PERMISSÃO PRA VIAJAR NO TEMPO DE SOFIA (reeditado)

PERMISSÃO PRA VIAJAR NO TEMPO DE SOFIA

Por Nilvana Koppe

Conheci Sofia de passagem, estamos todos de passagem por aqui.

I

Sempre que o fim da tarde se aproxima traz consigo sem compaixão uma mistura de sensações e sentimentos. A sensação de frio desperta o sentimento de estar só.

A sensação de vazio declara:- Sofia está só.

Solidão? Talvez nem tanto assim, sendo que não se pode quantificar o peso dessa cortina enorme de veludo vermelho rubro que cai encerrando o fim da peça. Uma peça de teatro onde cada um é o ator ou a atriz principal tendo como palco a vida cuja história dure exatamente vinte quatro horas, nem um segundo a mais, nem um segundo a menos.

A quem importaria se você precisar de mais um minuto, ou só mais um segundo? Quantos de nós sairemos do palco antes dos aplausos triunfais...(?)

Assistir a chegada da noite que, embora, aconteça de mansinho lhe cai como tormentoso véu enorme e profundamente negro. Pesado por demais.

Talvez despertassem à Sofia lembranças de outros pontos celestes que cintilavam numa época que já se ia há muito tempo. E levantar a cabeça e fitar tais pontinhos longínquos de luz possibilitaria o também despertar da memória que guardava uma luz maior, muito branca talvez, desencadeando sabe-se lá o quê entre sonhos e pesadelos de uma vida.

Necessariamente não seria hoje o melhor dia porque, por ora esta lua transbordava saudades e estava completamente cheia.

Tudo acontece de forma ritual, pontuado, milimetricamente cronometrado. Sente a maçaneta da porta entre os dedos, gira a mão e o tempo parece não se importar em parar.

É quando a porta se fecha que o portal entre os mundos de Sofia se abre. Play, Andrea Bochelli canta “Canção com Todos”.

A almofada é jogada ao acaso e um fino veio de água escorre pelo chão e quase sem força é absorvido pelo pedaço de papel amassado que, foi jogado em algum espaço daquele universo para ser esquecido. No entanto ainda permaneceria ali por mais alguns minutos cheio de segredos.

Segredos de que mundo? Do mundo real de regras e normas? De um mundo carregado demais de pessoas, com muitos cheiros e calores e de odores, de passos, de barulhos, com ruídos de dor, sem sabores e agora com um detestável gosto de ferrugem.

Ou de mundo que a permite viver e que também sentencia que nada passa em branco. Ou aquele seria apenas um segredo de Sofia. Só de Sofia (só)?

Parece-me um tanto inútil invadir simplesmente o mundo de alguém para conhecê-lo melhor, entretanto, peço permissão para viajar no tempo de Sofia e convido os leitores a conhecer o que suporta a leveza desse ser, ou melhor, o que suportava a leveza DESTE SER.

II

Ao melancólico balanço de I started a joke (Bee Gees), a criatura feminina e frágil se encolhe e reúne naquele gesto toda a sua vida de amores, sabores e dissabores.

Interessante...coloque-se como expectador de uma piada. Uma piada qualquer ou a melhor que já ouviu.

Existem almas insuportavelmente tão medíocres que conseguem rir dos próprios fracassos e defeitos ao atribuí-los a outro. Possibilidade de sobrevivência do mundo de cada ser. Parece afirmar: Se não o reconheço em mim, não me pertence.

Algumas lágrimas rasgam os olhos. Incontroláveis gotas descem pela face e acomodam-se entre os lábios que se entreabrem e que as engole novamente para que retornem antes que se percam por aí. Ora, o que seriam lágrimas perdidas por ai?

Na boca de outra pessoa nada mais do que gotas de água com sabor salgado. Nos olhos de outra, colírio! Nas pontas de dedos hábeis, fragmentos de alguma história. Talvez o começo, talvez o ato final, talvez uma pequenina lembrança. Ora o que seriam lágrimas perdidas por ai?

