Poder de amor

PODER DE AMOR

Já caía a tarde quando a caravana adentrou o pequeno povoado, depois de 25 dias de caminhada. Vinham do sertão bahiano, afugentados pela seca. Às margens do Rio Pampã, estava a esperança de prosperidade para aquela e as próximas gerações.

À Frente do grupo, o primeiro a por o pé na nova terra, um rapazola de 17 anos, portando uma espingarda chumbeira às costas e, ao ombro, um embornal. A julgar pela sua expressão, ele havia chegado ao paraíso. Todos perceberam aquele ar de encantamento e atribuíram o seu estado de espírito ao fim da longa viagem com a conseqüente chegada à terra prometida.

O que só ele viu, foi a imagem de uma garota que atravessou rapidamente a rua, embrenhando-se por um beco tendo, antes, voltado ligeiramente os olhos para a caravana que passava. Aquelas faces pálidas marcadas por maçãs quase vermelhas, o seu jeito dançante e leve de andar e aquele brilho intenso nos olhos trouxeram para o jovem rapaz um misto de embriaguez e saudade. A menina, mulher na flor da adolescência, bem lembrava a leveza, o movimento, as cores, a beleza e o cheiro das flores da caatinga sertaneja.

Naquela noite foi difícil dormir, não só pelas dores no corpo depois de quase um mês se deitando sobre um couro de cabra, mas, principalmente, pela ansiedade de ver o dia amanhecer e se arriscar pelas vielas do lugarejo a ver se se depararia com aquela visão angelical.

Os próximos dias foram úmidos porque chovia e porque é úmida a paixão. O insistente gererê teimava em manter as pessoas recolhidas. A semana virou uma eternidade.

O sábado amanheceu claro, para alegria dos que faziam da feira o seu ganha-pão ou simplesmente um local de encontros, sua única diversão.

A menina acordou cedo. O cheiro do café já estava no quarto. Lá fora o tropel dos cavalos indicava um dia movimentado no povoado. Era preciso se enfeitar. O vestido curto de chita rosada, usado na última missa, realçava ainda mais a sua beleza e dava a ela um ar de mais moça. Maquiagem? Só a da natureza.

Não era tão longa a distância da sua casa até a praça do mercado, mas ela demorava um pouco mais do que de costume. Ia devagar. Na confluência de ruas que dá entrada à praça, quis o destino que os dois se encontrassem. Ele, parado no meio da rua a depositar sobre ela o mais terno e admirador dos olhares. Então era verdade. Ela existia mesmo, não fora uma miragem. Ela, sentindo-se olhada até o fundo da alma. Todos os sentidos do rapaz se voltaram para a presença daquela menina encantadora. Deu mais nenhum passo. Não se sabe por quanto tempo permaneceram ali a se olharem.

Os cavalos vinham em disparada. Os cavaleiros haviam perdido o controle dos animais. Para salvar as próprias vidas, todos fugiram correndo para dentro das casas deixando deserta a rua. Todos, menos um. Ele só tinha ouvidos para os sons do coração da menina e para o ritmo da sua respiração. O desastre era iminente. Num último instante o instinto feminino que gera a vida, lutou contra a morte. De súbito ela percebeu o perigo e emitiu um involuntário som: VEM!

A um segundo da morte, ele se lançou para frente deixando passar a cavalhada que ainda lhe tocou os cabelos. Tão violento foi o seu deslocamento, que ele atropelou a bela menina e os dois foram ao chão. Corpos sobrepostos, corações disparados. Milagre. De repente tudo ficou parado. Nada se mexia. Nem gente, nem bicho, nem planta, nem mesmo o ar. Até o tempo parou. O universo estava conspirando em favor do amor

Afrodite, sabendo que o universo não pode de todo parar, realizou um grande feito. Ordenou ao Rio de Contas que sulcasse o chão até que se encontrasse com o Rio Pampã e enchesse de água o seu leito para que a mistura fertilizasse a terra e gerasse muitos e bons frutos por toda a eternidade.

Há mais de setenta anos.

Miguel Canguçu
Enviado por Miguel Canguçu em 19/02/2011
Reeditado em 27/02/2011
Código do texto: T2800921