O POBRE AMANTE

O homem recostou-se na sua poltrona, cruzou as pernas e pegando no seu cálice de Porto, olhou a interlocutora e suspirou antes de sorver um pequeno gole.

- Pois é, cara amiga, passou-se comigo um caso, não há muitos anos, que me impressionou imenso. Eu ainda dava consultas e em situações de urgência ia a casa das pessoas que me solicitavam esse serviço. Sempre entendi que o exercício da medicina se deve sobrepor a interesses económicos. Bem, adiante. - Fez uma pausa e tomou novo gole. - Ora entre os meus clientes contava-se uma mulher extremamente bela, que morava num condomínio privado e tinha criada interna. Sabia, por portas e travessas, que ela era uma mulher mundana, com amantes riquíssimos, que lhe satisfaziam os caprichos e a enchiam de jóias, sustentando a sua vida de fausto. Como referi, era extremamente bonita, mas tinha um problema, de saúde - fraqueza de pulmões

- como fumava bastante, de vez em quando surgiam problemas respiratórios que demoravam a resolver-se. Consultei-a várias vezes e cada vez mais lhe era difícil superar cada crise.

A sua amiga e interlocutora, D. Eduarda, perguntou-lhe: - Então e depois?

- Acontece que uma noite de invernia, quase de madrugada, tocaram com violência à minha porta. Demorei um pouco a abrir, resmungando, porque me tinham espantado o sono e não seria fácil voltar a adormecer. Era a criada da tal senhora, muito aflita, pedindo por amor de Deus a minha presença, pois a patroa tinha tido uma crise muito forte e havia desmaiado, parecia-lhe morta. Eu não pensei duas vezes, vesti-me à pressa e desci. Tinha um táxi à espera.

Como não havia trânsito aquela hora, chegámos depressa. Subi ao segundo andar onde a senhora em questão morava e impressionou-me o luxo dos aposentos, sobretudo o seu quarto, apesar da fraca iluminação presente.

O corpo estava estendido numa cama muito larga, torcido e semi-tapado com um lençol de cetim e um edredão compacto. A sua face muito pálida, a pele quase transparente, fizeram-me temer logo o pior. Auscultei-a e depressa percebi que o caso era fatal. Não respirava, não tinha quaisquer sinais vitais, o corpo começava a arrefecer lentamente. Suavemente, tentei que ficasse direita na cama e recuei, saindo do quarto.

Respirei fundo. Apesar da profissão, a morte sempre me causava algum incómodo.

Fui até à janela e vi um vulto masculino, postado em frente ao prédio, que olhava insistentemente para a janela onde me encontrava. Chamei a criada, ela acercou-se, a fungar, tinha percebido a morte da patroa. Perguntei-lhe se conhecia o homem. Ela disse-me que a ama lhe tinha confiado ser um amante antigo, que se arruinara com os seus caprichos e que agora desprezava porque era pobre. Passava a vida a rondar o prédio, de forma inofensiva, apenas olhava a janela do quarto, possivelmente à espera que ela aparecesse.

- Bem, eu posso passar o atestado de óbito mas é necessário tratar do funeral, ela não tem família?

- Senhor doutor, nunca ouvi falar em tal coisa. Acho que a senhora não tinha ninguém.

Respirei fundo e pegando na agenda, telefonei para uma agência de um amigo meu. A chamada ficou em voice-mail, tendo deixado os dados para eles aparecerem logo de manhã. Como não havia mais nada a fazer, eu resolvi ficar, fui até à sala, o aquecimento estava ligado e sentei-me num sofá, tentando dormir um pouco.

A criada acordou-me quando os homens da agência chegaram. Eu tinha já dado a altura aproximada da senhora e queria uma urna de boa qualidade.

Dois dos homens entraram no quarto, a criada foi com eles para ajudar a vestir o corpo. Fui à porta, espreitei para ver o esquife que tinham trazido, conseguiram subi-lo no elevador e estava encostado na parede. Reparei então num homem encoberto pelo caixão, reconheci nele o vulto que estivera toda a noite na rua, a olhar para a janela da defunta. Ele pegou-me na mão e chorando, pediu-me, por favor, para eu o deixar vê-la. Chorava convulsivamente, não me largava a mão e eu acabei por aceder, mas tinha de esperar que a arranjassem devidamente.

Por fim, eles saíram do quarto para vir buscar o esquife, eu disse-lhes em voz baixa qual o pedido do homem, eles compreenderam e entrei com ele na câmara mortuária, onde a criada chorava em silêncio. Ele ajoelhou-se junto à cama e tomou a mão da defunta, escondendo a cara no edredão sobre o qual o corpo repousava.

Deixei-o estar ali, durante algum tempo, depois toquei-lhe no ombro, ele percebeu e levantando-se, abandonou o quarto.

Na tarde desse dia houve o velório na igreja do bairro, a que compareceram apenas algumas pessoas, possivelmente vizinhos.

O funeral realizou-se num dia de chuva miudinha, fria como o tempo que fazia.

Dois ou três cavalheiros muito bem vestidos, presenciaram a cerimónia à distância, não se juntaram aos acompanhantes do funeral.

Reparei no homem que do outro lado da zona onde estávamos, junto à sepultura, escondendo o rosto, também parecia estar ligado àquele acontecimento. Era o antigo apaixonado da defunta.

Uma semana depois passei pela campa, depositando um ramo de flores e dei com um vulto ajoelhado junto do monte de terra. Era ele, logo que sentiu a minha presença, levantou-se rapidamente e afastou-se dali.

Nunca mais o vi.

Alguns meses depois, quando lá voltei para ver se as pedras que tinha encomendado ao canteiro tinham ficado conforme pedira, perguntei a um dos coveiros que ali trabalhava se recordava algum homem visita frequente junto àquela campa. Ele disse que sim, todos os dias, de tarde, um sujeito magro e com ar doente se postava durante algum tempo perante a campa, parecendo rezar. No entanto, recentemente, deixara de o ver.

E é esta a história que eu lhe queria contar.

- Fiquei impressionada, de facto…Mas com tantas histórias que conhece da sua vida passada, porque me contou esta?

- Sabe, D. Eduarda, como a senhora passa a vida a dizer que só as mulheres sabem amar, quis dar-lhe este exemplo, para lhe provar que também há homens dedicados e leais, cujo amor perdura para além da morte…