O OLIMPO (aos que fogem)

Será que ele conseguirá chegar a tempo? No sufoco da vida, do dia a dia, correndo de um lado para o outro como se estivesse atrás de algo muito importante, atrás da salvação de alguém (de sua mãe já não haveria mais tempo), perseguindo algum significado para sua vida, afinal sempre haverá de haver em algum lugar um sentido à espera de se fazer sentido. Ou ao contrário, fugindo desesperadamente, e sempre, da mesmice da vida, do dia a dia sufocante, cegamente, loucamente, apavoradamente, estonteantemente, miraculosamente, feito uma criança que sai correndo pela areia em direção ao mar, e quando se dá conta, está em meio à areia quente, abrasadora, não há mais como voltar atrás, e seguir em frente é prosseguir queimando as solas dos seus pés, só lhe restando, em vão, correr o mais rápido tentando pisar lépida, engolindo a dor que lhe sobe dos pés, e que antes de ser amenizada ao pisar na água, mudará de tom e não de intensidade, no choque térmico que será intenso, imenso, no tecido calcinado dos solados. Ao menos a criança sabe desde o começo o seu destino, o que está a buscar, enxerga o mar crescendo diante de sua corrida, ao contrário do nosso personagem, que corre de si próprio, tentando encontrar aragem, água fresca, sombra, porto seguro, ou qualquer coisa que assim o valha, em algum lugar, ou tempo, ou movimento, ou sentimento, ou no mar do silêncio, que venha lhe invadir, lhe possuir ao menos em parte, aliviando as chagas nos solados de sua alma.

Lá vai ele saindo de um trabalho e correndo para outro, sempre atrasado, o tempo não consegue contê-lo, ele sempre extravasa, transborda, resvala nos horários, e nem por isso deixa de ouvir o som do seu rádio, ou de dirigir devagar, ou até mesmo de parar na padaria daquela esquina para comprar um refrigerante, um biscoito ou um chocolate, e de sorrir para a moça bonita do caixa e de agradecer ao obrigado dela. E de sair da padaria se sentindo um pouco mais leve, como se aquela interrupção, aquele pequeno oásis no meio do imenso dia que não começa nem termina, feito de inúmeras noites e inúmeros dias, sóis e luas, viradas e mais viradas dos ponteiros dos relógios, aemes e piemes, seria mais bonito se estivéssemos no tempo das ampulhetas, a areiazinha fina, muitas das vezes multicolorida, descendo feito poeira e formando um montinho informe no recipiente de baixo, tempo palpável quase degustável, simples e lógico, movido por nós, controlável, com começo meio e fim, tão diferente desse outro que domina o mundo (ao menos a Terra), e à nós homens particularmente, o verdadeiro grande patrão controlador, que dita suas regras despoticamente, alheio às peculiaridades de cada lugar e de cada um dos seres humanos – tens que almoçar agora ou ficarás de barriga vazia pelo resto do dia, tens que se levantar agora e forçar seu intestino a funcionar, ou ficarás incomodado pelo resto do dia, se arriscando a passar por momentos de mal estar intestino em plena reunião de negócios, por exemplo, ou quando deverias estar prestando toda a atenção em alguém, em um outro, e não às voltas com sensações tão primitivas e verdadeiras.

