ANABELA E A CAIXA

Contemplo a cor vermelha dentro do vaso sanitário. Lá fora, o amarelo rosado do fim de tarde na antiga fazenda de café. Eu me chamo Anabela. Sou uma simples mulher do interior, amante de livros e filmes e vítima do sobrenatural: nisto, tenho algo a lhes contar. Não sei se vão me compreender. E não sei se vão acreditar.

Sim, o vermelho no fundo da latrina era mesmo menstruação. Aliviada por estar eu livre da iminência de uma gravidez avassaladora como um atentado terrorista, até me incomodei menos com o sangue que sempre fora tão incômodo, algo próximo do repulsivo pra mim. Sangrar lembra morrer. Mas aprendi que ser mulher é renascer todos os dias. Ser mulher é dar-se ao mundo. Você tem que dar de qualquer maneira: se não dá seu sangue mensalmente, dará carne viva nove meses depois. Entendi, contudo, que tudo isso é muito bom.

Lembro da gente – eu e ele – no parque de diversões como crianças nos brinquedos, nossos sorrisos eternos, e sei agora que a vida não é um parque de diversões. A vida é sangue.

Ou então um outro tipo de lembrança plasticamente mais simples e tão poética quanto. Humm... como vou explicar? ... Algo que se, por exemplo, fosse virar um filme, ficaria mais fácil de filmar. Entendem? Então ficamos assim: eu e ele andando de bicicleta por uma estradinha rural completamente deserta, só com o som do vento, dos pássaros e dos pneus de nossas bicicletas. Nossos sorrisos querendo nos rasgar a boca. Acho que é uma bela cena. Enfim... De todas nossas lembranças, qual delas é isenta de poesia colorida? Qual delas reflete a verdadeira verdade?

Certo dia, no centro da pequena cidade, de dentro do balcão da vídeo-locadora em que eu trabalhava, perguntei a ele: – Posso ajudar?

Ao que ele respondeu perguntando: – Você tem aí Koyaanisqatsi?

– Engraçado...

– O que?

– Você é a primeira pessoa que procura esse filme aqui.

– E tem?

– Não, cara... Não tem. Vê lá se isso é filme de locadora?!?... E ainda mais uma locadora neste fim de mundo...

– É. Mas eu pensei que de repente....

– Mas eu tenho lá em casa. (o surpreendi)

Nos olhamos então fixamente por alguns segundos. Assim que o vi ele parecia mais bonito que inteligente – e olha que não era muito bonito. Mas quando ele me pediu Koyaanisqatsi... aquilo, de alguma forma me atraiu. Passados poucas horas após o encontro inicial, estávamos nus em cima de uma cama, nossas pernas entrelaçadas e nossos olhos a olhar para o nada.

*

Aqui estou sozinha, neste banheiro. Lavo o rosto. Olho-me no espelho. Escovo os dentes, dispo-me, tomo banho. E eu, moça do interior que gosta de livros e filmes, penso: o que eu espero de um homem? Espero que ele seja bom. Bom de bem. Bom no sentido cristão da palavra. Ele tem que ser um pouco parecido com Jesus Cristo. Tem que parecer um pouco com Che Guevara. Tem que ser um pouco Marlon Brando. Um pouco cafajeste. Mas, calma! Não um cafajeste traidor e mentiroso. E, sim, um cafajeste que arromba a porta do paraíso e entra iluminando a vida com novidades. E foi isso o que ele fez. Ele foi meu anjo da segurança e meu demônio a me provocar indagações nunca antes por mim feitas. Penso em um homem que me faça perguntar coisas o tempo inteiro... Sei que isso é cansativo demais. No entanto, creio ser um ingrediente indispensável a um homem que venha ser meu. Meu... Meu... Às vezes penso que o mundo inteiro é meu. Noutras, nem meu umbigo me pertence.

