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AMORES DE ALDEIA

Corria entre as leiras e o milharal desenhava-se à sua frente como um labirinto verde a desembocar na estradinha de chão daquela colônia de lavradores.
Azulavam-se : o céu e os olhos da menina môça. Os seios arfavam sob o tecido xadrez da blusa e ,de quando em quando, o roçar de uma espiga e outra provocava-lhe um ligeiro espasmo.Era toda felicidade! Feitos trigais floridos, cediam ao compasso dos ventos os cabelos louros e a aspereza das folhas de milho , desajeitadas ,tocavam-lhe pernas e braços.
Perseguiam-a em lembranças mais recentes a imagem do fogão à lenha ,o feixe de manjericão atirado sobre o frango esquartejado na panela de ferro e o tampo da mesa onde ,num manto,descansava a massa do macarrão caseiro.
A canção natalina ,no idioma polonês,reproduzida pelo rádio e a mãe cantarolando junto.O misto de animação e nostalgia a embargar-lhe a voz,a visão desviada para que não a vissem de olhos marejados.Num átimo de pensamento retoma a polonesa gorducha a pentear-lhe os cabelos na manhã de um dezembro longínquo .A canção era a mesma .As mãos calejadas da mãe,a terra encravada entre as pequenas ranhuras da pele ... O pente deslizando de alto à baixo.Era um toque brusco,quase grosseiro ainda que dele emanasse um terno calor...Algo como os toques ríspidos das folhas do milharal que agora experimenta.Desajeitados,mas...Pazerosos. Os laçarotes vermelhos um pouco acima da fronte a dividir-lhe os campos de trigo em duas glebas.Um mirar-se no pequeno espelho de parede e dois pares de olhos feitos jardins de hortências ,extasiados.Os seus ,achando-se bela. O olhar da mãe,maravilhado ante a formosura da filha.Em seguida o abraço,as recomendações,as leiras ,os cães festivos ... A desabalada corrida até a estradinha de chão .Coração aos solavancos ! Um tropel rasgando trechos pela plantação e,de repente: O cavalo branco,a charrete cor de abóbora , a velha senhora de olhar igualmente hortenciado,lenço branco à cabeça... Esperada visita para o almoço de domingo.Ah! Estas lembranças a rodopiar-lhe o pensamento...
O frango ao molho de manjericão e aquêle cheiro entranhado para sempre em memória olfativa. Charrete parando, cavalo ofegante,suado...o cheiro acre no couro do arreame. A voz apolacada da avó,o abraço e o envólucro de presente sob o assento ( ela trazia-lhe sempre um agradinho).
O afago da babunha* e aquêle seu cheiro combinando naftalina e leite de colônia.A quentura das mãos enrugadas em seus ombros franzinos .A cabeça loura recostada no tecido cinza com bolinhas brancas do vestido...O “ tun-tun” do coração e a altivez da velhinha no comando das rédeas.Eihaa!...O estalar do chicote no lombo alvo do animal e ,juntas,na manhã azul tomando o rumo da colina.Um fio embranqueçido de fumaça delatando a casa encolhida entre o laranjal.
[Cheiro de manjericão vasando pelas janelas]
Agora a mesma correria.Não mais a mão pesada da mãe sobre os cabelos de trigo. No pequeno espelho da parede os olhos azuis que agora lhe espreitam, revelam as marcas do tempo.A môça que hoje lhe sorri,é bela,cheia de vida e...Apaixonada.
Não mais as recomendações,até porque sai às escondidas.A mãe não compreenderia aquêle seu aperto no peito,a secura na garganta experimentados quando por volta de onze horas repicam os sinos da aldeia. Ecos que costumam vasculhar seu coração .É a marca indelével de domingos iguais quando a igrejinha devolve aos seus destinos o grupo de fieis e entre eles o jovem aldeão que lhe enfeitiçara a alma.É preciso reencontrá-lo,vislumbrar sua presença ainda que,vez e outra,apenas um ligeiro aceno confirme-lhe os sentimentos.Vencido o labirinto de espigas ,uma vez mais a estradinha de chão deitada à sua frente.Arabescos de rodas na terra molhada insinuam-lhe dimensões desconhecidas por onde no imaginário trilha a charrete do tempo.Sente no entanto, a ternura invisível da velha senhora dos domingos, o olhar comovido para a menina de laçarotes vermelhos que vencera o seu estágio de casulo e , agora borboleta de luz , percebe o amor chegando pelos mesmos caminhos dantes trilhados pelo cavalo branco.
Um longo beijo, e o casal deixa-se engolir pelo túnel das araucárias.
Falam em voz alta,riem e fazem planos. O ronco barulhento da moto desafia cigarras pelo caminho.
Na colina,um fio embranqueçido de fumaça risca a manhã azul.
Respira-se dezembro!
Anda pelo laranjal aquêle mesmo cheiro de frango com manjericão.

(*) Babunha - avó polonesa