Palavras, gestos, atitudes, sentimentos ou simplesmente um aperto dentro do peito que se tornou nó na garganta? Há tantas suposições envolvendo do que é feito o mundo de alguém que é cansativo demais querer entrar. Entretanto, o desejo de ver e entender o verdadeiro suporte de todas essas coisas.......ah! Isso me induz, a várias hipóteses.

E assim, somos investigadores dessa outra alma. É necessário cutucar, e talvez reabrir feridas e vê-las sangrar.

Estranhamente sinto uma presença...

Ao mesmo tempo que me abraça me causa frio.

Não compreendo ainda bem o porque, mas, antes da viagem peço instruções para obter a fórmula e ter em mãos um vidro com a poção mágica de dona Madá feita de flores e folhas de laranjeira, óleo, babosa e própolis.

III

As letras que marcavam o branco do papel agora era só uma anotação qualquer sem importância que se desfazia entre um rejunte e outro de cimento que unia os quadrados gelados do piso daquele espaço dentro de um tempo que guardava o mistério do mundo de Sofia.

O toque configurado “Wondercall” em volume quatro invadiu o quarto e sem pedir licença foi entrando através do sono profundo e arrancou aquela alma dos braços macios e aconchegantes de Morfeu.

- Desperta! - Acorda! - O Mundo está chamando! - Wondercall! - Wondercall!

Amanheceu como acontece em todos os dias de qualquer existência seja ela humana ou não. Enfim, desde que se abrem os olhos pela primeira vez ao chegar neste planeta seja por gosto, seja por meio de um empurrão ou porque já estavam em tempo e hora de voltar, simplesmente amanhece.....

- Gosto não se discute, tudo bem, mas, eu poderia induzir alguém a provar de olhos fechados um “brigadeiro de panela” e tenho certeza absoluta que essa criatura humana até pode nunca ter provado dessa delícia mas que vai fazer aquela cara de quem está subindo aos céus.... ah isso vai. - Aposto.

Bem, chegar no planeta? Pensemos a respeito: - primeira hipótese de voltar para o planeta: por gosto, por querer.

- “Por favor, não me empurre! Eu tenho o livre arbítrio de decidir se quero ir! ......... Ou não”?

“Assim na Terra como no Céu.”

- E agora? Almas estão descendo (ou subindo) sem esse chip?

- Que chip?

- O chip do livre arbítrio!

- “ Ah!!!!!! Então, por favor, não me empurre”.

Não questionemos as palavras tempo e hora segundo o nosso entendimento atual que se constrói de espaços invisíveis entre dois ponteiros que limitam o “agora”, o “daqui a pouco” e o - “infelizmente, sinto muito cara alma, - a- ca- bou!”

- A cortina de veludo vermelho rubro caiu, fim de ato!.

É bem possível que em algum momento a minha curiosidade desejou refazer o caminho inverso e conhecer o segredo guardado no papel.

- Um copo com água!? Ali, sobre o colchão!? E com água! Por que Sofia não tomou toda a água? Pergunto-me com ar desolado como quem perdeu para sempre a oportunidade de saber. E se não existisse a almofada? Ou se Sofia não a tivesse jogado? Não, não são essas as verdadeiras indagações. O que desejo saber é o que estava escrito no papel! - Um bilhete suicida?

- O número de um telefone?

- Um recado de adeus?

- Uma conta a pagar?

- Uma lista? Sim, uma lista. Mas de quê? Por que ela amassaria um papel e o jogaria no chão? Uma página de um diário arrancada, amassada, esquecida...

Uma cicatriz na alma... A dor tatuada na alma.

IV

As lembranças, quase todas passariam desapercebidas....

Ah!...Se não fosse a dor que se mostra.

Ah! ....Se não fosse a dor que fica.

Quando era criança ao me machucar corria para os braços de minha mãe. Buscava com isso, consolo, afeto, carinho, algum gesto de entendimento de alguém mais alta, mais forte, mais sábia.

