Na manhã, um acidente

O dia amanheceu como qualquer outro. As nuvens negras escondiam o sol atrás de uma brisa gelada e uma fina garoa que convidava os trabalhadores a se esconderem em suas casas ou casacos. Vários carros enfileiravam-se em uma procissão através do asfalto e os guarda-chuvas transitavam planando acompanhados da solidão e da individualidade.

Em um dos automóveis o aparelho de som emitia uma leve e melódica música barroca que chegavam aos ouvidos de um jovem rapaz, acompanhada das buzinas das motos. Um cigarro se consumia sendo segurado com muito descaso pela janela aberta e o motorista acelerava e freia seguindo o trânsito automaticamente, como se o corpo soubesse o que fazer sem a necessidade da mente intervir em tais ações.

O típico trajeto para o trabalho já se estendia mais que o normal, mas isso não estava nem perto de causar uma preocupação para Carlos que viajava em seus pensamentos que iam muito além daquela estrada congestionada ou os imensos prédios que a beiravam.

Foi até uma surpresa e um pouco chato quando o carro passou a se mover rápido após passar por uma construção no meio da pista. Agora a atenção estava voltada ao que se passava a sua frente, mas sua mente ainda ia e vinha de vez em quando.

Sua distração foi acentuada pela mudança da música no rádio. Agora o ritmo da sinfonia fazia com que o volante fosse alvo de ritmados golpes e um cantarolar acompanhado de assobios surgisse e tomasse conta de todo o veículo. Chegou a olhar o relógio de rua, mas não percebeu que estava absurdamente atrasado.

No momento em que a orquestra se preparava para a apresentação do segundo tema a atenção do rapaz voltou através de um baque surdo e um forte solavanco. Só para livrar a alma da culpa, Carlos ergueu os olhos e viu a luz vermelha que guiava os condutores, não era ele que estava errado, um bom sinal.

Ao sair do carro esqueceu por alguns segundos o porquê estava ali e voou até um passado que nunca existiu e a um futuro que ainda está sendo construído, tudo por causa de um rosto, uma imagem que veio à sua frente e tocou seu coração como nenhuma outra imagem seria capaz.

Ninguém nunca será capaz de explicar o porquê ou como isso foi acontecer, a sequência de fatos contribuíam para um caminho completamente diferente, mas Carlos não se preocupava, apenas aproveitava um dia maravilhoso na companhia de uma das figuras mais bela que já vira.

Ambos conversavam e riam do acidente, do trânsito e a complicação que causaram, a demora e confusão com os guinchos e até do fato de serem obrigados a voltar para casa a pé naquela tarde, sem nenhum dos dois sequer lembrar que não tinham ido ao trabalho, apenas aproveitavam a pausa em um seco e protegido bar.

A chuva, o barulho das pessoas, o garçom oferecendo outra cerveja, nada fazia com que o rapaz tira-se os olhos da bela figura que estava do outro lado da mesa. Ela era ruiva, olhos castanhos, jovem, alegre, meio desligada e jovial. Seu despreparo para lidar com certas situações (principalmente acidentes de trânsito) só levaram-na um passo a mais no sentido da perfeição para o singelo humano que a admirava e feliz abria um sorriso bobo cada vez que sua acompanhante o presenteava com um olhar.

Esse momento se estendeu por muito tempo, mas aconteceu antes que o relógio ganhasse fôlego de mexer seus ponteiros e só acabou no toque de celular mais irritante do mundo naquele momento. Júlia recebia uma ligação de seu chefe perguntando se estava tudo bem e indagando a ausência. A vida sempre tenta mostrá-lo que sua existência é insignificante, mas lembre-se que sua alma é imensurável e mesmo o universo pode ser pequeno perto de um ser completado pela presença daqueles que se ama.

Ambos, depois de muita negociação, conseguiram dispensas do trabalho (um acidente de trânsito abala o emocional de qualquer pessoa), foram ao cinema assistir um filme de ação e comédia, saíram muito contentes de terem escolhidos a nova animação que acabara de estrear e foram almoçar. Mesmo com muita relutância e uma constante discussão, Carlos sempre pagava as contas e prometia que deixaria que a moça pagasse a próxima.

A tarde foi abençoada com um sol tímido em meio as nuvens e uma discussão a respeito de obras literárias em frente a uma vitrine de uma livraria no shopping. Com algumas discordâncias um concordava completamente com o outro em suas críticas e a conversa ia ficando cada vez mais prazerosa.

Uma majestosa lua cheia surgiu para avisar aos transeuntes que este dia, apesar da relutância, deveria acabar. Mas um ciclo deveria se fechar, interrompendo um momento de maravilhosa paz e satisfação e guardá-lo no mais seguro cofre, a lembrança. Com uma promessa de se rever, cada um pegou um taxi e seguiu seu caminho, com uma felicidade sem tamanho no coração, acompanhada da esperança de ouvir o telefone tocar, sem perceber que não haviam trocado números de telefone ou qualquer outra forma de comunicação.