Memórias de um homem inexistente - O Reencontro

Antônio Apolinário Filho, criatura de rigor austero e de poucas, porém agradáveis palavras, não fez-se de rogado. Partiu de encontro aquela, pela qual havia de responsabilizar seu martirio de adolescente, assim que soube, não só por uma, mas por inúmeras outras bocas avidas por informação, da noticia da chegada de sua amada em Santa Clara. Dizia-se que havia chegado rodeada por santos, desfilando através da rua central, perfilando sua beleza em uma carruagem ornamentada por de aureolas douradas e anjinhos de porcelana, arrastada por dois alazões de grande porte que ostentavam vitalidade incomum. Brancos, enormes, de ferraduras forjadas de aço inoxidável, tão grudadas ao corpo que quase se apresentavam com uma ramificação do mesmo. Dizia-se que sua cabeleira avermelhada se estendia quase até abaixo dos joelhos, tão maravilhosamente encobertos pela camursa belga, igualmente trabalhada, do vestidinho de princesa que torneava-lhe os contornos femininos e que seus olhos, tão verdes e expressivos, pareciam queimar em brasa viva, fazendo companhia aos lábios singelos, pouco salientes mas ainda expressivos, de maneira exagerada e ao mesmo tempo simplória.

Apelidaram-na de “Anjo dos Andes”, já que quando ainda muito moça fora enviada a força pelo pai, o Falecido Dom Emanuel Castro e Silva, pouco antes de sua morte, para viver com Tia Ermenilda num convento em uma região afastada e remota da Patagonia. Tencionava com isso afastá-la das más companhias e do escarcéu politico no qual Santa Clara havia se transformado. Dizem que o velho Emanuel morreu de desgosto, pouco tempo depois, ao descobrir, de maneira tardia e inequívoca, o envolvimento da filha com o então reles e inexpressivo Apolinário Filho, cidadão comum e de origem humilde, cujo cunho hereditário não acrescentava em nada à nobre estirpe dos Castro e Silva.

Nos Andes, com a tia autoritária e igualmente rangorosa, familiarizou-se com os afazeres domésticos, que, segundo ela, uma digna tutora do lar deveria dominar. Aprendeu os segredos da culinária caribenha e dedicou grande parte do seu tempo ao cultivo de plantas misteriosas só ali encontradas, aprendendo com a tia os efeitos curandeiros das ervas, jamais se esquecendo que delas provinham o sustento da mesma, já adoentada, afligida por uma misteriosa enfermidade que erva alguma conseguira curar. Fixou moraria com a tia, vivendo e sobrevivendo em relativa harmonia, até o sétimo verão seguinte, quando esta, já visivelmente debilitada pela doença de cunho misterioso, veio a falecer enquanto recitava, aos prantos de uma moribunda despedindo-se em seus momentos finais de vida, seu ultimo desejo: “Vá... Volte e sejas feliz. Procure por aquilo que deixou para trás e que o infeliz do teu pai tratou de escomungar. Vá em busca de tua felicidade menina. Da mesma maneira rogo-lhe perdão por ter compartilhado de tão cruel destino e peço-lhe que reserve um tempinho, ainda que ínfimo, de oração, antes de se deitar, para que a alma de sua tia moribunda consiga partir em paz.” Não era de seu feitio guardar rancor, ainda que dos seus sentimentos fizesse parte o objeto primario e causador, portanto atendeu ao pedido da falecida tia sem mais questionamentos pessoais, e rezou treze avé-marias e dezesseis pai-nossos, naquela mesma noite, tratando de encomendar-lhe a alma à todos os santos dos quais tinha conhecimento e cujos nomes ainda lhe rodeavam a memória. Antes disso arrumou, com todo o espero do qual o bom senso dispunha, o corpo sobre a cama, lavando-o, enxugando-o e perfumando-o, de maneira respeitosa como imaginara que deveria ser feito com os mortos. Acendeu uma vela em seu nome e queimou insenso. Umedeceu algumas folhas de louro e chapiscou o quarto da falecida com água benta, tomando o cuidado de se demorar um pouco mais nas vestes que trataria de preparar para o velorio no dia seguinte, que seria tão solitário quanto inconsolador. Deitou-se as duas da madrugada, no quarto vizinho ao da falecida tia, mais por respeito do que por temor, visto que a seus olhos a tia, de tez naturalmente imaculada, parecia dormir um sono profundo, ao invés de encontra-se apenas de corpo presente, fato que não a incomodava, desde que não puxasse pela memória de que ali jazia sua parente falecida. Acreditava que as almas abandonam de pronto o corpo, no exato momento que se exala dele o ultimo suspiro, e que (Deus que a valha) são logo encaminhadas para um lugar melhor, ou pior, em se tratando do gênio difícil e de poucos amigos da falecida tia.

