JOCÁ E TRISTÃO

Jocá era conhecido em muitas fazendas pelo interior do Rio Grande do Sul. Cavalgando seu belo e doce companheiro Tristão. Jocá lhe dera este nome, porque parecia triste em virtude de manchas do pelo que lhe conferiam a aparência pouco comum para aquela raça de cavalos. Ganhara o animal como prêmio por ter sido o único capaz de domá-lo e ainda hoje, era o único que o animal permitia montar. Jocá vivia assim, sem paradeiro fixo, de fazenda em fazenda sem criar raízes. Sempre com o violão as costas, tocava o instrumento com maestria e era capaz de tocar desde o sertanejo dominante em regiões agrícolas ao mais complexo tema clássico. Estudara música no conservatório da cidade e o violão era sua paixão desde tenra idade. Diziam que seu violão valia por 10, tal a habilidade com que seus dedos manipulavam as notas, arrancando sons quase impossíveis para um instrumento de seis cordas. Ganhara o violão também em um duelo entre violonistas, numa festa campeira no Interior de Livramento. 35 anos, dos quais a metade vivida em estradas e fazendas do estado. Seu nome, José Carlos, a alcunha de Jocá ganhara em virtude da dificuldade que seu irmão menor tinha de pronunciar o seu nome, daí o apelido espalhou-se e assim ficou conhecido. Homem forte e ágil, exímio domador, tinha, no entanto a capacidade de dialogar com os animais. Diziam que os animais entendiam o que ele falava. Filho de pai índio e mãe espanhola aquele moreno de longos cabelos negros fazia muitos corações femininos pulsarem a sua simples presença. Já tivera muitas namoradas, mas, não se prendia a lugar nenhum. Talvez o sangue de ciganos espanhóis entre seus ancestrais o fazia sempre ansiar por viver de um lugar para outro e até o momento nenhuma de suas namoradas conseguira prende-lo. Numa dessas andanças, vinha por uma estreita estrada de chão batido, com o sol quase se pondo em um final de tarde onde o céu parecia pintado de vermelho com matizes alaranjados. Tirou o violão das costas e falou,

- Devagar Tristão, quero tirar umas notas. O cavalo pareceu entender e passou a trotar macia e suavemente. Perto dali vislumbrava-se uma entrada de porteira ao lado de um imenso carvalho de sombra generosa. Fazia calor e Jocá resolveu entrar e dirigir-se a casa que se via uns 300 m para dentro. Uma construção antiga, com uma varanda típica de construções em estilo português. Iria pedir um copo dágua para matar a sede. Mandou Tristão esperar, não precisava amarrá-lo. Ele ficaria ali pastando alguns nacos do capim abundante. Percebendo que havia na varanda uma moça sentada em uma cadeira de balanço, continuou a tocar o instrumento enquanto andava. Notou que a moça movia o corpo suavemente acompanhando o ritmo da música, na verdade um improviso de áreas clássicas com ritmos ligeiros da música popular. Notou que a moça balançava o corpo, mas, não o encarava, parecendo estar com o olhar distante.

– Boa tarde moça, falou parando de tocar.

– Boa tarde, você toca muito bem, já estava ouvindo desde longe.

- O que deseja? Perguntou a moça.

- Só queria um copo dágua. Respondeu percebendo que a moça não o encarava. Ela continuava com o olhar perdido no horizonte. Chamou a mãe, e pediu que servisse um copo dágua ao rapaz ao que a senhora de uns 50 anos atendeu, elogiando a beleza da música Jocá não se conteve e perguntou chamando a velha de lado.

– Ela está doente? Ao que a velha respondeu.

– Moço, minha filha é cega, não enxerga nada. Jocá ficou chocado. Era uma pena que uma criatura tão meiga e bonita não pudesse ver.

– A moça pediu em um tom de voz suave e doce que lhe fez pulsar o coração,

- Você toca a Ave Maria de Schubert?