Mamãe sempre fazia assim: segurava minha cabeça entre suas mãos que exalavam perfume de laranjeira. - Feche os olhos, dizia ela:

- Respire fundo para o ar mágico entrar no teu corpo e quando ele sair vai levar embora toda essa dor.

Ela repetia várias vezes aquelas palavras mágicas quase inaudíveis e quando eu mostrei que era capaz de repeti-las, me ajudou a decorá-las.

De repente, aos cinco anos minha melhor amiguinha foi fazer parte do coro dos anjos de Deus. - Mas eu sabia que ela não gostava de cantar aquelas músicas chatas. - Eu tenho certeza que ela preferia brincar comigo de corda, de boneca, de nadar no rio. Sei disso porque os anjos que voavam nas paredes e no teto da capela, estavam sempre lá, não brincavam de bola, nem pescavam no rio.

Até que o sono e o cansaço me consumissem, passei a noite e a manhã toda repetindo palavras mágicas. Não faziam sentido nenhum para as pessoas que ali estavam. Elas usavam outras palavras que não faziam sentido para mim. A ausência de Clarinha se tornou uma ferida. Essa ferida ficou aberta e doendo por mais longos seis anos. Por mais que eu respirasse fundo e como um mantra repetisse palavras mágicas de Dona Madá a dor não passava.

Esse foi o tempo que levei para perceber que precisava colaborar com aquela mágica.

Teve um dia que fingi tão bem, que tenho certeza, até ela, minha mãe, ficou na dúvida quanto aos seus poderes.

Não era necessário nem urgente crescer rápido. Com Dona Madá e meu pai por perto não era preciso aprender as coisas da vida cedo demais. Mas as coisas da vida nos chegam como um vento frio ou como chuva forte que leva e lava o que encontra pela frente. E depois devagar a gente levanta com dificuldade e vai juntando os cacos que sobraram.

Tinha um pouco mais que dezessete anos quando Dona Madá segurou minhas mãos e as posicionou de maneira que a sua cabeça ficou entre elas. E depois de me olhar com saudades fechou os olhos, respirou fundo e iniciou o ritual bem baixinho, .... - “entra ar que cura, limpa e tira a dor que dói. - Entra ar que cura e fecha a ferida que dói.”...

Foi como se o tempo tivesse parado. Fiquei ali repetindo aquelas palavras enquanto as lágrimas encharcavam meu coração. Não percebi quando ela parou de respirar, nem quando sua mão caiu ao longo da cama, porém, não sentia mais o perfume de laranjeira com própolis no ar.

Senti um medo enorme de abrir os olhos e ter a certeza de que a chuva com as coisas da vida estava desabando sobre mim.

V

Há feridas que somem com a poção mágica...

Outras deixam cicatrizes na alma.

Meu pai sentou-se na varanda e olhava fixamente para algum ponto no céu. Aquele mês todo não choveu. Um negro manto salpicado de estrelas parecia contar-lhe algo, ficava ali horas a fio em silêncio.

Do meu quarto ouvia o ranger da cadeira de balanço, era ritmado como o ar que entra e sai dos pulmões. Era ritmado como o pulsar do coração, como o ritmo do som de um tambor vindo de muito, muito longe.

Todas as casas próximas da minha tinham uma cadeira de balanço na varanda. Em todas as casas tinha sempre uma avó ou um avô que contava histórias. Em todas as casas próximas da minha pelos oito meses que se seguiram dava para sentir o cheiro de café com broa de milho, dava para sentir o cheiro de pão caseiro que percorria a rua e entrava pelas janelas acordando todas as lembranças e recordações.

Um caderno de capa de couro bem fino foi o presente de aniversário que recebi de meu pai ao completar dezoito anos.

Lembrava uma cor, poderia ter sido rosa escuro, depois rosa antigo e agora só insinuava que havia tido uma cor.

