Sussurro de um anjo

O sol estava nascendo. Seus raios incendiavam aos poucos meus pés descobertos de uma noite mal dormida. Fora um sonho melancólico e sofrido. Devaneios do meu primeiro amor. Uma paixão da qual eu nunca havia vivido, mas sentia que ia em breve. Havia de certo uma revolução de sentimentos conflitantes debatendo-se debilmente em meu âmago. Eu queria poder gritar. Mas só o que conseguia era derramar lágrimas pesadas.

Fitei o ventilador no teto e comecei a piscar freneticamente devido a cortina de lágrimas que formara em meus olhos cansados. Eu detestava a facilidade com que eu tinha de pensar em você. Idealizava um amor que nem existia. Eu chorava e agoniava por alguém que nem sabia ao certo se um dia eu viria a conhecer. Sabia que isso chegava ao ápice da normalidade e extrapolava os limites da lucidez. O que eu não sabia era como frear essa questão. Queria sentir o amor em minhas veias. Em todo o meu corpo.

Espreguicei-me até sentir câimbras. Era inverno e o sol já não sortia tanto efeito. Caminhei lentamente até a janela de madeira que estava comida por cupins – muito fiéis - da casa. O sopro de vento matinal me fez fechar os olhos. Respirei fundo e sorri por nenhum motivo. A casa dava de frente para uma plantação de trigo.

Era uma cidadezinha pequena de humildes agricultores, onde meus pais antigamente moravam. Eles faleceram e, eu então, herdei a casa e toda a plantação no qual papai era dono. Todas as lembranças estavam enraizadas naquela casa solitária. Era triste e ao mesmo tempo acolhedor estar ali.

Desliguei-me de brisas avulsas e resolvi caminhar até um vale próximo de onde morava. As novas tendências eram entre as cores vermelho bordô e um cinza urbano. Eu era metida a fazer minhas próprias roupas, tinha meu ateliê em casa e já tinha viajado muito no passado. Eu havia sido uma grande estilista. Mas agora, não passava de uma pessoa amargurada. ‘Aquele’ acidente fez de mim outra pessoa. Eu mal me reconhecia...

Como um peixe que está acostumado a viver em água doce, agora vive em água salgada. Chorando angustiado, mas ninguém nota, por que tudo em sua volta está cheio d’água. E essa água salgada, são suas lágrimas de dor. Ninguém pode abrir os olhos para ajudar-lhe, porque o solvente queima os olhos das pessoas que tentam...

Palavras proferidas com puro desprezo fizeram de mim uma pessoa sozinha. Afinal, quem suportaria ficar perto de alguém como eu? O meu silêncio grita e ensurdece. Meus olhos congelam e destroem. Sou a pura essência da raiva. Em frações nada dosadas. Uma fórmula sem regras e cuidados. Sou o meu pior pesadelo. E não há como escapar... Tudo remete ao acidente que tive há 10 anos... E o que ele acarretou a mim, jazerá comigo mais cedo ou mais tarde.

O dia estava estranho. Algo estava diferente. Não sei dizer com precisão, mas sentia que algo ia mudar. Para melhor? Isso eu duvidava muito! Ah! Que martírio mais doentio. Minha lucidez devia estar nos últimos suspiros de vida. Quando me deparei, estava de frente para o lindo vale.

Era ali, meu lugar particular e íntimo. Onde me sentia verdadeira. Como se toda essa raiva e amargura evaporasse de minha pele. Até o sol parecia ter sentido a mudança no meu estado de espírito e me honrou ainda mais com seus raios dourados, fazendo um lindo contraste na grama verde apagada do inverno. Claro! Isso era tolice minha. O sol é apenas o sol.

O vale era extenso. Um tapete de folhas secas cobria-o. Algumas rochas completavam e davam graça de um jeito pitoresco para a paisagem. Havia nele algo que me enfeitiçava. Algo que tinha semelhança comigo. Talvez fosse seu silêncio total que parecia meu coração ou talvez a frieza da brisa que pareciam minhas palavras mudas. O vale era meu amigo, meu confidente. Havia nele uma única árvore que ficava bem no centro, como um marco. Eu sentei e escorei-me no seu tronco. Fechei meus olhos. Acabei adormecendo...

