O guardião

Os erros mais estúpidos que cometi em minha vida, cometi guiado pelo coração, foram ótimos erros. Só me arrependo mesmo do sofrimento que me auto infligi pelas escolhas que fiz usando a razão... Era um dia triste, daqueles em que tudo o que se deseja é poder voltar atrás, apagar consequências, esquecer das verdades enfim reveladas e voltar a sorrir inconsequentemente, mas, a certeza de que nada nunca mais voltaria a ser como antes açoitava minha alma com a mesma falta de piedade com que fiz minhas próprias escolhas. Deitei ainda sem sono procurando criar um misero momento de paz, observei indiferente as nuvens luminosas de minha consciência sendo projetadas em minhas pálpebras fechadas, sem querer encontrei um velho caminho dentro de mim, para uma incrível cidade que até hoje só visitei em meus sonhos de criança...

---- Ele chegou! - Escutei uma voz feminina que aparentemente falava de mim.

Lá estava eu novamente, no centro da grande praça, que parecia ter sido projetada para receber sonhadores como eu, lembro de ter pousado nela por diversas vezes, mas, sempre estive sozinho no início, desta vez, diversas pessoas pareciam estar me esperando.

---- Qual deles é ele? - Perguntou um homem com um enorme buraco no peito e que segurava nas mãos o próprio coração.

---- Acho que é o mago! - Respondeu a voz feminina, que parecia vir do lado esquerdo do homem de peito rasgado – pelo menos ele tem cara de mago.

---- Não! Ele deve ser o guerreiro! - comentou uma moça de voz doce e triste atrás de mim, virei-me para observá-la e vi apenas uma escuridão profunda, que desenhava no ar a silhueta negra de uma bela mulher.

---- Por favor! Identifique-se sonhador. Qual deles é você? - Perguntou-me a bela voz sem corpo.

Raramente em minhas visitas à cidade percebo que estou sonhando. Desta vez eu sabia exatamente onde estava, lembrava de outros sonhos como se nunca houvesse os esquecido após o despertar. Na verdade, dentro daquele sonho, eu sentia pela primeira vez na vida que estava realmente desperto.

---- Eu sou o guardião dos oito segredos – respondi, lembrando das palavras que um dia, num outro sonho, um homem sem idade e que sempre chamei de mestre havia me dito – Sou o velho que abriu o pergaminho diante da sonhadora que buscava respostas e não deixou-a ler, sou o jovem que brincou de construir as perguntas que fizeram-na sonhar. Sou quem leu a verdade e esqueceu antes de aconselhar.

---- O Guardião? - Pergunta o homem contraindo os ombros – Nos enviaram o Guardião? Como ele vai nos ajudar? - Ao mesmo tempo em que ele me olhava com curiosidade, eu fitava seu coração e percebia que dele pareciam sair finíssimos fios prateados, alguns pendendo como se tivessem sido cortados e outros que pareciam esticar-se em todas as direções, como se amarrados a outros corações distantes.

---- Escuta! Não vim aqui para ajudar ninguém, vim resolver meu próprio problema! Ok? - Falei já preocupado com a maneira como me sentia observado.

---- Guardião por favor nos escute! - Disse a voz que insistia em flutuar em torno de nós – Nos invocamos alguém que possa nos ajudar e você foi enviado. Nunca subestime a sabedoria que construiu esse mundo onde você agora habita. Se você também tem um problema, tenho certeza que a solução estará no nosso caminho. Não nos deixe sem auxílio.

Normalmente quando descubro que estou sonhando, tenho problemas para seguir o roteiro preestabelecido. Sempre tento sair voando, roubar um beijo de uma figurante que passa, ou qualquer coisa que não poderia fazer em minha vida acordado, mas, estava deprimido demais para querer voar e não haviam figurantes nas proximidades.