Li o Diário de minha mãe da primeira à última frase quase sem piscar.

Várias vezes precisei engolir minhas lágrimas para que não caíssem sobre a tinta e manchassem as folhas de um papel muito fino já amarelado onde estava registrado os momentos mais importantes da vida daquela mulher meio índia de natureza e meio branca por necessidade.

Eu estive nos braços e amei e chamei de mãe uma mulher com mistérios cuja Terra protegia. Ali naquelas páginas estavam descritos desejos e sonhos eróticos de uma mulher linda, exuberante que nasceu princesa, mas, que por força das circunstâncias carregava feridas na alma. Feridas abertas que sangraram até que encontrou no amor de meu pai a possibilidade de cicatrizá-las. Viveu uma linda história de amor, viveu a vida simples de Madalena.

Dona Madá como era mais conhecida sabia os segredos das plantas, da misturas, fazia remédios e as receitas estavam todas ali naquele diário.

Havia registros sobre minha chegada.

A mulher que me ensinou palavras mágicas era sábia, aprendeu a ler a natureza. Das folhas, raízes e flores extraía com habilidade o alimento, a saúde, a cura e o perfume para todos nós.

A poção mágica feita pelas mãos de minha mãe Madá tinha um cheiro forte de flores de laranjeira com própolis.

Embora soubesse que o médico era um mago muito mais poderoso, a poção e aquelas palavras mágicas foram usadas até o último momento. Durante uma semana eu massageava as pernas e braços daquela mulher com a mais pura das esperanças que cabiam dentro do vidro âmbar. As folhas utilizadas eram as maiores, as mais verdes. Retirava-se o talo e eram lavadas. Picadas com os dedos permaneciam imersas em água com pedaços de babosa por uma semana dentro de um vidro cor âmbar num local escuro. Depois desse tempo a mistura era filtrada através de um pano branco e limpo. Aos poucos se misturava um pouco de gordura, farinha e própolis. Obtinha-se um líquido ou uma pomada.

VI

A cidade mais próxima ficava a trinta quilômetros. Um ônibus saía da frente da igreja às seis horas e voltava às doze horas. Quando não chovia muito a empresa colocava outro às cinco da tarde e regressava às dez da noite. A escola funcionava numa sala da igreja.

A professora ensinava para todos ao mesmo tempo de primeira a quinta série. O restante, não era para todos, só para quem desejava ser alguém na vida.

Ser alguém na vida exigia sacrifícios extras..! Cresci ouvindo meus pais a me encorajar, a ser forte e mesmo que meus pés doessem demais não deveria desistir nunca. E quando as coisas da vida se apresentassem para mim no futuro eu saberia o que fazer e utilizaria o que ainda iria aprender.

- O conhecimento nunca é demais dizia meu pai e nos chamava para sentar com ele à mesa pois iria começar a leitura de outro livro que trazia da cidade sempre que lá precisa ir.

Às vezes levava e trocava por outro, mas, se a história era boa ia para a prateleira da sala. Nessa prateleira não havia pratos, só livros, lugar de honra da casa.

VII

A primeira ferida foi produzida pelo medo pelo abandono. O manto negro da noite cegava até os pensamentos...

É muito provável que Madalena não lembrava seu nome de origem nem a idade que tinha na ocasião, no entanto, registra que caminharam por três luas, tomavam água da chuva e mascavam folhas com gosto ardentes para não sentirem fome. Entre um lugarejo no Peru próximo a grandes montanhas e Cobija na Bolívia, a menina Madá ficou sozinha.

Nesta página do Diário estava registrado um sonho, ou talvez uma passagem da vida de Madá. Descreve um sonho que a acompanhou durante muitos anos de sua vida. Mesmo que se sentisse protegida no abraço de meu pai o sonho não foi embora totalmente. Sobravam alguns pedaços dele perdidos entre a memória da infância e as lembranças da mulher Madalena. “Tremia porque sentia muito frio e o corpo doía muito. Ouvia várias vozes e não entendia o que diziam. Desejava gritar, falar e a voz não saia da garganta. - Logo me banhava num rio e exalava um cheiro horrível de ferrugem. - Tinha as pernas arroxeadas e ver o sangue seco pelo corpo, braços e mãos paralisaram meus movimentos e até meus pensamentos me fugiram.