A melodia começou. A mais doce que meus ouvidos já ouviram, mas que de alguma forma parecia que eu já havia escutado antes. Era uma mescla de tons graves muito bem acompanhados dos agudos. Chutei a dizer que era angelical. Como uma canção de ninar que te embala e é familiar, essa melodia era tão sútil mais ao mesmo tempo marcante. A letra era em uma língua diferente. Não conseguia decifrá-la. Isso me aborreceu. Oh! Como eu poderia sentir a magia completamente da canção se não soubesse o que ela queria transmitir? O som começou a ficar mais nítido, chegava mais perto. Depois, era um sussurro ao longe.

Acordei tremendo de frio. Havia escurecido. Corri para casa em busca de uma lareira. A casa era bonita e grande. Branca com detalhes em azul, suas colunas altas davam um charme. A luz baixa e bem amarela dava um aspecto mórbido às mobílias que já ultrapassavam dois séculos.

A biblioteca era meu canto favorito. Tinha exemplares em muitas línguas, épocas e gêneros diferentes, pois para cada inverno eu me aliava a eles. Não tinha com precisão o número de livros que estavam nas diversas estantes, mas creio que passava de 12 mil. Horas e mais horas, tardes e mais tardes eram perdidas naquele lugar empoeirado. Não que livros fossem perda de tempo, pelo contrário, mas passar a ter vida social com objetos não é lá uma coisa saudável.

Meus bons e velhos amigos foram aos poucos se distanciando de mim. Eu não os culpo, pois eu mesma os afastei. Afinal, eles teriam que se adaptar a mim devido ao que ocorreu no passado. Orgulhosa, jamais pedi a eles que fizessem isso. Afetuosos, eu sabia que fariam. Por isso fugi. Escondi-me em meio a livros, não recebia mais as visitas ansiosas que me aguardavam na porta de casa. Detestava o fato de pessoas próximas terem pena de mim. Isso era degradante.

A vida é triste e solitária quando não temos qualquer tipo de amor. Ela vai te consumindo até sugar toda a sua essência. Isso dá medo, faz com que a pessoa enlouqueça. Eu me via nesse estágio. Não enxergava luz, só sentia medo do desconhecido, do vazio, medo do frio... Havia vezes em que meu coração chorava e eu nada podia fazer.

Era tão desumano sentir aquilo, era tão infeliz. Minhas lágrimas secavam, meus lábios transformavam-se em pedra e meu espírito gemia. Quem me visse podia jurar que eu estava morrendo em silêncio. Uma visão torturante. Não queria passar essa imagem, pois antes eu era alegre e cheia de luz. Mas confesso que passar por isso sozinha era assustador e medonho...

Mais uma vez o sol – bem tímido – nasceu para mim. Ele parecia ser o único que ainda estava comigo. Como sempre, andei cabisbaixa até o vale. Alguma coisa e/ou alguém me tocou. Eu senti algo totalmente diferente. Parecia vida, alma, paz! Olhei em pânico ao meu redor e, nada. Seria mais um momento de carência e loucura? Fitei meus pés. Eles estavam descalços. Descalços?! Como? Eu havia colocado botas! Eu comecei a surtar. O que estava acontecendo?

Juntei fragmentos meio loucos mais a essa altura, quem ligava? Tudo começou ontem, no vale. O sol estava diferente, eu tive aquele sonho da melodia angelical, algo acabara de me tocar e minhas botas haviam sumido! Esse último não era coisa da minha cabeça. Era visível! Respirei. Tentei pelo menos... Esfriei a cabeça. Quando havia voltado à normalidade, algo me empurrou. Eu literalmente voei para frente. Não toquei meus pés no chão. Estava flutuando! Desmaiei...

Gotas e mais gotas pingavam em minha testa. O céu estava chorando. Não estava chovendo. Eu sentia que ele estava infeliz. O que era isso? Que coisa louca! Como sentir isso? Mas eu sentia. Como se eu estivesse ligada a tudo que se relaciona ao tempo e espaço. Olhei para os lados. Estava perto da árvore que ficava no vale. Opa! Como eu havia chegado ali? Não gostava de ter tantas perguntas e nenhuma resposta. Uma ruga estava se formando furiosamente em minha testa. Que irritante isso! E incrível também! Foi aí que senti uma coisa em minha mão.

Era um papel. Abri-o ligeiramente. Sim, por mais que fosse impossível estar acontecendo essas coisas e eu não saber o motivo, aquilo de fato era muito curioso e eu queria ver aonde ia me levar. Estava escrito: compre botas novas. O que? Piada de mau gosto? Levantei-me bem rápido e senti vertigens. Acho que porque voei minutos antes. Ah! Blasfêmia! Cansei de tudo e voltei para casa sem botas e estressada.