Acompanhei os três seres oníricos até uma pequena e vazia taberna no fim da cidade, um lugar de semblante muito antigo, na beirada de um enorme precipício. É estranho como conheço histórias desta taberna, lembro de ter ouvido alguém dizer que ela já existia antes do tempo do sonho, que já foi frequentadíssima embora hoje esteja sempre vazia, que amores nasceram e morreram em suas cadeiras de madeira escura e que deuses e mortais já compartilharam bebidas em seus balcões de pedra. Sentamos em uma mesa redonda com uma bela vista para o abismo a nossa frente, então deixei que meus companheiros me contassem seus problemas e histórias:

---- Eu dei meu coração a uma mulher, mas, ela foi embora e esqueceu-se de levá-lo junto. - Uma sutil lágrima escorria pela face do homem – não conseguirei mais ser completo se meu coração não estiver nas mãos certas.

---- E o que você quer que eu faça? - Perguntei.

---- Leve-o com você, entregue-o para a verdadeira dona quando a encontrar...

---- E como quer que eu a encontre?

---- Isso é fácil, siga este fio dourado que sai de seu centro – Sem olhar, ele apontou para o fio exato, um pequeno fio dourado que se destacava dos demais feitos de prata, achei incrível não tê-lo visto na primeira vez que parei meus olhos sobre aquele órgão removido.

---- Mas então por que você nunca seguiu o fio e entregou você mesmo? Por que eu preciso ir no seu lugar?

---- Se este coração ainda bate é por que tenho esperança e fé. - a tristeza era evidente em seu rosto pálido – Vivo porque acredito que ela apenas esqueceu de levar com ela o maior presente que pude lhe oferecer, se eu descobrir que ela desprezou o coração que arranquei de meu peito, morrerei afogado em minhas próprias lágrimas, não poderei suportar. Esperarei aqui por seu retorno e quero apenas que você me diga que foi feito, mas, nunca me conte o resultado.

Pensei em perguntar o que ela faria com o coração depois de o receber, mas, ele me impediu continuando a explicar minha misteriosa missão.

---- Ela é uma sonhadora como você, visita e conhece esta cidade da mesma forma que você. Certifique-se de que ela esteja com meu coração quando despertar, para que possa fazê-lo real no mundo onde vocês hoje vivem. Se um dia meu peito oco se aquecer, saberei que ela está olhando para o meu coração, e viverei feliz aqui com este calor.

Antes que eu pudesse dizer qualquer coisa, a voz feminina que flutuava sobre uma cadeira vazia começou a me contar sua história:

---- Eu me apaixonei por um sonhador que um dia visitou esta cidade. Ele corria pelas ruas com a mesma euforia de uma criança que visita este local pela primeira vez. Eu corri com ele, eu sei que ele teve por mim o mesmo carinho. Começamos a conversar e a caminhar, nossa conversa estava tão interessante quanto os prédios e histórias da cidade, tão imprevisíveis quanto as direções que ele tomava em sua exploração. Conversando com ele eu esqueci que tinha um corpo, viramos para a direita, mas meu corpo deve ter ido para a esquerda, levamos muito tempo para perceber que meu corpo não estava mais lá. Ele acordou e eu nunca mais encontrei o que um dia fui eu mesma. Nem ao menos consigo lembrar como eu era...

Antes que eu pudesse sugerir que ela arrumasse um emprego no telemarketing ou perguntar como eu encontraria o seu corpo, ela continuou a me dizer como poderia ser auxiliada.

---- Preciso que você me recrie. Que use a magia dos sonhadores e sonhe para mim um novo corpo, e eu lhe juro que nunca mais o perderei.

Era estranho, sempre foi muito simples imaginar como deveria ser, (ou poderia ser), o corpo de uma mulher ao simplesmente ouvir sua voz no telefone, mas, no caso daquela misteriosa voz eu sentia-me em total dúvida:

---- Você é jovem ou já é velha? Magra? Robusta? Loira? Morena? Bonita? Feia?

