Quando a maré permitir (cama para Anchieta)

De um lado o grupo em que o narrador de primeira pessoa (embora se mostre onisciente, às vezes: “Mas essa informação tem o guia os demais não sabemos...”) se manifesta sempre no plural, em “nós”, nunca será “eu”; de outro lado o “ele”: “ao moço um verniz de coragem romântica já que parece ter o Atlântico entre os braços...”. Para ambos a ameaça: “A maré vai subir.” Ao grupo, toda a segurança (passarela com grades, guia); ao moço, toda liberdade e amplidão de estar abraçando as águas. Ao primeiro a tecnologia abraça a natureza (fleches); ao segundo o corpo a corpo com a substância. Ao grupo, a visita a algo que “não vai a lugar algum”, que parece um túmulo, que será registrado e abandonado por segurança. Ao moço sozinho , o jogar-se na verdade das águas. A radicalidade dessa oposição parece-me uma provocação a que o leitor reflita, no âmbito filosófico, ou no político, ou outros ainda... Bela narrativa, também cercada, protegida pela rica descrição do ambiente, uma espécie de muro que espera ser rompido para revelar a história. Salve Anchieta em seu exílio poético e religioso! – Helena Souza

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A passarela é de madeira, tem proteção de ambos os lados. Segue contornando as rochas de formação basáltica, ora quase se misturando ao que o mar trouxe no arrebentado das ondas. Espuma, brancas ondas.

Espuma branca do pensamento.

A maré vai subir.

Esta informação tem o guia, os demais não sabemos.

Agora, a turma segue. São turistas na maioria e alguns da cor local, caiçaras de Itanhaém para melhor saber-se de quem se trata. Seguem, como dizíamos, sobre o que mais se parece com um pear.

A passarela conduzirá até aquelas rochas mais altas de onde um jovem mira o horizonte. Ele faz um movimento com os braços e, parece, à essa distância, que vai abraçar alguém. Bonito de ver a paisagem, esse recorte pontuado de pedras que suportam ondas ameaçadoras que dão ao moço um verniz de coragem romântica já que parece ter o Atlântico entre os braços.

O guia perde a oportunidade de dizer que é possível refazer num traço de linha reta o caminho de volta que um dia fizera o padre catequista Anchieta.

Bem, é melhor seguirmos até nosso destino, a saber a rocha conhecida como Cama de Anchieta. Trata-se de uma rocha enorme que não vai a lugar algum e nos esperava desde a fundação dos tempos.

Ali está ela, parece mais um túmulo se deitarmos nela.

Se a formação geológica leva nome pomposo deveríamos nos fotografar de forma apropriada, que acham? Foi dizer pra ver. Todos estão a fazer o ritual de se fotografar no cenário porque são na maioria, como foi dito, turistas.

Deita um e mil fleches são disparados. Deita outro e mais mil, e outro, e outra. Mais máquinas disparam, objetivas se abrem para a realidade da pedra molhada. Serão centenas de imagens imitando a figura borrada de um jesuíta mitológico.

A tarde perde-se em procurar o mito Anchieta no vão entre o vão da rocha que parece mesmo uma cama. É impressionante, a parte superior nos asfixia como haverá de fazê-lo a tampa de um caixão.

Mas o sol é encoberto. Nuvens pesadas, gaivotas em algazarra. Os barcos pesqueiros procuram o caminho de casa. Alguma coisa vai acontecer que nos escapa, o cenário muda rapidamente. Não é o melhor lugar para ficarmos deitados eternamente como se tratasse de berço esplêndido. O que se vê do que antes era uma ampla faixa de mar é apenas ameaça, estrondo.

O guia alerta que já não poderíamos estar aqui, o mais seguro é a sacada do restaurante de onde o grupo saímos.

Estaríamos todos em segurança não fosse o jovem romântico que abraça o Atlântico. Aquele moço que esquecemos no alto da pedra ficara inadvertido.

Vejam isso, ele gesticula eufórico. Mas que isso? Ele nos dá um último sinal de êxtase, uma onda mais alta lambe a cama de pedra e o arrasta para o não sei onde do abismo.

Alguém disse que o ouviu pronunciar um nome. Talvez tivesse gritado pedindo socorro. Ou talvez tenha se matado. Talvez.

Como disse o amigo de um amigo meu, "vai saber...".

Quando permitir a maré, faremos uma foto onde ele morreu.

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Baltazar Gonçalves

Baltazar Gonçalves
Enviado por Baltazar Gonçalves em 25/09/2011
Reeditado em 20/11/2019
Código do texto: T3239585
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