Lá vai ele e por pouco não se apercebe do carro que vai logo à sua frente, não fosse o semáforo, esse outro ser pertencente à família do tempo, ter interrompido o fluxo naquela rua, e o carro ter parado logo adiante de si. Mesma cor, mesmo modelo, e... mesma placa. Apesar da iluminação da rua, não consegue enxergar quem é o motorista. O choque dentro de si é inevitável, confusão em sua cabeça, porém não há tempo para pensamentos, o sinal se abre, verdeja, o carro à frente dá a partida, os dos lados também, em pouco os de trás apertarão suas buzinas, sua saída é imperativa, automática. Nas batidas fortes do seu coração surge a curiosidade, a vontade, a necessidade de seguir o outro carro, estará indo ele para o mesmo lugar? Se assim for, tanto melhor, não se atrasará tanto para chegar no outro trabalho, mas não terá sentido, ou melhor, não haverá a menor graça nessa história que tenta se contar, se ele seguir o mesmo caminho do nosso personagem, afinal se encontrarão logo ali na frente, farão como se diz, as pazes, e a história acabará antes de haver tentado ao menos se iniciar. Certamente que não, o carro toma direção oposta, na verdade vai em frente ao invés de dobrar à direita, o que seria o caminho de todo o sempre, de todos os dias e semanas e meses e anos. Por um bom tempo (ou talvez fosse melhor usar a expressão “mal tempo”) nosso personagem R segue impaciente, exasperado, exacerbado, atrás do outro como se quisesse ou pudesse imprimir nele um ritmo mais rápido, o fizesse correr, talvez ainda esteja com a ilusão de que conseguirá conciliar as coisas, comprimir as coisas dentro daquele curto pedaço de tempo o qual imagina ainda ser possuidor, mas tudo em vão, o outro, o da frente, continua tranqüilo em seu ritmo, seguindo indiferente, se puder vê-lo constatará um sorriso em seu rosto, um ar de contentamento crescente, pouco está se lixando para os que estão atrás de si! Está mesmo é cantarolando uma música, cheio de alegria, ar peralta, parece na verdade que o rádio é quem o está acompanhando na melodia. Vai atravessando a cidade de um lado a outro, sempre em frente, até alcançar os arredores, os bairros mais distantes do centro. Em certo ponto, entra numa ruela, pára frente a uma casa, só o tempo suficiente para que uma pessoa, uma companheira de viagem, entre e se sente ao seu lado. R aos poucos vai relaxando, se deixando, como se diz, levar pelo outro, se envolvendo cada vez mais naquele novo caminho, aos poucos o coração batendo forte num outro compasso, sem a exasperação do Pássaro de Fogo 1, mais ao ritmo das Quatro Estações 2, passeando por Corelli, por Albinoni, e por ai afora. A estrada, fora da cidade, é fresca e tranqüila, vazia e fácil de se caminhar. Poucos carros seguem naquela direção, as pessoas em geral estão mais interessadas e envolvidas com as coisas da cidade, do seu centro. As pessoas estão sempre muito ocupadas com coisas muito importantes que requerem muita atenção e compenetração e seriedade e responsabilidade e da qual muitas outras pessoas dependerão para prosseguirem suas vidas também por sua vez sempre repletas de outras tantas coisas sérias e importantes e imprescindíveis para assim prosseguirem as suas vidas e as de outros tantos e tantos e sempre, num moto contínuo que só varia de tempos em tempos nas peças que o compõem, substituição das mais velhas pelas mais novas, ou de uma ou outra, acaso escangalhadas, por algum motivo fortuito, fora de hora, não é isso o importante da coisa.

O sair da cidade e seguir pela estrada afora vai aos poucos provocando, dentro de R, um ar de liberdade, um caminhar na noite que se inicia, ao mesmo tempo tão igual e tão infinitamente diferente de todas as outras, na escuridão que faz brotar as fantasias várias, que dá corpo aos sonhos, que faz fecundar as sementes que germinarão no clarear do dia. Noite que permite o reinado da Lua, trazendo a festa da loucura, a embriaguez dionisíaca, o carnaval dos corpos impregnando as almas que assim se permitem. O luar é tão intenso que faz, tanto R quanto o outro, apagarem os faróis, seguirem no véu aveludado cinza azulado claro, o céu coberto de estrelas pulsando vivas, dando vivas ao mundo de cá de baixo. Seguir para a festa, não importa onde nem como, sem ter outro motivo para ela, tão somente aquele de ter se desviado do caminho de sempre, de ter eleito uma noite qualquer em algum lugar qualquer, para fazer dela, noite, a noite em festa, não mais fugindo, ou correndo ou se exasperando para se conter no tempo. Ou fazendo da fuga o grande motivo, o grande encontro, a grande razão de se viver, afinal quem será o definidor do que vem a ser um encontro ou uma fuga? A sociedade, a cultura, a moral, nós mesmos? Um tanto de cada? Estou me lembrando do filme Mediterrâneo, onde um grupo de soldados italianos fugindo no mar, atracam numa ilha mediterrânea, sem o saber e, aos poucos, vão construindo um sentido novo para suas vidas, um filme dedicado aos que fogem...