---- Eu não lembro mais – ela respondeu – por isto preciso que você me diga. Vou acompanhá-lo até o fim, e no final você me dirá como eu sou e isto será o que eu sempre fui.

Eu estava pensando em sonhá-la muito bonita para poder dizer que tive um sonho erótico, mas, antes que pudesse cogitar em abrir a boca para dizer qualquer bobagem sobre isso, a escuridão chamou-me atenção com sua voz melancólica e adocicada.

---- Eu sou uma estrela brilhante! - Ela afirmou embora pudesse ser constatado que não havia nem mesmo resquício de luminosidade em torno dela – Um dia me apaixonei também, porém, o sonhador que eu visitava se incomodava demais com a minha luz. Sonho após sonho eu me obscureci para que ele pudesse ficar mais confortável com a minha presença, até que um dia ele pode olhar diretamente para mim sem se cegar. Contei a ele de meu amor e fui desprezada. A rejeição apagou-me por completo. Esta sombra do que um dia eu fui, é tudo o que restou de mim.

Foi neste momento em que pensei que independente do desfecho do sonho, eu deveria escrevê-lo. Senti em meu intimo o real desejo de auxiliar aquelas pessoas com problemas tão incomuns, e talvez, esta fosse a primeira história com um final feliz destinada a ser escrita por mim. Foi estranho estar sonhando e tentando interpretar o sonho ao mesmo tempo, tentei sem sucesso encontrar alguma relação metafórica entre os fatos relatados e os meus próprios problemas, fiquei com medo de estar plagiando o mágico de Oz e tive medo de acordar sem saber que direção o sonho seguiria no momento seguinte.

---- Eu clamei por sua ajuda, mas, não sei como você poderá me ajudar – continuou a silhueta – vou acompanhá-lo também, levando comigo apenas minhas orações, esperando que sejam atendidas.

---- Você nos disse que também tinha um problema – interrompeu o homem, cujo o coração agora eu segurava em minhas mãos – Qual é a sua busca?

---- Ah! Nada importante agora.

---- Nesta mesa, é que se deve dizer o que é verdade. Mesmo que não seja. - Respondeu o homem.

---- Ok! Eu expulsei da minha vida alguém que eu amava, agora sofro com isto.

---- Ela esqueceu seu coração?

---- Você esqueceu quem você era?

---- Ela apagou sua luz?

---- Não, claro que não, perto de vocês eu deveria estar feliz... Ela só se foi, sem muita luta. Eu permiti mesmo sem querer, era a coisa mais lógica e sensata a fazer. - senti como se as cores do local estivessem desbotando, um formigamento no peito que parecia se tornar mais forte com a atenção que dei para ele.

---- Você está acordando Guardião. Beba isto para continuar conosco. - A estrela que perdeu a luz estendeu-me uma pequena garrafa, dentro da garrafa uma impressionante substancia negra com pontos brilhantes que é realmente difícil de descrever, mas, que poderia ser descrita como uma noite estrelada engarrafada. Impressionado com aquele estranho liquido pude observar que era realmente um céu estrelado e uma linda lua crescente flutuava no meio quase ao fundo do vidro.

Bebi um pequeno gole e o sabor da noite foi percebido no meu corpo, não em minha boca. É estranho que normalmente os sonhos são desprovidos de sabor e cheiros, mas, após beber o primeiro gole tive a impressão de sentir um doce perfume de baunilha com flores de algodão, misturado com o cheiro da umidade daquela taberna onde estávamos.

Eu queria ter perguntado o que ela me deu para beber, mas, estar acordando me deixava confuso, como se os pensamentos escorressem por minha mente e se perdessem no chão. Levantamos e não estávamos mais na velha taberna, eu começava novamente e sentir-me acordado quando a voz flutuante me falou:

---- Ao sentir que está acordando, gire em torno de si mesmo, beba desta garrafa, não deixe o sonho terminar.