- Eu escutava uivos e gritos dentro da cabeça, debatia o corpo e as mãos como se estivesse me protegendo de um enxame de abelhas. - Acordava sempre chorando e me doía todo o corpo, toda a alma. - Eu sangrava por dentro. Nunca tive coragem de olhar uma única lágrima, tinha certeza que era cor de sangue.”

Ao terminar de ler o relato fechei meus olhos respirei fundo e cantei entre soluços para mãe Madá, cantei para o espírito de Mãe Madá:

- “entra ar que cura.... entra ar que cura, limpa e tira a dor que dói. Entra ar que cura e fecha a ferida que dói.”...

Prefiro pensar que ela tenha esquecido tudo o que aconteceu ou simplesmente enterrado todo seu passado, toda sua história de amor, medo ou terror junto ao patuá índio que carregava no pescoço até o dia que casou com meu pai.

Agora sim eu conseguia entender porque havia tantos apanhadores de sonhos espalhados pela casa. Um vermelho na porta de entrada, dois amarelos sobre a cama de meus pais, um de cor lilás sobre a minha cama e outro verde no batente a porta que se abria para os fundos da casa.

Todos foram feitos por ela mesma de um fio de junco encerado com cera de abelha e trançado com fios muito mais finos. A rede ia sendo formada e o filtro muito bem trabalhado continha sementes coloridas. Os sonhos ruins, os pesadelos do passado jamais passariam pela fina peneira.

Um vento forte anunciando a chuva entrou pela porta entreaberta e folheou rapidamente o diário da índia Madá.

VIII

Uma folha de laranjeira desidratada pelo tempo e a pena de um pássaro marcavam essa página, ou melhor, esse momento mágico da vida de Madalena.

Agora............Mãe Madalena.

A segunda ferida cicatrizou horas depois.

Não passava pela cabeça de meu pai que uma criança viesse ao mundo sem a presença de um médico, enfermeiras e tudo que se pode ter num hospital.

O maior medo dele era que algum espírito daquelas montanhas longínquas do Peru viesse buscar a sua Madalena ainda mais numa hora onde estaria fragilizada pela dor e sem forças não conseguiria resistir ao chamado que o vento frio trazia.

Seis de janeiro, uma hora e quarenta e dois minutos.

Um vento andino muito gelado entrou pela janela do quarto.

Madá vislumbrou novamente um passado quase esquecido. Teve uma breve visão das montanhas cobertas de neve e uma sensação dolorida e fria percorreu-lhe a espinha. Balbuciou algumas palavras mágicas de proteção e entregou sua alma aos Andes.

Uma hora e cinqüenta e cinco minutos, Madalena beija a fronte do pequeno e misterioso ser que já sem o sopro da vida parecia mesmo assim sorrir entre seus braços.

Espíritos de Yurimaguas seqüestraram o filho da índia Madá.

A mulher frágil e sem forças adormeceu.

Aquele homem sem voz nem lágrimas, saiu do quarto caminhando lentamente, encolheu-se num canto frio entre o final do corredor e uma parede branca e se deixou derreter, chorou todo seu coração, chorou todo seu medo, chorou todos os planos construídos com Madá.

O hospital era mantido por freiras e a pessoa encarregada daquela ala da maternidade tentou amenizar a dor daquele homem.

Senhor Tino como era conhecido sabia ler muito bem, amava as letras e ensinou a mulher a ler e escrever. Gostava e estava sempre escrevendo alguma frase aqui outra ali. Frases soltas e curtas, carregadas de filosofia. Os tesouros de Seu Tino eram seus livros, obras de sabedoria.