Refeito no novo caminho, R percebe que o carro à sua frente vai perdendo velocidade, até que se deixa ultrapassar, e é quando se depara, a princípio admirado, com a companheira ao seu lado, bonita sorrindo um sorriso solto, tocando de leve com sua mão esquerda a coxa direita dele, como se confirmando com o seu toque, o ritmo, a tensão imprimida por ele contra o acelerador, ou talvez tentando suavizar ainda mais o ritmo daquela viagem, mais para Clare de Lune 3, como se o próprio carro pudesse assumir o controle do ato de dirigir, numa espécie de piloto automático, deixando aos dois a possibilidade de irem inteiramente para a festa.

Como que sem querer, R olha pelo retrovisor e se surpreende ao enxergar, se afastando cada vez mais deles, o carro com a mesma cor, mesmo modelo, e... mesma placa. O outro vai ficando cada vez mais para trás, até se transformar num pontinho perdido naquela estrada fora da cidade, provavelmente seguirá por algum desvio para a direita, retornando para a cidade e para o trabalho e para os compromissos e dias e noites e meses e anos...

O cheiro forte da noite invade o interior do carro, chegam os aromas das árvores, dos capins, dos pastos circunvizinhos apinhados de estrume velho ou recente dos bois que por ali pastam, o cheiro que desce das montanhas carregado de frescor úmido fazendo cócegas no rosto de R e de sua companheira e os felicitando em sua passagem.

Será que ele conseguirá chegar a tempo? A tempo de quê? A pergunta tão candente inicial perde o seu sentido na medida em que o caminhar avança na estrada marginal. Fora da cidade o caminho é infinito, sem risco de não caber no tempo, sem a pressa constante para não se chegar sempre tão atrasado em algum lugar tão importante onde outros seres estão correndo à sua espera para não chegarem tão atrasados em outros lugares igualmente tão importantes, numa espécie de cadeia infinita, num Boleroi enclausurado nos primeiros acordes, na frase melódica a princípio bela, porém que não avança, se repetindo sempre sem qualquer mudança tonal, deixando aos mais otimistas tão somente a esperança de que em algum dia poderá enfim se viver, engodo de vida adiada, pior que o Mito de Sísifo 4, já que no mito existe o apogeu e o declínio, a sensação vitoriosa de se alcançar o cume, o topo da montanha carregando a grande pedra, seguido do desalento de vê-la rolando morro abaixo, só restando ao homem seguir em frente, descer até ela e se empenhar de novo. E o que estamos falando aqui, nessa nossa história, é de uma rotina exasperada, dos Tempos Modernos 5, produção em série sem altos nem baixos, nem princípio nem meio nem fim, o correr no tempo, contra o tempo, tentando ganhar tempo, mas para quê? Todos dizem que sabem, mas talvez ninguém saiba verdadeiramente o porquê do caminhar exasperado de suas vidas, hoje em dia. (Fromm 6 certa vez falou que o capitalismo sofreria um grande abalo se os trabalhadores, ao acordarem pela manhã, passassem a refletir sobre o sentido do seu trabalho, se valia ou não a pena, passaria a haver muitas faltas, demissões voluntárias, etc.) Na medida em que o nosso texto avança pela estrada fora da cidade, já pouco nos importa a questão inicial, aparentemente tão crucial, de se chegar ou não, a tempo de não se chegar tão atrasado.

