceu na próxima estação para pegar o trem de posterior, afinal talvez ela tivesse perdido o trem. Veio o trem, mas ela não estava nele. O desespero começou a cuidar dele e essa repetição de descer de estação em estação se repetiu até o seu ponto final e nada de vê-la.

Ficou sentado na estação por quase 2 horas imaginando o que pudesse ter acontecido a sua amada. Lágrimas começaram a preencher seus olhos. E no fundo do seu coração, preferia que algo realmente tivesse acontecido á ela. Detestava a idéia de que ela poderia estar no cabeleireiro se arrumando para outro homem e que naquele exato momento, eles poderiam estar jantando juntos em algum restaurante charmoso e que depois desse jantar pudessem ir para o motel. Não queria que estivesse acontecendo exatamente o que ele visualizou tantas vezes em sua cabeça. Preferia vê-la morta!

Foi para casa se arrastando. Não cumprimentou a esposa, não deu beijos nos filhos e se trancou no escritório de sua casa, onde passou toda a noite em claro.

A esposa bateu várias vezes na porta, mas ele só murmurava algumas palavras para demonstrar que estava vivo e que queria ficar em paz.

A noite parecia interminável. Parecia que dias e noites se passaram até que desse a hora de se ‘levantar’ e tomar banho e pegar o seu rumo para o trabalho. Saiu do seu escritório como um estilhaço de pólvora, mal cumprimentou quem estava na casa, não quis tomar o café da manhã, quem sempre julgara ser a melhor e mais importante refeição do dia, e saiu sem dizer tchau. As crianças se entreolharam e nada entenderam. A esposa menos ainda.

Chegou a estação de trem completamente sem fôlego – “Quando eu praticava esportes, não tinha esse problema. Preciso voltar a fazer alguma coisa a respeito.” – pensou consigo mesmo. Não se lembrava o motivo e nem percebera, mas durante o percurso da sua casa até a estação foi correndo e quando olhou no relógio percebeu que estava quase 40 minutos adiantando até chegar o trem que salvaria a sua vida, que traria o amor da sua vida de volta, que re-estabeleceria o equilíbrio das coisas.

Aquele vício já tinha ultrapassado os limites de uma simples dependência, já tinha se tornado em algo metafísico. Os minutos adiantados se arrastaram uma eternidade para ele, mas finalmente viu despontar ao fundo o trem. Lentamente, aquela locomotiva se aproximava, mas o frio no estômago, o suor em suas mãos, o disparar do seu coração, o bambear de suas pernas nada tinham de lento.

O sinal sonoro que o trem faz ao se aproximar da plataforma foi para ele como um estrondo divino, que quase o fez vomitar de tanta ansiedade.

Ele entrou no vagão atordoado sem ao certo saber para que lado olhar. O trem estava mais cheio do que de costume, o que o impossibilitou um pouco mais o seu campo de visão. Olhou para os dois lados e não a vira. Nem no canto que ela sempre costumava ficar, lendo o seu livro, não a encontrou. Desesperado, resolveu andar pelo vagão a sua caça. Já não se importava mais se as pessoas o estavam julgando por ser mal educado e literalmente atropelar as pessoas ou se pelo fato de sua feição estar com aparência de insanidade. Precisava a qualquer custo encontrar aquela mulher, aquela que colocaria a sua vida nos eixos novamente.

Depois percorrer aquele espaço por quatro vezes, a decepção em seu rosto era visível. Como ele conseguiria viver novamente sem aquela mulher? Chegou à estação para seu desembarque. Saiu do vagão e sem saber que rumor tomar, ficou parado fitando o chão como se ali estivesse alguma resposta para a sua aflição. Nada mais importava para ele.

Quando finalmente resolveu seguir à diante, antes mesmo de dar o primeiro passo em direção ao resto de sua vida, viu surgir ao fundo da plataforma... ela. Ela estava linda, estonteante. Seu coração se encheu de alegria ao ver que ela estava ali para dar continuidade na sua vida.

Mulher de pura beleza conseguira ficar ainda mais bela. Vestida num belo vestido branco, delineando as curvas do seu corpo, um cinto preto demarcando a sua cintura, usando um sapato de salto alto desenhando as suas pernas, um casaco preto jogado sobre os seus ombros, cabelos soltos e... mais escuros. Cabelos mais escuros!!! Significa realmente que no dia anterior ela provavelmente esteve no cabeleireiro e se arrumou para alguém.

Dane-se! Era delírio! Para ele importava que ela estivesse ali e nada mais. Perfeita como uma modelo de um comercial de cigarro.

Ela estava andando em sua direção. Ele não podia acreditar. De repente o chão saiu sob os seus pés. Quanto mais ela se aproximava dele, mais um sorriso ela começava a esboçar com olhares tímidos para o chão e voltava o olhar na direção dele, cheio de alegria. Ele não podia acreditar no que estava acontecendo, era o dia mais feliz de toda a sua vida.

A poucos passos de distância, ela se animou, o seu sorriso se tornou mais largo e completamente combinando com o seu vestido alvo e acenou emocionadamente. Quando ele levantou o braço, ainda sem entender direito o que estava acontecendo, ele sentiu a presença de alguém ao seu lado.

Da mesma forma que existem os comerciais de cigarro com mulheres estonteantes, existem os comerciais de cigarro com homens de tirar o fôlego de qualquer uma. Era esse o caso. Aquele belo homem, parado ao seu lado era o par perfeito para a mulher perfeita. Ela não se contendo de alegria, correu na direção daquele homem e se jogou nos braços dele e com um beijo apaixonado dos dois, selaram a felicidade mútua.

Um ódio indescritível percorreu o corpo daquele homem. Uma tristeza absurda subiu pela coluna dele atingindo seu coração como um pelotão de fuzilamento aniquila um prisioneiro. Não sabia o que pensar, o que fazer... queria ele estar beijando aquela boca, abraçando aquele corpo, mas não era ele. Não podia imaginar a felicidade dela com outra pessoa que não ele. Começou a andar de um lado para o outro, procurando alguma resposta, mas não sabia onde e nem o que. Definitivamente aquela mulher não poderia ser feliz sem ele.

Tomou certa distância, viu que se aproximava um trem e se lançou em sua direção.

O casal foi interrompido de seu momento de torpor com um grito de pavor. Tudo o que eles tiveram tempo de ver foi um cidadão se atirando na linha do trem contra um que vinha em alta velocidade.

Uma linha vermelha ficou marcada no vestido daquela mulher, anunciando que aquela paixão, que aquele encontro romântico e cinematográfico ficaria para sempre marcado na vida daquelas duas pessoas.

O mundo, a partir de então, ganhava mais uma viúva e mais dois órfãos de pai e junto, a eterna pergunta “Por que ele fez isso?”