Era um tanto estranho, só mesmo o amor e destino para unir uma índia dos Andes Peruano e o senhor Tino.

No berçário uma frágil criatura também recém chegada neste plano terrestre experimentava com dificuldades respirar sozinha. A mulher que a trouxe ao mundo desencarnou logo em seguida ao dar a luz.

A enfermeira garantiu que a moça desejava doar a criança, pois, era solteira e a gravidez foi um erro, um acidente de percurso como dizia a pobre mulher.

- Senhor Tino, parabéns! - O senhor e dona Madalena são pais de uma linda menina.

Sofia nasceu em seis de janeiro de 1986, uma hora e cinqüenta e cinco minutos.

Sem muitas explicações do Sr. Tino e sem perguntas, Madalena me recebeu. Seus braços me aninharam. Aconchegou-me no seu colo e aqueceu meu ser com seu leite. Cantava baixinho, uma canção mágica, uma cantiga que deve ter ouvido muitas vezes na infância.

Através daquela cantiga Mãe Madá apresentava meu espírito aos seus antepassados e lhes pedia proteção.

Alimentava minha alma, enquanto alimentava meu corpo com energia e amor.

IX

Enquanto eu viver, eu juro proteger e amar.

Tenho dois tesouros: Madalena tua mãe, responsável pelas batidas do meu coração e tu minha pequena, responsável pelo meu riso de todas as manhãs.

Não sei como era possível, mas, para meu pai era sempre primavera. Todas as manhãs ele entrava no meu quarto com uma florzinha do campo. Abria a cortina e a janela. Ajoelhava-se no chão e me acordava com um beijo na testa. Eu abria os olhos bem devagarzinho queria sempre pegá-lo de surpresa sem o riso de todas as manhãs.

Então ele dizia: - quem teve bons sonhos acorda sorrindo!

Colocava a flor no meu cabelo e me mostrava pela janela que o dia estava me esperando pra brincar. Todos os dias eram assim, iguais podia estar chovendo, frio ou quente.

Era outono, lembro-me bem, acordei antes de meu pai e fiquei na janela espiando. Ele caminhou até uma árvore e retirou um ramo de folhas amarelas, corri de volta pra cama. Meu pai e minha mãe entraram no quarto com aquele ramo de folhas amarelas envoltas num laço de fita cor de rosa. Esperei o beijo, acordei de fato e recebi deles aquele presente da natureza. - Levante-se Sophia vamos celebrar a chegada do outono!

Janeiro, doze anos. Na véspera do meu aniversário comemos um gostoso bolo de laranja. Achei estranho, mas, não comentei nada.

Quando fomos dormir o senhor Tino muito sem graça me pediu desculpas porque justamente no dia do meu aniversário eu acordaria sozinha sem o seu beijo. Eles iriam ao médico, mãe Madá iria consultar um oncologista. Sairiam cedo e pela noite estariam em casa. Se desse tempo me buscariam no colégio e viríamos todos de carro.

X

O piquenique era a forma mais deliciosa de me contar sobre as coisas da vida.... O sofrimento também faz parte do mundo e se estou nele, preciso sofrer. (?)

Até hoje discordo que aprender pela dor seja mais necessário ou mais efetivo do que aprender pelo amor. - Talvez do ponto de vista de quem ensina? Mesmo assim só se a pessoa que ensina não tiver amor suficiente.

O Ipê amarelo sempre foi a árvore mais linda daquele lugar principalmente quando o sol parecia brincar de acordar todas aquelas florzinhas.

Era mágico! O mesmo sol que despertava o riso da infância despertava também a cor das flores e a brisa leve e suave passeava por entre elas e eu da minha janela assistia alucinada aos fragmentos de ouro que cintilavam por entre os galhos e bailavam até caírem no chão.

Sobre a mesinha de meu quarto havia um pequeno porta-jóias e abrí-lo me faria recordar e como que por encanto fechei meus olhos e senti o perfume de flores de laranjeira. Abri o potinho e aqueles fragmentos de ouro espalharam-se junto com minhas lembranças.