Parecia apenas uma recomendação, mas, entendi como uma ordem e rodei um pouco no meu próprio eixo. Girando fiquei com medo de embaraçar os fios daquele coração, mas, percebi que eles facilmente transpassavam um aos outros e também o meu próprio corpo, que finalmente havia parado de formigar.

---- E o que fazemos? Seguimos o fio dourado? - Perguntei para as duas moças, sem me surpreender com o fato do homem não estar mais conosco.

---- É você quem manda Guardião.

---- Aliás, eu sei que fui eu quem disse... Mas aproveitando que estou aqui, o que significa essa história de Guardião? Foi um mestre quem me disse em outro sonho, e eu repeti, mas, não sei se entendo. - Tentava conversar enquanto caminhávamos por uma longa estrada cujo final estava além do alcance das nossas visões.

---- Ah! Nunca ninguém te falou? - Perguntou a moça sem luz.

---- Não. Mas quando vocês perguntaram, eu tinha certeza de que esta era a resposta.

---- Então... Alguns sonhadores nasceram com a habilidade de sonhar fora deste mundo, outros conseguem trazer coisas para cá, ou levar coisas daqui para seus próprios mundos.

---- Tá bom então, e o que eu tenho haver com isso? Nunca sonhei fora daqui.

---- Temos nove grandes sonhadores, invocamos os nove hoje, esperando que algum atendesse nosso chamado. Você veio. Esperávamos o mago, que sonha lucidamente em qualquer dimensão em que esteja, ou o Guerreiro que sonhou e venceu todas as batalhas. Mas você é o Guardião, o oitavo sonhador, confiamos em você.

---- E qual é a minha habilidade?

---- Oras, o que faz um guardião?

---- O que? - Não que eu não soubesse, mas, juro que eu precisava de uma resposta menos óbvia.

---- Você guarda coisas.

---- Que ótimo! - Neste momento o fio dourado que seguíamos apontou para a direita – Você me iluminou agora.

Tomei mais um gole da noite estrelada como se para matar a sede que eu tinha de sonhar. Aconteceu algo estranho em seguida, o tempo deu um salto, acho que isso sempre acontece em sonhos, mas, normalmente estamos distraídos demais para perceber acontecendo. Eu sentia ter percorrido um longo caminho, lembrava vagamente de inúmeras conversas com minhas duas companheiras, mas, acho que não aconteceram de fato, digo, não as vivi num momento presente, ou pelo menos não lembro de ter vivido.

Estávamos em um imenso gramado, atrás de nós uma densa floresta que eu acho que atravessamos instantes atrás. A nossa frente, bem longe, víamos uma enorme ponte de mármore branco, curvada para cima e sem nenhum corrimão. O fio dourado apontava em direção da ponte, e seguimos caminhando para lá.

---- Por que eu não lembro de ter chegado aqui como lembro das outras coisas? - Perguntei.

---- Nós entramos nos domínios de outro sonhador, deve ser a sonhadora que procuramos – respondeu a voz flutuante – isso também aconteceu com a gente, mas, acredite, nós trilhamos um longo caminho para chegar até aqui, mesmo que nossas mentes tenham se distorcido ao entrar na mente dela, isto não altera os nossos fatos.

---- Mas então, este local, essa ponte, são coisas de dentro da mente dela?

---- Não. Isso sempre esteve aqui. Foram sonhadas pelos grandes sonhadores do passado, e viraram eternidade. Ela só escolheu sonhar aqui.

---- Vejam! Lá está ela! - Falou a garota apagada apontando para o outro lado da ponte.

---- Com quem ela está falando? - Perguntei.

---- Ela está sonhando! - Respondeu a voz – Ela vê o sonho dela, misturado com o sonho eterno. Talvez nem saiba quem é, nem o que está acontecendo.

---- Mas... - Eu não sabia exatamente como me referir aos sonhos dentro dos sonhos no sonho dela – nós não vemos o que ela está sonhando.

---- Nem sempre.