Voltando a mim e meu homem – o homem que conheci na locadora. As coisas íntimas, quentes, duras e úmidas que tocavam nós dois, iam muito bem, obrigada! Até que num dia louco ele me chega com uma caixa enfeitada com retalhos em tom vermelho – forrada com tecidos coloridos e velha –, pouco menos que uma caixa de sapatos, em mãos. Entrara sério e calado no quarto. Sentara na cama e permanecera calado.

Eu, que à luz do abajur lia um livro, perguntei: – Qual é? Alguma gata comeu sua língua?

Com olhos muito sérios ele me disse: – Anabela... tenho algo aqui. Tô me sentindo estranho... Vem cá. Senta aqui. Olha só... Não me pergunte por que... Comprei isso aqui de um mascate muito esquisito. [aqui no interior, neste fim de mundo, ainda se usa a expressão “mascate”, muitas vezes em lugar de “camelô”] Um cara super diferente. Mascate com cara de profeta do inferno.

– Mas que caixa é essa? Pra que que isso serve? ... Cara... quanto custou isso? ... Posso pegar?

– Não, Anabela!!! ... Não agora.

Em meio à luz alaranjada fizemos amor. Meus olhos na caixa. O tempo inteiro na caixa. E eu bem mais interessada na caixa. Terminamos. Ele terminou. Eu nem sei se havia começado. Ficamos olhando para o teto. Eu para o teto e para a caixa. Perguntei:

– Marcos... e então? Você não vai falar nada?

– O que quer que eu diga?

– A caixa, pô!!!

Após um breve silêncio, ele responde:

– Tá bom, a caixa.

Nos vestimos e sentamos na cama confusos e apreensivos.

Mais um minuto de silêncio e ele se levantou devagar. Eu na cama olhando tudo.

Ele pega a caixa e volta em direção à cama onde estamos, e diz em baixo tom de voz, de forma cadenciada, solene, hiper-séria, quase soletrada:

– Nunca conte a ninguém o que vai acontecer agora. Nem para a sua melhor amiga. Me prometa isso.

Calada, assenti com a cabeça. Fomos para o tapete do quarto, onde sentamos. Marcos estava com a caixa em mãos. Ele a coloca no chão, entre nós dois, que a olhamos. Ele abre a caixa. Frustrada pela expectativa, digo com voz grave e quase rouca:

– Não aconteceu nada!

– Me dá a mão. As duas. Feche os olhos. (disse ele, e assim fizemos ambos)

Luz branca nos envolve. AMBOS ABRIMOS OS OLHOS

A partir deste momento estamos “transportados” para um outro quarto. Um quarto claro. Com aspecto antigo. Papel de parede colorido. Esquema de máquina do tempo, resumindo. SOMOS AGORA DUAS CRIANÇAS SENTADAS NO TAPETE. Ele, um menino de 12 anos, e eu, uma menina de 10. Com roupas largas de adulto. As mesmas roupas que usávamos antes do incidente mágico.

Uma bela voz de mulher – supostamente a mãe dele – vem da cozinha:

– Marcos! Você está aí?

Ele grita em resposta, de dentro do quarto onde estamos, com sensação de segredo:

– Tô aqui, mãe!

– Está tudo bem, meu filho???

– Tudo bem, mãe!

– Você não vai sair desse quarto?

– Espera aí, mãe! Tô terminando um negócio aqui e já vou!

No centro do quarto, ela, a caixa colorida, aberta, com a tampa caída ao lado. Pergunto a Marcos:

– O que acontece agora?

E ele responde, mantendo o tom solene e entonação assustadora de decisão de encruzilhada:

– Se fecharmos a tampa agora, nunca mais voltaremos. ... Se decidirmos fechar, não nos lembraremos do que aconteceu. Nunca mais. ... Talvez.