Deitava minha cabeça no colo de dona Madá e com carinho ela alisava meus cabelos que exalavam um cheiro bom de óleo com erva doce. Sempre que um piquenique estava sendo preparado eu já sabia que iria aprender coisas importantes e teria que guardar aqueles ensinamentos por toda minha vida. À medida que eu crescia os “pikniqs” aumentavam. Lembro-me de vários assuntos importantes como sobre a higiene íntima, a menstruação, sobre deixar ou não ser tocada, namorado, casamento, futuro, profissão, emprego, enfim coisas que fazem parte da vida de qualquer menina, que provavelmente estavam escritas em algum livro, alguma revista, na escola, televisão. Nunca me importou saber se nas outras casas tinha uma árvore dourada onde se fazia “pikniqs”.

Para mim aquilo era bom e se era bom e junto com meus pais me parecia melhor ainda.

Mal sabia eu que minha mãe precisava correr contra o tempo e me ensinar tudo que pudesse. Mas queria que eu soubesse e aprendesse pela voz do amor.

Permaneci um bom tempo encostada na minha árvore dourada enquanto os fantasmas de todos os meus anos se encarregassem de preparar o último “pikniq”. Uma rajada de vento brindou-me com vários pingos de ouro e eu sorri agradecida.

Despertei naquela manhã com um beijo na testa e sobre o travesseiro as florzinhas douradas. Mesmo que eu tentasse entender deixei que a explicação se tornasse mágica como um raio de sol que tocou meu rosto tão suavemente como um beijo. Neste momento não havia lugar para a razão e guardei para mim o último beijo paterno e as últimas flores, e.... Simplesmente sorri.

XI

Partir, ir embora.

Adeus casa minha, adeus minha árvore dourada.

Ficar para o quê?

Ficar por quem?

Fui tocando em cada objeto, em cada lugar da casa como se pudesse levar um pouco da energia daquelas coisas. Passei as mãos sobre os livros de meu pai, olhei para os apanhadores de sonhos e perguntei que pesadelos, quantos sonhos ruins, quantos e quais desejos estavam ali aprisionados?

O vento que entrava pela fresta de uma janela, assoviava uma canção. Deixei-me levar pela imaginação e recolhi os filtros de sonhos ruins, estava na hora de mudar a função daqueles objetos tão bem tramados, tão bonitos que mais pareciam enfeites.

Por um instante pensei se deveria libertar todos aqueles desejos... Aqueles sonhos... Ou seriam pesadelos? Fantasmas do passado ou não estariam ali todos, aprisionados.

Amarrei um a um nos galhos do Ipê, então pedi a grande árvore que transmutasse a energia antes de libertar todos os medos da Mãe Madá.

Naquele momento em que me despedia abri mão de todos os meus sonhos, meus desejos, levaria somente algumas lembranças felizes. Algumas recordações para que eu não perdesse o elo com o passado e todos os ensinamentos que vieram pelos “pikniqs” importantes.

Hora.

Hora de ir.

Tempo.

Tempo de renovar, reconstruir e começar a reconhecer o que já sabia para conhecer coisas que ainda iria aprender.

XII

Da janela do ônibus dava para se ver o futuro que vai passando como capítulos a cada volta do ponteiro das horas.

O que eu poderia imaginar? Melhor seria saber primeiro o que me é permitido imaginar.

As pessoas descem do ônibus e algumas são recebidas, outras não. Caminham rapidamente para algum lugar. Todas as pessoas que estavam naquele ônibus sabiam para onde deveriam ir. Todas elas estavam indo para algum lugar ou para alguém que as estivesse esperando em algum lugar. -Todas?

Sim. Menos eu.

Quem era eu?

- Hoje, cinco anos depois eu sou.

