Lembranças de um cético.

Meu nome é Jesus. Infelizmente, se acha que essa é uma história religiosa, se enganou. Não sou o filho de Deus, aquele era muito mais famoso. Meu nome é Jesus, assim como meu pai se chamava Jesus, e o pai de meu pai também se chamava Jesus e na nossa família sempre foi assim.

Sou velho, no fim da vida, não me importo nem um pouco com isso, sempre soube aceitar as passagens da minha biografia, sempre soube separar as coisas. Carrego comigo variadas doenças que são resultado de diversos vícios que carreguei em minha vida. Com a idade eu estou começando a esquecer das coisas. Na verdade, tem muitas coisas que aconteceram na minha vida que eu gostaria de esquecer, mas essa não é uma delas. Essa é diferente. Não é especial, não é emocionante, simplesmente não quero esquecer.

Vamos aos fatos. Na época eu tinha 27 anos, jubilava da juventude, estava no esplendor da forma física. Formei-me em medicina, era considerado um prodígio, um médico recém formado em ascensão. De maneira alguma eu era apaixonado pelo que fazia, não amava ser médico. O que eu realmente gostava era de ter a vida das pessoas em minhas mãos, poder decidir entre a vida e a morte, entre a saúde e o vinho ordinário. Ter o poder de brincar de Deus me excitava muito, eu gostava daquela sensação.

Com vinte e sete anos era jovem, bem sucedido e estava noivo. Namorei a minha noiva durante dois anos, decidimos pelo noivado simplesmente porque pensávamos que o que nos unia era o amor. Talvez fosse para ela. Para mim nunca foi. Queria me casar para me estabelecer, ter uma família e assim atingir todos os objetivos da minha vida. Deve estar se perguntando o nome da minha ex-noiva, mas eu não me lembro e muito menos me importo com isso. Nomes não são importantes, só servem para uma denominação superficial de um ser muito maior do que o nome representa.

Aconteceu que marcamos a data do casamento. Estava seguro do que fazer. Vesti-me, peguei as chaves do meu antigo Del Rey, que na época era um carro de luxo, ano oitenta e dois, com vidro e travas automáticas, liguei a ignição e dirigi-me ao primeiro bar do Bairro do Recreio, onde só moravam e só moram pessoas bem sucedidas. O bairro foi construído em mil novecentos e oitenta e um, no começo de mil novecentos e oitenta e dois eu adquiri um apartamento por lá, em um prédio de doze andares, onde cada andar era um apartamento.

Cheguei ao bar, estacionei o Del Rey na porta. Era uma noite gelada no Rio de Janeiro, numa sexta-feira. Ou talvez não fosse, talvez fosse uma noite de sábado, mas isso pouco importa. Entrei, pedi um chopp ao primeiro garçom que eu vi. Passados três ou quatro minutos o mesmo garçom que tinha me atendido voltou com o chopp. Não o bebi, na verdade nem toquei na caneca. Estava ocupado. Eu costumava ir aos bares para pensar. Estava sozinho não por opção, todos os meus amigos estavam ocupados naquela noite. De repente, um rapaz que não me era conhecido, pediu para sentar-se comigo. Balancei a cabeça pra cima e para baixo, acenando positivamente.

- Ta tudo bem aí, companheiro? Tu nem triscou no teu chopp... – ele disse.

Não vou me dar ao trabalho de descrevê-lo, era um rapaz comum, como os que vemos nas ruas todos os dias, não me disse seu nome, não me falou onde morava nem nenhuma outra coisa. Se assim o leitor preferir, identifique-o como quiser.

- Ta sim, fica tranquilo. – eu disse, cruzando os braços e olhando para o teto, não focalizando nada especificadamente.

Silêncio. Foi o que aconteceu. Apenas silêncio. O rapaz me olhava, como se tentasse me ler, mas eu era bem inflexível. Então, para quebrar a situação incomoda que estava se formando, ele disse:

- Então, to esperando uns amigos aí, já deveriam estar aqui há um tempão. Hoje é minha despedida de solteiro. – me mostrou um meio sorriso, como se quisesse que eu desse os parabéns a ele pelo casamento, mas não o fiz.

- Porque vai se casar? – eu perguntei, com curiosidade real.

- Cara, pelo mesmo motivo que todas as pessoas se casam, porque eu amo a minha noiva. – agora ele estava sorrindo de verdade.

