Mysterium ou ( A aridez do Amor )

Mysterium ou (A aridez do amor)

Acordei hoje com o firme propósito de não ser eu mesmo; e mais do que isso, desejei que Clara não fosse ela. Ansiava por uma nova forma de perdermos (ou acharmos?) um ao outro: não sermos nós realmente. Parece rebuscado, mas não é. Quem nunca se ergueu da cama querendo mudar sua vida chata e regular? Pois é, eu não! Até esta manhã fatídica eu nunca havia pensado nisso. Mais estranho do que eu querer mudar: é eu querer mudar. Calma, vou explicar: Sou pouco afeito a bruscas viradas, na verdade, tenho temor ao que é novo. As mudanças me cansam, a rotina me governa, é meu leme. Se tiver que fazer algo fora duma ordem prosaica pré-estabelecida, isso me causa extrema fadiga, onde por fim minha cabeça dói e serpenteia. Talvez tenha sido isso que me atraiu para Clara, pois dentre as muitas coisas que ela é, uma delas é que sua personalidade é transparente, retilínea. Ela é um oceano previsível por onde navego sem solavancos há cinco anos, entretanto seus cabelos longos e negros e uns olhos castanhos pequenos lhe conferem ao rosto um ar de mistério; Mysterium – por definição: Tudo o que tem causa oculta, ou nos parece inexplicável. Ela não é assim, definitivamente não; conheço-a e consigo sem esforço esquadrinhar sua compleição, seu intimo; coisa rara em uma mulher: que é o ser mais indevassável da natureza.

Cheguei diante dela, enchi os pulmões e lhe perguntei: “O que você seria se não fosse você?”. “Uma outra pessoa”, respondeu ela, sarcasticamente. “ Que pessoa você seria se não fosse essa que você é?”. “Uma pessoa diferente” ela ainda zombando. Desisti. Com ela eu sempre desisto, é impossível vencer seu pragmatismo irritante. Sentenciei então: “Quero que você seja outra pessoa”. “Ah, então é isso. Que pessoa?” disse-me com uma assustadora placidez. “Sei lá, alguém que não conheço em você. Alguém novo, distinto de você”. “Você quer alguém distinto de mim ou quer que eu seja alguém distinto de mim?”. Ela acabou por me confundir. “Você entendeu. È a mesma coisa”. Pausa. “Você sabe mesmo o quer?”

Furioso, penso na pergunta dela, penso que não deveria ter dito aquelas coisas. No fundo ela tinha razão. O que eu quero? Vou à casa de Clara no dia e hora costumeiros, mas nossos silêncios deixam o clima tenso. Oqueeuquero? A voz dela ecoando em minha mente. Pausa ainda maior. Após sua usual parcimônia ao despir-se, fazemos o mesmo igual amor burocrático de sempre. Caminho difícil de errar, de se perder; via de mão única. Quando acabamos ela está acesa e me olha como nunca havia feito. “Hoje eu me despeço de você”. No começo aquela frase me pareceu anfótera (que?). Fui para casa de novo e de novo pensei e me arrependi. Tudo como antes. É sempre assim. Somos escravos de nossos desejos. Lembro da frase, não do autor. Não importa, a verdade é sempre a verdade.

No dia seguinte ela vai à minha casa de surpresa e surpreendentemente faz comigo um amor apaixonado, intenso, permeado de momentos violentos, áridos. Enquanto sou devorado penso na frase: A aridez do amor. De quem será essa? Ela vai embora sem dizer nada. No dia seguinte a mesma coisa. E no seguinte também. Os dias se sucederam e ela agia da mesma forma: Ia até minha casa, em horários distintos, me preenchia com a aridez de seu amor (essa frase é minha mesmo, lembrei) e ia embora. No final de uma semana notei que ela deixava, antes de sair, um bilhete na cabeceira da minha cama. Li e as palavras me pareceram vagas, sem sentido: “Não me siga”. O que acontece quando alguém te diz para não fazer alguma coisa?...Exatamente! Vou atrás dela. Surpreendo-a (será?) a beira do calçadão. Àquela hora a bruma salgada tecia sobre ela uma cortina densa, impenetrável. Seu corpo tangenciava as linhas do meio–fio, as roupas brilhavam na noite, mas seu olhar não; ao contrario, estava opaco, carecia de luminosidade. Ela se debruçou sobre a janela do meu carro, sem se alterar. Não sei quanto tempo fiquei a contemplá-la (nem sei se algum dia a vi de verdade). Esperei ela dizer algo. Disse o seu preço como se não me conhecesse. Aceitei. Queria ver até onde aquilo iria nos levar... E nos levou a um quarto de motel e sob a luz fria constatei a nossa incrível transmutação: Eu, que não era mais eu; e Ela que era a pálida lembrança da mulher que eu sabia como minha. O que aconteceu na intimidade dos nossos corpos pode não ser relevante. O que posso dizer é que nunca mais procurei Clara; Ela morreu (ou eu a matei?). No seu lugar nasceu uma Flor em cujos braços repouso regularmente desde então. Essa Flor que abre suas pétalas toda noite, divide seu aroma não apenas comigo, mas também com quem decidir pagar o seu preço. “Eu queria essa Flor só para mim” implorei a ela. “Uma Flor espalha seu perfume aos que lhe desejam”. Ela disse isso com a seiva-veneno escorrendo do canto da boca. O desejo é um rio bravio que se não nos refresca, nos afoga com sua torrente. Belíssima frase!