Um pesadelo formava-se em minha mente vazia. Eu fugia de algo que estava pairando sobre minha cabeça. Era uma perseguição. Corria cada vez mais rápido e não adiantava. Eu permanecia sempre no mesmo lugar. Até ‘aquilo’ me tocar e eu brilhar intensamente. Era formigamento que corria junto com minha corrente sanguínea. Um ritmo frenético e desesperado por cura e transformação. Um antídoto. Uma energia que buscava vida em algo morto. E esse algo morto era minha alma. Algo queria me curar.

De repente, o que antes era um pesadelo, agora se tornava uma esperança, uma reza. Deixei-me ser tomada pela força que agia insensatamente em minhas veias. Era uma ardência quase insuportável. Contorcia-me loucamente. Depois de minutos, a dor sumiu. Eu abri meus olhos e o pesadelo havia acabado...

O pesadelo terminou. Qual seria o motivo então para sentir que a cura ainda estava em mim? Não foi apenas um sonho? Ele parecia ter sido transportado para a realidade no momento em que acordei. Sentia-me mudada. Mais serena e mais feliz. Isso seria possível? Depois de alguns minutos na cama em meus devaneios, fui até a cozinha fazer meu café. Panquecas com amora e chocolate quente aromatizava deliciosamente a atmosfera.

Há meses não cozinhava com tanto prazer. O ‘novo’ estava ali. Eu podia afirmar. Eu podia respirá-lo. A janela estava embaçada. Suava com o calor da casa. De repente, um estalo me atormentou: o que havia me tocado no sonho? Não lembro direito. A sua face estava distorcida. Era apenas luz que eu enxergava. Eu tremi de medo.

Enquanto alucinava com as infinitas possibilidades do que havia me tocado no sonho, um barulho surgiu no meu quarto. Eu pulei da cadeira e olhei para o teto. Quase chorei de nervoso. Correr? Fugir? Não, resolvi ir até lá. Burrice? Talvez. Subi degrau por degrau. Mal conseguia respirar. Minhas mãos suavam no corrimão. Minhas pernas cambaleavam de estresse. Meu coração me denunciava, pois berrava de pavor. Último degrau.

Fui caminhando pelo corredor. Nunca mais passei tão devagar por ele para poder observar a quantidade de história que estava em suas paredes. Eram quadros da família. Eu senti que uma lágrima estava prestes a escorrer. Segurei-me e balancei a cabeça. Concentre-se, falei para mim mesma.

A porta estava fechada. Estranho, nunca fechava meu quarto. Talvez fosse o vento que fez tal barulho. Sim! Era isso. Que imaginação a minha! Estava voltando para o corredor novamente e algo fez um estrondo ainda mais forte. Como se fosse algo caindo lá dentro do meu quarto. Eu gelei. Minha espinha vibrou. Eu não queria mais isso. Girei a maçaneta e para minha surpresa avistei uma flauta.

Ela estava na cabeceira da cama. Entrei. Deixei a porta aberta se precisasse correr... Olhei para os lados e vi que estava sozinha. Peguei a flauta nas mãos. Quem colocou ali? Como entrou em casa? Não era possível escalar os muros e tão pouco havia sinais de arrombamento nas portas e janelas. E o que fora o barulho logo antes de abrir a porta? Não daria tempo para alguém fugir sem que eu o visse. Caiu minha ficha. Quem disse que seria uma pessoa?

Eu saí correndo de casa com a flauta na mão. Disparei tão rápido que quase caí muitas vezes a caminho do vale. Eu tive então um Déjà vu. Estava na mesma perseguição que no pesadelo. Se fosse mesmo verdade, algo me tocaria certo? Escorei-me na árvore e esperei por sei lá o que. Apenas esperei. Nada! A flauta então me chamou. Eu coloquei-a em meus lábios e comecei a tocar sua melodia...

O som invadiu minha mente e preencheu meu coração. Era uma sintonia perfeita de timbres suaves. Lembrava-me canções de ninar combinadas a canções medievais. Eram harpas, flautas, violinos e piano ao fundo. Eu não entendia como uma flauta poderia formar o som de todos aqueles instrumentos. Enquanto estava apreciando a música algo gelado tocou meu ombro. Eu engoli em seco. Olhei para o lado e não via nada. Fiquei paralisada.