O primeiro passo já foi dado, agora é preciso caminhar e caminhar rápido. O dia é pesado, quente, abafado, barulhento, tem cheiro forte, cheiro de tudo. Observei que as pessoas cruzam por uma passarela, parece bom atravessar alguma coisa, um marco entre chegar, e ficar, entre sair e voltar. Respirei fundo e quase sem nada no pensamento, e sem nada no estômago fui... sem estrelas para me guiar, sem destino.

Caminhei. Andei por todas as ruas visíveis e invisíveis, buscando, tentando encontrar o que ainda não sabia. Meus pés doíam tanto, que quase nem mais os sentia. Precisava encontrar um lugar para passar a noite.

XIII

Juras de amor renovadas. Tudo seria perfeito se não fosse cruel demais.

O telefone tocou. O coração entendeu e acelerou.

O médico solicitou-me que fosse ao seu encontro, já tinha em mãos o resultado que esperávamos. Passaram-se seis longos meses e agora a dúvida acabaria.

Entrei na sala do consultório e como se meu olhar pudesse falar, a pergunta estava feita.

A resposta foi calorosa, afetiva e tinha uma esperança tão pequena, tão limitada que quase sumiu.

Caminhei pelo corredor de paredes brancas. Deslizei todo meu corpo até o chão e meu ser inundou-se em lágrimas.

XIV

Abro a porta do apartamento como de costume. I started a joke agora a grande piada era eu. Eu e meu sofrimento.

A cama parecia pequena demais para suportar tamanho pesadelo.

"Deito-me e tento recolher todos os sonhos, sentimentos, toda a felicidade que pensei sentir. Trouxe para perto de mim todas as músicas que escutamos juntos, os significados de todas as palavras, de todos os aconchegos. Trouxe para dentro de mim todos os poemas, todas as palavras de amor. - Olho para ti pela última vez, toco teus lábios na fotografia, sento teu beijo, sinto teu calor, me aconchego no teu abraço”. Adormeço.

Passava das quatro horas quando despertei e uma dor enorme lembrava-me que ainda estava em cena. A grande cortina de veludo vermelho ainda não havia encerrado o ato.

Sofia certamente relê o resultado do exame na esperança mágica de que tivesse algum engano. Isso poderia acontecer não poderia? Claro que sim, mas não agora, não com ela.

Imagino que ela tenha amassado com raiva e ódio aquele papel onde estava carimbado a sua sentença. Sim, o fim do ato.

O papel ficou ali no chão, num universo a parte do universo de Sofia.

- Talvez ele se desmanche e deixe de existir. Talvez isso seja somente um pesadelo, um sonho ruim e...

Entre lágrimas, vejo Sofia chorando e soluçando, tentando respirar e em seu auxílio começo a recitar o mantra mágico de Madá: - “entra ar que cura, limpa e tira a dor que dói. - Entra ar que cura e fecha a ferida que dói.”... - entra ar que cura, limpa e tira a dor que dói.

-Entra ar que cura e fecha a ferida que dói.”...

Essas palavras não são mágicas? Fariam efeito?

Talvez ela precisasse urgentemente da poção mágica de flores de laranjeira! Talvez Sofia teria suplicado:

- Óh minha mãe Madá! Venha me socorrer! -Venha curar-me mãe Madá eu imploro!

Desejei por um instante ver Sofia criança novamente e sentada no colo daquela índia curandeira que sabia palavras mágicas...desejei que essas mesmas palavras realizassem a cura.

Pela janela um vento frio entrou...chorei com Sofia o vazio, a solidão.

Deixo-me invadir pela estranha presença e lá estou eu ao lado de Sofia:

-Peço permissão e invoco a presença dos espíritos das longínquas montanhas do Andes Peruanos.

- Entrego-lhes Sofia, a descendente de Mãe Madalena.

De repente o céu estremeceu. Um ponto de luz no céu chorou...

(Aos espíritos do Yurimanguas...)

Vento de Outono
Enviado por Vento de Outono em 04/02/2010
Reeditado em 22/02/2011
Código do texto: T2068622
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