Chegamos perto da ponte, ela devia ter quase duzentos metros de extensão sem nenhum lugar para apoiar as mãos e a queda parecia ser violenta e dolorosa. Para piorar havia uma ventania realmente forte soprando contra a ponte, dando a impressão nítida que tentar atravessá-la era uma péssima ideia mesmo num sonho...

Eu tenho um teste, o executo sempre que questiono a realidade de alguma coisa que estou vivendo: Eu faço ganchos com meus dedos mindinhos e tento esticá-los. Quando esticam, tenho certeza absoluta que estou mesmo dentro de um sonho e não acordado. Eu sei que existiam pelo menos mil evidencias de que eu estava dormindo, mas, por precaução, antes de expor a minha vida a um perigo mortal, resolvi confirmar.

---- Meus dedos não esticam! Isso não é um sonho! - Falei já um pouco apavorado – Nos sonhos eles sempre esticam!

---- Te garanto que isto é um sonho – me falou a moça que havia perdido a luz.

---- Como eu vou saber que não estou alucinando??? Que não estou sobre um viaduto do mundo real pronto pra quebrar o pescoço?

---- Você não vai saber... Na dúvida, tente não cair. - Respondeu a voz.

Respirei fundo... Bebi mais um gole da minha poção, mas, não girei em torno de mim com medo de ficar zonzo na hora de cruzar a ponte. Coloquei o primeiro pé sobre a ponte, e a vertigem de altura se fez presente em meu estomago.

---- Você vai conseguir – me disse adocicada a voz da estrela.

Continuei caminhando, um passo após o outro, arrastando os pés e tentando manter em mente que se não houvesse uma queda terrivelmente assustadora para cada lado, não haveria dificuldade nenhuma em cruzar a ponte. Olhei para trás e estava sozinho. No meio da ponte, o ponto mais alto do meu caminho.

---- Onde estão vocês? - Perguntei ao vento.

---- Estamos aqui... Mas a sonhadora não está nos vendo agora, então você também não pode nos ver... Suas mentes estão se tornando próximas enquanto você avança.

O vento aumentou, quase me desequilibrei. Continuei andando, arrastando os pés. Tenho certeza de estar em meu próprio corpo e usando outra roupa quando subi na ponte, mas, quando me dei por conta, minhas mãos estavam enrugadas com a idade, não havia espelho, mas eu conseguia saber que agora eu estava com as feições de um homem muito idoso. Eu vestia algo semelhante a um capuz com capa preta, e em um bolso interno, conseguia sentir a presença de um pequeno tubo. Eu sabia que o tubo continha um velho pergaminho e que eu já o havia lido e esquecido milhares de vezes. Achei curioso que eu tenha me transformado sem perceber, mas, provavelmente eu estava ocupado demais com o meu próprio pavor de cair para reparar em algo indolor como uma metamorfose...

---- De onde você veio? - Perguntou-me a sonhadora. Ela era mais linda do que imaginei quando o homem de peito esburacado me falou, no momento fiquei triste deste ser um sonho sério e eu não poder abusar nem um pouco da impunidade onírica que os sonhadores tem.

---- Vim de lá – apontei para a ponte, sem conseguir deixar de reparar no fato que de tempos em tempos imagens, pessoas e paisagens lindíssimas escorriam da cabeça da sonhadora desaparecendo no chão. - vim para lhe entregar isto – Estendi a ela o coração do homem, e percebi que o fio dourado terminava exatamente no peito da sonhadora, do peito dela saía outro fio da mesma cor, que terminava diretamente no meu. Seria possível eu não ter percebido este fio antes? Acho que ele surgiu naquele momento.

---- Que bom! Que bom! Eu achei que tinha o perdido para sempre! - Ela pegou o coração de minha mão com muito carinho – Como eu faço para levá-lo comigo? - ela me perguntou.