Meus olhos estreitaram-se. Um sopro gelado passou pelo meu ouvido. Eu forçava meus olhos a ver algo que nem sabia o que era. Nada. Nada. Absolutamente nada. Toquei a flauta novamente. O sopro surgiu de novo. Coincidência? Depois de tudo o que havia acontecido comigo, já não cogitava essa hipótese. Aquilo era real. Mesmo sendo abstrato, eu perdi o medo. Uma sombra ao meu lado então, se formou...

Lentamente, meus olhos foram seguindo em sua direção. Mas era só isso. Apenas sombra. Como assim? Não sabia. Coloquei minhas mãos nela e algo incrível aconteceu. A sombra transformou-se no desenho de um anjo! Suas asas eram enormes e bem desenhadas. Parecia ter sido esculpida com perfeição. Eu pisquei demoradamente e quando olhei para deslumbrar-me um pouco mais, a bela figura não estava mais ali. Toquei de novo. Nada. Ousei mais uma vez. Nenhum resultado. Voltei para minha casa outra vez sem respostas.

As estrelas começavam a surgir em campo aberto no céu. O crepúsculo ia perdendo a vez para o breu da noite. Sentada na varanda de casa, absolta, acompanhava as transformações que iam de cores vermelhas, laranjas para tons azuis até o negro absoluto. A noite estava presente. A lua brilhava deslumbrante. Duas estrelas querendo roubar sua glória insuperável ficavam próximas dela.

Mas a lua... Ah! Essa ninguém tirava a beleza digna de inspirações de muitos poetas, de muitos apaixonados. Eu a fitava sem nada pensar. Apenas admirava sua forma desenhada. Era lua cheia. Grande e majestosa. Enchia-me os olhos. Calava meu espírito e, silenciava meu coração. Uma brisa que vinha do sul tocou meu rosto quente. Senti frio e resolvi me esquentar na lareira.

Até que a porta de casa, com uma força desumana, bateu em um estrondo rápido e violento. Senti que as paredes não iam suportar. Jurava que a estrutura da casa podia até ter se movido. A brisa não fez aquilo... Atrás de mim um som chamou minha atenção. Perto da plantação de trigo, em meio às folhagens, um vulto surgiu. Eu me encolhi automaticamente. Não conseguia mover-me nem um centímetro sequer. O vulto arrastava-se para o vale. Eu resolvi segui-lo. Podia ser a maior loucura já feita antes, mas quem ligava?

Nunca tinha estado tão tarde no vale. Ele parecia assustador e morto de noite. O vulto sumiu. Perto da árvore, a lua conseguiu clarear minha visão. Sentei-me ali com medo de voltar para casa. Uma onda de arrependimento veio em forma de lágrimas em minha face. Chorei em silêncio como sempre fazia. Enquanto sofria calada a mesma melodia da flauta começou a tocar muito perto de onde eu estava. Ergui meus olhos e vi algo totalmente inusitado... Como podia ser? Eu estava louca? Era mais um sonho? Eu senti raiva dessa vez. Levantei e falei repetidas vezes, para mim mesma, que não ia desmaiar e tão pouco voltar pra casa até desvendar todo aquele mistério.

A figura pitoresca encarava-me. Sua pele era branca como o osso. Um tom que pendia entre o mármore e o gesso. Seus lábios grossos e perfeitos eram na cor vermelho-sangue. Seus olhos eram castanhos levemente amanteigados. Mais o que mais me chamou atenção foram seus cachos pendentes na cintura. Longos cabelos dourados. Na luz da lua eles pareciam mover-se. Eu pisquei e a figura piscou. Olhei para seus pés que estavam descalços e a figura fez o mesmo para os meus que estavam de botas.

Quando resolvi caminhar em sua direção, a figura falou como se declamasse algo importante. De imediato a sonoridade era incompreensível. Depois, meu ouvido acostumou e as palavras começaram a fazer sentido uma por uma. Quando as nuvens separaram-se, a lua apareceu totalmente.

Assim, meus olhos iam poder ver todos os detalhes não vistos na escuridão. Estava a olhar a lua e respirei fundo voltando a ver a figura estranha. E algo mágico e surreal surgiu de suas costas. Em uma altura notável, extremidades pontiagudas e polidas, asas brancas de veludo saíram de suas costas como raízes saem da terra. Sim. Um par de asas. Em meu olhar, um anjo estava fixado.