- Sabe de uma coisa? Eu não acredito no amor. É como se fosse uma entidade, só encontra alguns, ainda não foi a minha vez, deve ser por isso que não acredito nele.

- Eu posso te dizer o contrário. Sou um cara mais velho que você, tô com trinta e cinco anos já, e já fui noivo uma vez. Naquela oportunidade eu não tinha absoluta certeza que queria me casar, eu namorava uma menina que não era especial, nem bonita, nem nada. No dia do casamento eu parei pra pensar no que aconteceria se eu me casasse. O meu destino estaria completamente traçado, eu não teria mais nenhuma alternativa de vida. Sabe o que eu fiz? Quando minha noiva chegou ao altar, todos os meus amigos, minha família, todo mundo tava ali, olhei para eles, para minha noiva e falei: '' Vou ao banheiro''. E simplesmente fui embora. Aquilo não era o certo a se fazer, simplesmente fui embora. – ele me disse.

Naquele instante eu gostei do meu amigo instantâneo, se o que ele disse fosse verdade, tinha personalidade, e eu gostava das pessoas com personalidade. Seus olhos estavam profundos, vazios. Ele não mexia um músculo. Tive certeza de que ele pensava na noite em que deixou a ex-noiva no altar até hoje.

- E agora você tem certeza que quer casar?

- Como nunca tive antes. – ele dizia, fazendo gestos com as mãos, parecendo empolgado – Uma coisa eu posso te dizer, esse tipo de decisão agente não toma de uma hora pra outra, tem que ter alguma coisa que nos leve a isso, algum sentimento. Quando você sentir o que eu sinto, vai saber.

Aquela conversa, por mais que ele não soubesse, tava me fazendo pensar. Em uma parte da balança eu coloquei os meus objetivos, na outra, eu coloquei o meu destino. Eu nunca acreditei em destino, nunca acreditei em Deus, em anjos, em santos. Era completamente cético pra esse tipo de coisa. Porque deveria acreditar que casar com a minha noiva ou esperar outra faria diferença?

Olhei para o meu dedo em que estava a aliança de noivado. Será que ficaria melhor sem ela? Nunca gostei de alianças. Representava um laço invisível. Uma pessoa que usava aliança não era impedida de trair o relacionamento apenas por aquele pequeno pedaço de metal retorcido. Resolvi tirar. Era pesada, de ouro polido.

- Não te conheço, mas pega isso aqui, manda derreter e faz alguma coisa pra tua noiva. Não tem mais sentido pra mim.

Olhei pra ele, joguei o dinheiro do chopp na mesa e entrei no Del Rey. Fui pro apartamento no Recreio. Liguei para a casa da minha noiva, ninguém atendeu. Eu sabia porque, liguei só pra conferir. Decidi me deitar, logo peguei no sono.

Acordei cedo, ás 6:00 horas da manhã de sábado. Tomei banho, vesti uma camisa pólo e calça social. Tomei meu café, limpei a caneca. Não tinha nada pra fazer na manhã de sábado. O apartamento estava completamente limpo. Sempre fui viciado em limpeza, em organização. Sentei-me e peguei o livro '' Estandartes do bem e do mal'' de Francis Bacon.

A minha companhia deveria chegar logo.

Como diz Francis Bacon '' o homem deve criar as oportunidades e não somente encontrá-las''. Eu tinha recebido uma carta da Universidade de São Paulo, convidando-me para o corpo docente do curso de Medicina. Aceitei no ato. Não esperei mais, liguei para a minha ex-noiva e disse que estava indo pra São Paulo. Ela só ouviu e desligou. Não a julgo, acho que até estava certa. Afinal de contas, no dia anterior, eu não fui no nosso casamento para ir a um bar.

Peguei as malas que já estavam arrumadas, o óculos Ray-Ban Aviator, entrei no Del Ray e nunca mais voltei pra o Rio de Janeiro.

Não me arrependo, de forma alguma, por tê-la deixado. Chega um momento na vida em que nós nos vemos como os outros nos vêem. Acho que faz parte do crescimento, e nem sempre é confortável. Não me casei, não deixei herdeiros. O nome Jesus morre aqui na minha família.

FIM

Iago Silva de Almeida, 22/09/2010.

Iago Silva
Enviado por Iago Silva em 22/09/2010
Reeditado em 30/11/2010
Código do texto: T2514740
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