A luxúria de meus lençóis...

Que visão linda e aconchegante. Era como presenciar um sonho ter aquela visão de um anjo tão lindo ao meu lado. Que pureza. Que santidade.

Eram essas as sensações que alimentava enquanto assistia meu amor deitada, dormindo enrolada entre lençóis e travesseiros na minha cama. Podia perceber sua paz e serenidade esmaltadas no sono leve e puro de quem tem a consciência tranqüila acerca do porvir da vida e do amanhã.

Sua serenidade ao ressonar de seus suspiros transmitia uma auto-suficiência absurda que, ao mesmo tempo, assustava e instigava querer conhecê-la ainda mais.

Que inveja de seu sono e de seus sonhos. Inveja maior, porém, alimentava pelos objetos de sua redenção ao onírico. Os meus lençóis a envolviam numa dança lasciva e intensa, reverberando seus desejos mais ardentes no resultado de um dormir abençoado. Era a volúpia de um instigar envolvente e repleto de intenções. Aqueles lençóis de minha cama ganharam vida e a possuíam tal qual um amante apaixonado buscando o último suspiro do prazer extasiante.

Aqueles lençóis lançavam sua seda sobre o corpo de meu anjo num desejar ardente e ofegante, num ritmo descompassado do frenesi do pecado e da luxúria. Tudo isso me aviltava e me oprimia, pois pude perceber que era apenas espectador de uma simbiose ao qual não fazia parte. Fiquei repleto do sentimento vil do ciúme ao perceber que este amor onírico encontrava morada nos braços e sonhos de meu anjo particular. Não podia suportar tamanha dor ao ver que seus suspiros de prazer e gozo eram devotados àqueles lençóis e seus travesseiros. A minha cama havia se tornado um reduto da cumplicidade alheia e explicita entre ela, meus lençóis e os sonhos de ambos.

Foi triste a constatação de tal verdade. Havia me tornado um mero ornamento desnecessário ao amor que pretendia desposar. Como queria tê-la entre meus braços, como queria tê-la repousando suas mãos sobre meu dorso e sentido o pulsar de seu coração em meu peito. Como queria exalar seu cheiro na cumplicidade da carne, devotada antes de tudo, na beatitude das minhas intenções. Era um aspirar apaixonado. Era um desejar afogueado. Era um inquirir desajustado.

Nesse ponto ela quebrou o transe de seu sonho. Balbuciou algumas palavras sobre o avançar das horas do dia e de como seu sono não deveria ser perturbado. Repliquei sobre meus desejos incultos e pueris de tê-la em meus braços com o mesmo ardor de meus lençóis. Um riso despretensioso foi sua reposta maior, acompanhada não antes pelo envolver-se novamente nos tentáculos de luxúria de meus lençóis.

Nessa hora, percebi indubitavelmente que meus lençóis haviam ganhado vida e covardemente achacavam-me com a certeza que não poderia empreender esta batalha de conquistar meu amor novamente sem perdas. Minha desvantagem era incomensurável e desleal. Não possuía os mesmos argumentos de meus lençóis naquele momento. Não poderia socorrê-la sem despertá-la do transe vil e lascivo ao qual se encontrava.

A argumentação de meus lençóis era muita explicita: “- Não tentes ganhá-la nestas condições pobre incauto, pois haverá de perdê-la. O prazer que seu anjo e amor devota em meus braços não estão em negociação. Esqueça-a, pois nesta hora seu amor é exclusivo e unicamente meu”.

Não podia agüentar estas palavras me massacrando, ainda mais vindas de meus lençóis, objetos inertes sem pulsação e conhecimento dos mistérios e segredos de meu anjo.

“- Esqueça-a você – foi este meu brado – Tenho plena consciência de minha desvantagem nesta hora e não sou leviano o bastante de empreender uma luta quixotesca contra sua perniciosa influência. Contudo, saiba que somente tens seus momentos de luxúria graças à minha intercessão, pois se eu não houvesse conhecido meu anjo e tesouro, de forma alguma você estaria se gabando de suas conquistas.”

Por segundos puder perceber a vitória de meu argumento, mas a resposta de meus lençóis desarticulou-me por completo:

“- Pobre alma. Não esqueça você, contudo, que não sou apenas um. Somos muitos na vida de seu anjo. O que você apenas presenciou nestes breves momentos de minha luxúria e de minha possessão na sua cama é a voga atual da vida de seu amor entre os lençóis que você não vê e que sempre a acompanharam em sua vida. Aprenda e reconheça vossa impotência com a humildade necessária para habilitar-se digno de tê-la entre seus braços da mesma forma que a possuo. Saibas que, apesar da intensidade de meu contato, é com você que este anjo divino quer compartilhar sua estrela. Sou apenas um objeto de prazer momentâneo, fruto de sua criação e ciúme pueril, que se avoluma e esvaece na mesma intensidade entre o adormecer e o despertar da vigília, tal qual agora.”

“- De que adiantas possuir seu amor num estado inconsciente se não posso tê-la pelo seu livre-arbítrio? Não me orgulho de meu destino e você nem deveria invejar-me, pois meu fardo é pesado e ofegante, haja vista que apenas sou respaldo para os sonhos que ela tem sobre você. As escolhas de seu amor já estão traçadas, mas por hora, apenas confidenciadas a mim e a ninguém mais. No momento certo você será senhor de todos os conhecimentos que guardo em meus feitiços e terás que arcar com o peso das responsabilidades que eles implicam em suas próprias escolhas.”

Não tive o pressuposto da réplica, pois percebi o quanto havia sido injusto em considerar que meus lençóis pudessem de fato, roubar de meus braços o meu anjo amado. Sim. Deveria revestir-me da humildade necessária para sorver o néctar puro do amor que sempre busquei em minha vida e da poesia que meu anjo havia me mostrado. Resolvi encarar aquela cena de volúpia em minha cama não mais como espectador inerte, mas, sobretudo, como mecenas e ator principal daquele espetáculo.

Diante de tais constatações, meus lençóis sorriram e me disseram: “- Compreendeste bem o peso da responsabilidade de suas ações. Portanto, não me invejes nesta hora, pois sou apenas a parte ínfima de todo amor que seu anjo lhe reserva e lhe devota. Teu porvir será abençoado por este anjo que tens ao seu lado nesta cama. Toda nossa falange de lençóis não consegue ter mais o mesmo ardor de luxúria após tua chegada na vida deste anjo. Deixe-me ao menos cumprir meu destino em holocausto ao pouco de prazer inconsciente que posso proporcionar enquanto ela ainda dorme...”

Estas palavras de meus lençóis ressoaram em meu íntimo num misto de euforia e tristeza. Eufórico, em perceber que teria a exclusividade meu anjo ao meu lado num futuro próximo e no porvir de nossa estória ainda não escrita, conjugando nosso ideal de felicidade juntos, sem o peso da traição inconsciente e enfeitiçada que aqueles lençóis destilavam. Triste, por saber do destino daquele objeto fruto de minha própria criação e do ciúme canhestro que havia fomentado.

Neste momento percebi que meu anjo havia despertado por completo com um beijo apaixonado em meus lábios juntamente com o desejo de bom dia. Finalmente, sorri e agradeci aos céus por mais um dia na presença de meu anjo particular, sentindo um alívio estranho quanto ao ciúme de meus lençóis de outrora, pois ela, de fato, não trazia lembrança alguma da lascívia e do ardor das palavras daquele objeto; criação extemporânea e fugaz de meu próprio desejo e de todas as minhas intenções.

Ad majora natus.