Refleti sobre a grande esperança hipotética tola que muitos de nós temos ao dizermos que tudo poderia ser diferente se fôssemos mais jovens e pudéssemos agir com o equilíbrio e bom proveito que só a idade madura traz. Sabem como é... O lance de voltar a ser criança, mas com cabeça de adulto. Que grande besteira. Além do mais, nunca somos maduros o suficiente. Parece que apodrecemos antes de podermos provar o verdadeiro dulçor maduro da vida. O dulçor da verdade dos nossos corpos vivos. O dulçor inacessível de nossas almas. Eu tinha naquele momento que tomar uma decisão entre fechar ou não a caixa. Das duas opções, qual a mais válida? Naquela hora não pensei em qual seria a mais justa. Somos egoístas. Apenas pensei, então, em qual seria a melhor pra mim.

Naquele meu corpo de menina, me movimentei:

Abri com cuidado a porta do quarto para que a mãe dele não me visse. Dei uma olhada desconfiada para o corredor. Saí pisando macio, com medo e curiosidade, observando a velha casa grande colonial e deparei-me com um grande espelho na parede do corredor. De frente pro espelho, choquei-me ao contemplar minha imagem infantil, eu, criança no espelho. Fiquei atenta especialmente à ausência de seios. Olhei-me demoradamente. Coloquei as mãos no local onde deveriam estar meus seios. Senti, com dor e espanto, a falta deles. Afinal, os seios nos determinam mulheres e vão matando, de forma até bem rápida, a menina dentro da gente.

A figura de Marcos menino aparece também no espelho. Está ele atrás de mim. Quase encostado em mim, observando-me, eu a me tocar a região dos ausentes seios, meus olhos, minha boca tão delicada e jovial. Meus movimentos delicados de mãos e olhos e rosto. Nos olhamos com alegria e medo no velho espelho da velha casa do interior.

Enquanto olhávamos nossas crianças pessoais no espelho, perguntei:

– Se fecharmos a caixa... Se nós fecharmos a caixa, esqueceremos este momento?

– Sim... A gente esquece tudo. Tudinho. Quase tudo. Acho.

De volta ao quarto, nossas figuras infantis sentam-se novamente diante da caixa e ficam em silêncio enquanto decidem como proceder.

– Como fazemos pra voltar? Perguntei.

– É só fecharmos os nossos olhos por um instante prolongado fazendo uma oração, e quando abrirmos os olhos... estaremos de volta ao nosso quarto escuro, e seremos adultos novamente.

Enchemo-nos de coragem e fechamos os olhos. E oramos. Em silêncio.

Dentro do quarto escuro, apenas a pouca luz amarelo-alaranjada do abajur. Agora voltamos a ser adultos. Voltamos aos nossos corpos adultos. Casal adulto sentado diante da caixa. Abrimos os olhos. Ele fecha imediatamente a caixa. Adultos atônitos. Ambos choramos.

Chega a manhã. Caminhamos em direção a uma ponte.Após nos olharmos com cumplicidade, jogamos a caixa à correnteza do rio. A caixa afunda lentamente.

Tempos se passaram e estávamos nós em um parque de diversões. Ou não. Como me lembro, eu substituí a lembrança do parque de diversões pela de nós dois andando de bicicleta em estrada deserta. Cotidianamente brincávamos como crianças e pensávamos como crianças e gozávamos como crianças, rodávamos mundo a fora como discos de newton sorridentes pintados na calota de uma Kombi hippie – embora sempre voltássemos ao nosso habitat rural. Usávamos de todas as formas possíveis de brincar, em todos os brinquedos e jogos. E, claro, sem dispensar as bicicletas. Sabia que nem eu nem ele estávamos arrependidos de termos fechado a caixa e de tê-la jogado no rio.

Não éramos mais como antes. Nada mais seria como antes. Os dias passaram e nosso comportamento havia mesmo mudado. Falávamos menos. Não que estivéssemos infelizes – muito pelo contrário. Apenas falávamos menos. Em compensação havia um fato novo a incidir em nosso cotidiano: nós brincávamos. Brincávamos feito crianças. E a vida na velha fazenda seguia seu curso.

Meu nome é Anabela. E é isso o que eu tinha pra contar.

Aciono a válvula de descarga em meu frio banheiro e vejo o meu sangue sumir no vaso como o passado.

* * *