Um anjo. Anjo?! Sim... Suas palavras foram ditas com fervor e ao mesmo tempo nada ansiosas. Ele dissera que eu havia tomado um rumo diferente na minha vida. Uma escolha que no primeiro instante podia passar-se por errônea e cruel, mas que na hora exata tornar-se-ia uma das mais certas e belas.

O anjo vendo minha ruguinha de confusão na testa acariciou meus cabelos dourados. Eu falei que não tinha culpa por escolher isso, pois nem sabia o que havia escolhido simplesmente. Uma vez que o destino foi o único responsável por tal. Aquele acontecimento que me causou sequelas permanentes em minha vida. O acidente voltou explodindo em minha mente. Todos os detalhes foram lembrados...

Era em um dia como outro qualquer. O sol brilhava intensamente para todos os seres. A viagem nos levaria para uma praia que mamãe sempre fazia questão que fossemos no verão. Papai dirigia com um sorriso nos lábios. Na rádio, tocava um piano animado que enchia de graça o carro. ‘Uma família feliz’, esse seria um slogan certo para nós.

Depois de poucos minutos de viagem, o pior nos esperava. Em uma fração de segundo tudo o que meus olhos conseguiram captar foi um caminhão que estava carregado de trigo perder a direção e ir para a pista onde estávamos.

Ele tombou e faíscas queimavam o chão. O barulho fora quase insuportável. Papai tentou desviar e mamãe gritava de medo. Eu só vi árvores e mais árvores passando ligeiramente na janela do carro e uma batida forte em minha cabeça fez com que as árvores não passassem de um borrão. Tudo escureceu. Acordei com uma melodia estranha e linda. Abri meus olhos devagar e vi papai e mamãe com os olhos fechados. Eu sabia que eles estavam mortos e eu então, esperei minha hora chegar.

Manhã do dia seguinte. Um burburinho rondava minha cabeça pesada. Abri novamente meus olhos, mas agora a paisagem mudara. Tudo era branco. Meus olhos doeram. Eu estava fraca e confusa. Aquilo era o paraíso? Onde estava minha família? Um par de olhos azuis acinzentados me olhou como quem procura por algo no escuro. Eu só ouvi vozes falando que a menina havia perdido muito sangue e tinha perfurado a garganta. Os pais haviam morrido de hemorragia interna.

Um estalo de lucidez pairou naquele exato momento. E a única coisa que desejei foi morrer. Passaram-se semanas, recebi alta e fui para casa. Meus amigos já me aguardavam em casa. Com o tempo fui melhorando aos poucos. Na última consulta com o médico ele dissera que eu infelizmente estava com tumor na garganta.

Eu perguntei quais seriam as consequências e ele disse em um fio de voz quase inaudível que seria a perda da fala e não teria cura para isso. Eu fiquei muda desde então. Amigos não suportando minha dor, foram distanciando-se. Outros me visitavam por pena. Anos depois, não aguentava mais essa situação. Imaginem uma visita que em nada era falado. Eu a partir daí, chorava em silêncio...

Depois de segundos ao pensar em tudo isso, perguntei ao anjo porque a música que ouvia na flauta e da sua voz era a mesma que escutara no dia do acidente quando estava presa no carro ribanceira a baixo. Ele respondera que era porque ele estava ali comigo quando tudo aconteceu. Eu então calei. Ele prosseguiu dizendo que eu nunca havia perdido minha voz. Eu, confusa, perguntei do que ele estava falando. Sereno, respondeu-me que minha voz era o que o mantinha vivo.

Minha voz era seu órgão vital. Eu nervosa acusei-o de roubar minha voz. Ele ainda mais sereno, dissera que ele não havia roubado, mas sim, guardado para quando chegasse o momento certo. Eu perguntei que momento certo era esse que teria o direito de roubar a voz de uma pessoa. Ele falou que na manhã seguinte eu iria descobrir. E com um beijo em minha testa dissolveu-se com o reflexo da lua.

Quando dei por mim estava na minha cama. Nem parei para questionar como isso aconteceu. Apenas deixei-me embalar pelo sono. Adormeci. Pela manhã, uns passarinhos piaram sutilmente do lado de fora. Poucos cantavam no inverno. Parecia até que estavam anunciando uma data especial. Cantavam especialmente para mim. Bom, fui para o banho. Enchi a banheira de granito com litros de água bem quente e afundei-me na água. Como era gostoso sentir o calor em meu corpo.