R e sua companheira são sabem a quanto tempo estão viajando, nem lhes interessa saber, quando se encontram com um povoado pequeno, iluminado com luz de velas, lampiões à gás, uma casa grande com um varandão na frente, grandes janelas abertas deixando vislumbrar o seu interior. Decidem parar e chegar até à casa, e quando se aproximam, ouvem a música que irrompe de lá de dentro, flauta, piano e violino, ora um ou outro, ou todos ou dois deles. Lhes surgem por inteiro o Célebre Adágio 7, a Sonata ao Luar 8, a Pavana para uma Princesa Defunta 9, depois o Concerto para Flauta e Piano 10, e por aí afora, bastando se entregarem por inteiro à mais bela música e deixando que seus corpos se unam e dancem, ora percorrendo todo o varandão, ora quase quietos na mansidão de um dos seus recantos. Aceitam a taça de vinho tinto que lhes é oferecida enquanto dançam, um vinho de aroma leve e frutado, fresco e jovem como a noite que se inicia, bebem e dançam, o vinho contagia suas bocas e seus corações, irradia por todo o corpo uma sensação boa, quente e contente, o beijo tem o sabor do sangue divino vindo direto do Olimpo para festejar aquela noite daquela viagem fora da cidade.

A luz de velas cria um ar ainda mais romântico, o jardim ao lado da casa, cheio dos cravos, rosas, jasmins, crisântemos, e outras mais, inunda o ambiente de um cheiro doce e profundo, contagiado com o aroma da noite que vem de fora, e mais o vinho e o hálito de suas bocas, tudo criando uma unicidade encantadora, seria talvez mais apropriado se falar que eles, R e sua companheira, é quem subiram até o Olimpo e é ali que estão, inebriados, por sobre as nuvens do dia, dançando e se amando. Permanecem por ali indefinidamente, eternamente, infinitamente, a música prossegue, surge o Concerto para Piano em Sol Maior 11, até mesmo o dissonante Concerto n.º 3 12, em sua beleza ao mesmo tempo tão moderna e tão fora de qualquer tempo, trazendo para a música o até então inconcebível, aquilo que as artes plásticas já haviam mostrado desde antes, a beleza aparentemente disforme, o traçado aquém ou além da natureza primeira, tirando do quase grotesco para o extremamente belo, permitindo a poesia com a rima dentro das palavras, entre seus fonemas, permitindo o encantamento com o Mr. Hyde 13, e agora na música, nas notas que caminham em leve descompasso, brincando feito crianças despreocupadas correndo ao vento até se unirem em bela roda no centro do mais cuidado jardim de flores.

Dançando e se amando no Olimpo, fazendo o caminho inverso de Dioniso, enviado de Zeus para viver aqui na Terra entre os homens, R e sua companheira se percebem despidos, por fora e por dentro, seus corpos enlaçados e dando continuidade ao Beijo 14, podendo viver o verdadeiro encontro, sem ontem nem amanhã, se sentindo no outro e o outro em si, o olhar de cada um mergulhando no olhar do outro, no lago límpido e profundo que reflete sua própria imagem irradiada com a energia que brota do outro, é o Narciso que se encanta consigo no outro, se atira porém não morre, é salvo pelo amor, não é tão somente sua própria imagem que o encanta, é a imagem nova nascida do encontro, o olhar violeta que surge no momento do orgasmo, no átimo de prazer e que só o outro possui e conhece, o cheiro intenso e único, parecendo obra do Grenouille 15, que marca o momento do encontro e provoca o desejo intenso de voltar a senti-lo e sempre mais.

A dança, a música, os aromas, o amor, tudo prossegue pela noite naquela viagem marginal, fora dos compromissos e responsabilidades e temporalidades das viagens dentro da cidade. No Olimpo a festa prossegue noite após noite basta que seja concedida a permissão para se adentrar, o que custa menos do que se possa imaginar – bastante desejo, prazer em se brincar, um tanto de ingenuidade, leveza de um sorriso, um certo descompromisso com a vida – e depois é só desfrutar a festa.

Quando os primeiros alvores surgem, as luzes das velas já apagadas, encontramos R e sua companheira deitados colados enlaçados numa rede estendida na varanda da casa, coberto de pétalas de todas as flores que habitam o jardim ao lado, dormem com as bocas entreabertas, e suas respirações leves, sussurrantes, continuam a cantarolar cantigas, talvez de roda ou de ninar.

RICARDO DE CARVALHO RIBEIRO
Enviado por RICARDO DE CARVALHO RIBEIRO em 29/06/2010
Código do texto: T2348859
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