Jucá não respondeu, surpreendido pelo pedido da moça, simplesmente pegou o violão e o som de 10 violões encheram o ar. A bela página de Shubert parecia executada por uma incrível orquestra de cordas. Enquanto tocava Jucá percebeu que os olhos da moça estavam cheios de lágrimas e que a velha escorada na porta também chorava discretamente. Quando terminou, a moça pediu, - Moço, chegue mais perto deixe eu ver o seu rosto. Jocá aproximou-se. A moça suavemente pousou a mão macia sobre seu rosto e acariciava-o como que a tentar adivinhar os contornos e formas que compunham sua fisionomia. Jocá ficou emocionado e prometeu que voltaria para tocar para ela. Tinha um serviço acertado em uma fazenda perto dali e assim que terminasse voltaria. Tomou seu cavalo e seguiu desta vez com o violão as costas e pensativo, não conseguia tirar da cabeça aquela bela figura. Voltaria sim, queria vê-la de novo, algo estava acontecendo com ele. Ninguém antes o impressionara daquele jeito. Na fazenda a doma de quatro cavalos lhe tomaram uma semana de trabalho. Terminado o trabalho, dinheiro no bolso, tratou de tomar um banho, barbear-se e depois de vestir sua melhor roupa, encilhou o Tristão e rumou para a casa da moça, lembrando que nem sabia seu nome. Ao aproximar-se da porteira já era noite e notou que dois cavaleiros saiam apressados. A noite ainda lhe permitia ver com clareza e pode perceber que ao vê-lo, os dois aceleraram o galope sumindo rapidamente. Um pressentimento tomou-lhe os sentidos e tratou de acelerar desta vez entrando porteira adentro sem apear. A porta da sala estava aberta e um silêncio ensurdecedor se fazia sentir. Jocá encontrou a porta do quarto entreaberta e o que viu o fez estremecer.

Deitada sobre a cama em uma poça de sangue a bela garota cega estava semi-nua, as roupas rasgadas e evidentes sinais de violência e mais ao lado caída sobre o assoalho a velha mãe com os olhos esbugalhados e um filete de sangue escorrendo de um furo de bala na testa. Ele deu meia volta e saiu em desabalada corrida não tinha nada a fazer ali e de um salto caiu sobre o lombo do Tristão e apenas falou, - Voa amigo agora preciso de você. Nem foi para a porteira, precisava ganhar terreno e conduziu o animal direto para a cerca. Tristão em um salto perfeito voou sobre os arames farpados e pousou com elegância já quase na estrada. Ele sabia que os cavalos que vira não eram páreo para o Tristão e que na direção que iam não havia nada além da estrada e campo dos dois lados. Tristão voava sobre as patas e ele nem precisava usar as esporas, sabia que o animal o entendera. Não demorou muito para visualizar os dois galopando e esporeando seus cavalos. Mas perdiam terreno rapidamente e ao aproximar-se mais, um deles virou-se e atirou. A bala raspou-lhe o ombro esquerdo queimando e fazendo correr sangue. Ele não se importou e apenas esperava a distância certa, abaixou-se mais e uma seqüência de tiros quase o acertou. Foram quatro tiros e agora ele sabia que os bandidos não tinham mais balas. Somente um deles tinha um revólver. Foi então que em sua mão surgiu a faca que voou certeira atingindo um deles no pescoço. O cavaleiro rolou caindo ao solo como um boneco desarticulado. Jocá parou o cavalo e de um salto juntou a faca iniciando a perseguição ao outro. Ao aproximar-se novamente, a faca mais uma vez voou de sua mão, mas agora tinha outro destino. Foi encravar-se na espinha dorsal logo acima da cintura. O cavaleiro soltou um grito e levava a mão as costas tentando desesperadamente arranca-la. Jocá aproximou-se e puxou-o pela gola da camisa arrastando-o junto ao cavalo. Depois deixou que se estatelasse ao solo. Saltou sobre ele e seus poderosos socos o atingiam ferozmente sem dar tréguas. Mas o bandido era um homem forte e conseguiu puxar a faca. Jocá sentiu a lâmina penetrando-lhe a carne. Ele conseguira atingi-lo no abdome. Mas ainda tinha forças e socou o homem até que seu rosto virasse uma bola disforme ensangüentada. Só parou quando teve certeza que o bandido estava morto. O corte não era profundo, mas rasgou a camisa e fez uma atadura em volta da cintura. O bandido conseguira ainda atingir sua coxa esquerda e ele não conseguia pôr-se de pé. Tristão vendo o dono assim aproximou-se e ajoelhou-se quase deitando ao solo. Com dificuldade, Jocá conseguiu montar e tomou o caminho de volta para a fazenda onde havia trabalhado. Lá ele seria medicado e poderia seguir em frente. A perna e o ferimento doíam muito, mas ele falou, - De vagar amigo, quero tirar umas notas. E o som de 10 violões voltou a encher o ar com os acordes da Ave Maria de Shubert. Onde quer que estivesse agora a bela garota cega, ela certamente estaria ouvindo. A lua cheia surgia no horizonte parecendo feliz com a bela música e iluminava a silhueta garbosa do cavaleiro solitário e triste. Pela primeira vez em sua vida, aquele homem de vida rude e dura permitiu que uma lágrima corresse sobre sua face.

Lauro Winck
Enviado por Lauro Winck em 13/04/2010
Código do texto: T2194154
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