Vesti um lindo casaco azul turquesa e fui providenciar meu café da manhã. Desacreditei no diálogo da noite passada. Não podia mais falar e, assim seria até eu morrer. Conformada, saí para caminhar em outra direção. Para os lados das montanhas onde no topo delas, enxergava-se o vale. Nunca mais tinha ido lá porque era um lugar aonde meus pais sempre me levavam para fazermos piquenique.

As montanhas nessa estação tinham um charme todo especial. A terra estava mais dura, mas no topo das colinas havia um canteiro com várias flores amarelas e violetas. O sol estava quase alpino e, resolvi sentar bem no alto para ver o vale lá embaixo. Parecia uma campina ao longe. Muito lindo. E foi com aquela paisagem que as palavras proferidas pelo anjo se concretizaram. Enquanto avistava, maravilhada o cenário de vegetações herbáceas, um perfume embriagou-me ligeiramente.

O seu andar era flutuante. Sua forma alta e esguia encheu-me os olhos. Meus cabelos estavam esvoaçados devido ao vento. Levantei-me e sorri sem motivo nenhum. Ele retribui meu sorriso torto e deliciou-me com dentes perfeitos alinhados formando um sorriso de tirar o fôlego. Desejei naquele momento sua boca na minha. Devorei-o com o olhar. Era ele! Meu amor idealizado que esperei tantos anos. Eu senti raiva ao pensar que nada podia dizer a ele. Enquanto estava a martirizar-me, ele se aproximou de meu corpo e tocou minha face.

Nesse exato momento senti algo forte correndo furiosamente na minha pele. Como se eu estivesse tremendo por dentro. Não, era algo mais quente. Eu queimava gradativamente. Ele sentiu meu calor e segurou-me firme em seus braços. Seu toque me fez balançar. Que abraço mais gostoso! Ah! Será que iria acordar como sempre acontecia? Mas eu o sentia em mim, como poderia ser fictício? Ele então soltou meu corpo e pegou meu rosto com suas mãos macias. Olhou-me fixamente. Eu senti-me hipnotizada. O que era aquilo? Depois de segundos, minutos, ele – perdi a noção de tempo – ergueu mais o meu queixo e foi aproximando-se mais ainda.

Seu hálito quente me levou a loucura e enquanto eu tentava voltar à realidade do momento, seus lábios rosados encostaram-se aos meus. De uma forma única, houve um encaixe perfeito. Delicado e saboroso, ele me beijava com a alma. Agora, eu não era a única a tremer. Eu o sentia como se estivéssemos em um só corpo. Sua boca deslizou suavemente para meu ouvido e ele disse em voz doce que me amava. Mas como poderia ser verdade? Eu nem o conhecia, digo, sempre o imaginei em meus sonhos, mas nunca havia tido esse contato com ele.

Sentindo minha indiferença, ele dissera-me que já me conhecia. Eu confusa, falei que ele devia estar me confundindo com alguém. Ele balançou a cabeça negando e, afirmou me conhecer. Eu perguntei de qual lugar, e em um sorriso, falou que me conhecia dos seus sonhos. Ele também me idealizava? Ah! Senti vertigem. Segurou-me mais forte ainda, e disse que eu não precisava falar nada, pois ele sentia o meu coração e lia meus olhos. Minha alma, minha essência havia passado para seu âmago na hora em que me viu pela primeira vez.

Sentamos à beira da montanha novamente. Muitos toques, vários beijos apaixonados e a linda vista do meu vale preferido, fizeram daquele momento especial e inesquecível. Percebi que não precisava falar nada, pois tudo já havia sido dito. Eu e ele éramos duas almas solitárias e esmagadas pela ilusão de um amor inexistente e que finalmente se encontram e, com um único beijo selaram seu maior desejo: um amor verdadeiro.

A troca de carinho fora unânime. Eu estava feliz novamente. Foi nesse exato momento que senti uma coisa diferente em mim. Era verdade! Eu então chorei e agradeci ao anjo em pensamento. Olhei o pôr-do-sol e uma linda melodia que antes tocava, parou. Olhei meu amor que estava ao meu lado sem nada entender, e falei com fervor e em voz alta: eu te amo! Ao longe, um sussurro de anjo se distanciava cada vez mais...

Jheni Bento
Enviado por Jheni Bento em 08/04/2011
Reeditado em 12/04/2011
Código do texto: T2897724
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