O fato de resignar-se com a morte da tia não aplacou de seu peito a solidão que a consumiu nos dias que se seguiram ao enterro. Perambulou pelos quartos da casa, cozinha e sala, durante incontaveis noites, remoendo as lembranças que voltavam a lhe aflorar a mente feito terra removida no fundo de um lago. Era de seu conhecimento que oficina vazia era mente do diabo, porém agora sabia que o mesmo conceito se aplicava a solidão. “Mente sozinha é oficina do carcará”, pregava para si mesma, sempre que se pegada, de maneira quase inconsciente, recordando o passado. Lembrava-se, quase todas as noites, em meio ao silencio reprovador e agora solitário dos Alpes Andinos, do rosto bem delineado do amado, dos olhos exageradamente azuis e da pele alva, queimada, castigada pelos respingos da poeira e pelo sol do verão, estação que se fazia constante nos trezentos e sessenta e cinco dias do ano em Santa Clara. Das covinhas que rodeavam-lhe a cintura magra, do queixo protuberante se estendendo para baixo, impassivo, feito uma estalactite robusta enfeitando o teto duro e inexpressivo de uma caverna, do cabelo crespo que parecia se esfarelar por entre seus dedos em meio as noites de amor incontrolável da qual ambos padeceram, num passado remoto, mas jamais esquecido. Foram tantas as lembranças, fantasiou-as tanto que não mais aguentando-se e contentando-se apenas com floreios imaginativos, decidiu, em meio a um atino repentino de nostalgia, voltar, encarar o passado, mesmo tendo por si que já haviam se passado sete longos anos e que o tempo provavelmente não os havia mudado apenas em face, mas também em sentimento. Acreditava que o amor contido em seu peito, latejando feito fera tencionando escapulir da jaula, não encontraria cumplicidade em seu amado, que já mais velho e maduro, muito provavelmente se casara e construíra vida própria, deixando-a de lado, esquecendo-a num recanto obscuro e pouco visitado de sua mente febril. Porém, assim como os apaixonados mais desatinados podem comprovar, não existe lógica irrefutável no ato de amar. Maria Antonieta Castro e Silva ignorou a razão e atendo-se a mais ínfima esperança voltou, de cabeça erguida e repleta de desejos secretos e igualmente esperançosos.

Antônio Apolinário encontrou-a em meio a ceia matinal, recepcionado pelo então Senhorio Adolfo Neto, apadrinhado e tutor temporário de Maria Antonieta, com um buquê de ambrosias encobrindo a mão já perfilada pelo enxerto de pele invisível que se ramificava lenta, porém acusadoramente, indo de encontro ao pulso enfaixado, de modo que pudesse disfarçá-lo, mediante os olhos astutos e igualmente atentos de sua antiga paixão. Esperou que se encontrassem a sós, mediante a curiosidade do apadrinhado Adolfo, vislumbrado com a visão de tão austero presente, para que pudesse se dirigir a donzela que permeava seus mais secretos desejos. Não se fez de rogado e nem de moço de bom recato. Entregou-lhe o buquê, recebendo um sorriso de bom agrado, perfilado pelos contornos sensuais dos seus lábios de princesa. “A que devo tão ilustre visita, Senhor Apolinário?”, questionou-lhe Maria Antonieta, sem dar por si que o coração já palpitava descompassado à simples menção do sobrenome. Aos olhos hábeis de tão formosa criatura, Antônio Apolinário Filho padecia num passado remoto, quase esquecido, mas ainda resguardado nos recantos mais profundos de um coração apaixonado. Limitou-se a manter a descrição, respondendo-lhe a pergunta com um singelo entreabrir de lábios, um sorriso quase legitimo. “Saudades da minha donzela.” À resposta seguiu-se uma mudança brusca de feições. O sorriso se transmutara em misto de tristeza e saudade, refletido num rosto engeado, aturdido pela ação do tempo e distância. E do coração, pouco soube o que dizer, já que não o sentia, ressentia-se, de tanto refrear os pensamentos. Passou incólume sobre o calvário sentimental e se viu a mercê do novo e inesperado rufar de tambores do qual voltara a padecer seu peito. "E o que me trará? senão discórdia, dor e sofrimento?", questionou Maria Antonieta ao amado. "Amor! Como sempre foi e como sempre será. Minha única e primordial promessa... Sincero e sem arrodeios". Fisgaram-se, amarrotaram as cobertas em um ir e vir frenético de corpos, feito dois peixes se enroscando fora d´gua. Quando a manhã chegou, de maneira lenta e morna, como que a apaziguar o leito dos amantes, ambos jaziam abraçados, enclausurados nas raias para lá de obscuras de uma paixão para a qual, assim como quase todas, não havia explicação.

Continua...

Edilton Nunes
Enviado por Edilton Nunes em 23/07/2011
Código do texto: T3113305
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