O Christine

O Christine

O vento soprava de través a quatro nós, enfunando a bujarrona. As águas estavam calmas, um verdadeiro mar de azeite, como diriam marinheiros antigos. No horizonte quase interminável do oceano, apenas o risquinho avermelhado do por do sol permitia uma idéia de fim. Não era isso, contudo, que se passava na mente de Mark. Ele conseguia ver muito além daquela fronteira. Olhava para trás e sentia saudades.

Muitos anos já tinham passado desde a primeira vez em que o menino franzino se aventurou num barco de madeira, sozinho. A pescaria serena e solitária envolta pelo ar gelado que pairava sobre o lago Windermere, em Lake District, no condado de Cumbria, apresentou-lhe uma nova realidade. Ondulações inesperadas poderiam ser perigosas. O vento estava virando de nor-noroeste para oes-sudoeste de forma rápida. Aquela alteração repentina provocara fortes variações nas águas normalmente plácidas do grande lago, exigindo ações imediatas do jovem pescador. Aqueles momentos de medo nunca mais sairiam de sua cabeça. As luzes negras do passar dos anos ensinaram muitas coisas a Mark. Antecipar, tomar as rédeas, dirigir. Ele não queria mais ser guiado por ondas.

A carta náutica estava aberta sobre a mesa de trabalho e o marujo experiente pontuava à mão a trajetória daquela aventura. Poderia apenas olhar o monitor do GPS, mas e se ele falhasse? Decidido a evitar marolas indesejáveis, Mark subiu ao convés e se posicionou a barlavento, em meia-nau, para verificar o cesto de gávea e a posição das adriças. Tudo parecia estar bem. A proa apontada para o oeste, o vento refrescante e o mar de almirante o convidavam a ir até o gurupés. Mark não foi. Lembrava dos tempos em que, como um camaleão, adaptava-se aos seus próprios enganos. Em poucas horas estaria no cais onde, certamente, o futuro aguardava. Um futuro com gosto de passado. Um passado gostoso de lembrar. Tinha confirmado. Estava farto de desencontros.

***

Muito tempo atrás, a iluminação de cores impossíveis numa intermitência bizarra confundia as mentes e impulsionava os corpos. Ele lembrava bem. Beijos de uma paixão com vontade própria pareciam vir em vagalhões dentro de um carro com vidros embaçados. Nunca poderia esquecer. Foram momentos que delinearam o que viria a seguir. Christine lhe apresentara muito mais do que a própria vida. Ela o ajudara a enxergar a si mesmo. Mark, porém, só saberia disto muito tempo depois. Mudanças inesperadas continuariam a espreitar a cada esquina com um brilho que ofuscava, cegava como se fosse a noite mais escura da vida do jovem pescador. Ele adorava encontrar Christine. Houve vez em que ela não veio. Foi duro, e era uma recordação mais clara, mais profundamente gravada em seu ser do que as de quando estiveram juntos. Mas aconteceu coisa pior: Christine se foi para sempre. Mark desejou voltar a ser aquele menino que pescava no grande lago, que nada daquilo tivesse acontecido. Mais uma vez, ondas inesperadas e definitivas alteravam o curso da sua vida.

***

O contorno das docas apareceu ao longe e Mark iniciou os procedimentos de atracagem. Preparou os cabos, recolheu as velas, soltou as defensas e ligou o motor. Quase não havia movimento no cais. Olhando em todas as direções sem conseguir distinguir a presença de Gary, ele se alternava entre os movimentos do timão e a procura pelo garoto. Ele tem que estar aqui, pensava Mark. O fantasma surgido do nada voltava a assombrá-lo. A ausência inesperada esmagava o coração do marinheiro. A sensação de perda, de medo, de impotência retornavam, ameaçadoras. Gary era o elo entre ele e o passado, entre ele e Christine. Alguns minutos se passaram devagar, como se fossem horas. Uma mão tocou o ombro de Mark.

- Olá, pai – disse Gary, com um largo sorriso no rosto e uma mochila pendurada no ombro direito. - Demorei?

- Não, não. - respondeu Mark, quase não conseguindo falar.

O abraço que se seguiu ao encontro trouxe um turbilhão de sensações e lembranças que marejaram os olhos do velejador. Foi um momento importante para ambos. O garoto subiu a bordo, ajudado pelo pai. As amarras foram soltas e o motor ligado novamente. Em poucos minutos, as velas estariam enfunadas e o rumo, traçado. A bordo do Christine, o novo veleiro de madeira que Mark construíra, ele, com a ajuda de seu filho, dominaria as muitas ondas que certamente teriam pela frente.