---- Pra levá-lo com você, ele precisa fazer parte de você. - Não sei como eu sabia disso, foi como se a resposta estivesse guardada em mim desde que nasci, esperando apenas que alguém me perguntasse.

A sonhadora colocou o coração dentro da própria cabeça, pelo mesmo lugar de onde as vezes escorriam tantas belas imagens, neste momento, vi escorrer de sua mente imagens de minha própria vida, de meus próprios sonhos, e entendi daquela maneira estranha que se compreende as coisas dentro dos sonhos, que ela estava apenas jogando sementes, buscando solo fértil por onde passava, as sementes não desapareciam ao tocar o chão, o chão era a entrada de minha própria consciência.

---- Acho que vou acordar, desculpe não ficar mais – ela me disse – Lembrarei de você.

---- Eu não sou assim como você me vê – respondi – espero que me reconheça.

Eu imaginava que ela iria simplesmente sumir, mas, o tempo deu outro pulo. Estava agora ao lado de uma pequena ponte de madeira, com um pequeno riacho que passava logo abaixo dela. Podia ver uma choupana caindo aos pedaços ao longe e sabia de alguma forma, que seu interior era rico e luxuoso, embora a aparência externa fosse bastante precária. Eu sentia que havia conversado por horas com a sonhadora, falado de minha vida, escutado sobre a vida dela, trocado telefones, e-mail e etc, mas, não lembrava de nada.

---- Que bom que assumiu sua verdadeira forma guardião. - Disse a voz - Agora finalmente poderemos lhe perguntar.

---- Ah! Vocês voltaram...

---- Como eu me pareço quando tenho corpo? – perguntou a voz flutuante.

---- Você é muito parecida com a sonhadora que acabei de conversar – respondi sem exitar, visualizando uma perfeita imagem mental com a mesma certeza que tive ao responder para sonhadora como contrabandear um coração – Só o seu nariz que é um pouco maior. Você também é um pouco mais velha do que ela.

---- Eu nunca gostei do meu nariz – ela respondeu apalpando o nariz em seu corpo que acabava de se materializar diante de nós. - Mas agora até gosto dele! Estava com saudades de ser eu mesma. É exatamente assim que eu era! Pensei que você iria me recriar, mas, você sonhou com a minha verdadeira forma! Obrigada Guardião, por guardar minha aparência.

---- Se precisar de um cirurgião plástico é só perguntar... - Eu sabia que o sonho estava acabando, mesmo assim, tentei beber mais um gole da minha poção fixadora. Infelizmente, para minha surpresa, ela havia acabado, restando apenas a lua, sem uma gota de céu no fundo da garrafa.

---- Onde está minha luz? - Perguntou a silhueta de voz adocicada ignorando minha piadinha com o enorme nariz da ex-voz flutuante.

---- A luz nunca saiu do lugar, você é quem se moveu. - Eu não sei como sabia, apenas sabia exatamente o que dizer.

---- Então eu só preciso lembrar? Só isso? - ela começou a brilhar como um sol a nossa frente, sendo quase impossível olhar para ela diretamente. - Obrigada Guardião, por saber me dizer onde procurar o que perdi.

Eu estava sentindo o formigamento novamente, eu queria que alguém perguntasse sobre o meu problema, tenho certeza que a resposta está guardada em algum lugar, mas, o canto dos pássaros do sonho lenta e sutilmente misturavam-se com o dos pássaros em frente de minha casa. O que eu não daria por mais um gole daquela poção noturna, mas, eu já estava acordado, vendo as nuvens luminosas da minha consciência projetadas nas pálpebras fechadas. “Um final quase feliz”, pensei antes de me espreguiçar, mas, sei que minha jornada ainda não terminou e que o sonho não acaba simplesmente por que amanheceu.

=NuNuNO==

(Que na verdade queria mesmo que alguém tivesse perguntado os números da mega-sena!)

NuNuNO Griesbach
Enviado por NuNuNO Griesbach em 29/08/2011
Código do texto: T3188847
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