O enigma de Ícaro andante

Noite estranha essa...

Havia uma gata malhada presa fora de casa... Cheguei mais perto para acariciá-la e ela falou comigo... Nao parecia ser real, tentei avisá-la que tudo ali era um sonho, do qual, no fundo, eu também não queria acordar.

Seu olhar penetrava no meu, caminhava looongo e profundo em mim... revelando muito atrás da minha retina todas as pegadas que deixei, os caminhos que trilhei, desvendando o véu que me escondia e me reconhecendo pouco a pouco.

Me agarrei ao seu olhar e me deixei levar... Transpassei minhas fronteiras, vi do alto meus continentes, minhas ilhas, minhas montanhas e ninhos, assisti aos limites de mim até chegar ao ponto do qual nunca passei. Dali em diante era terra nova, minhas asas nunca ousaram mais. Então freei.

Ela sorriu, sempre me observando.

E com naturalidade de uma índia nua quebra o colossal silêncio, e num sussurro junto ao meu peito propõe-me um enigma.

- ! - Sou retirado do sonho que me embalava, de volta para um sono, vivo e concreto, desperto.

...

Decifra-me ou te devoro... é o que ouço de dentro de mim.

....

Meu coração se cala com o olhar da esfinge, que foi crescendo até quase não caber em mim, não importando para onde eu olhasse. Aos poucos me dei conta da noite, da rua que não emitia luz, do barulho das árvores, da cidade. Retornava eu de mim mesmo. Mas o olhar da esfinge ainda estava comigo, ela ia e vinha como se conhecesse de cor o caminho de mim. O enigma me pressionava, mas alimentava minha alma...

Decifra-me ou te devoro...

... ecoava na noite

Decifra-me ou te devoro...

Uma vez mais... E outra...

era real.

...busco uma resposta dentro de mim, no labirinto sagrado que só o coração reconhece a saída... serei capaz de encontrar minhas asas e voar de la?

... Conseguirei ser mais forte que Ícaro e resistir ao Sol que me encanta? Que paixão febril.

...Decifra-me ou te devoro...

Ressoa como uma canção dentro de mim...

E de repente da noite fez-se o dia...

E num acorde musical, rápido como uma explosão de energia, raios e faíscas, a esfinge torna a ser a gata malhada... e a rua volta a se iluminar.

... uma última carícia em seus pelos.

e ela se vai. Caminha de volta a casa, coração tranquilo. Então percebo que ela nunca esteve presa do lado de fora. E que talvez fosse o contrário.

E era como se pela primeira vez de fato eu tivesse reparado nisso.

... a cidade acorda, os bebes também.

E o que resta da noite é o ritmo... que ecoa... e ecoa... esperando de mim eu mesmo.

Decifra-me... ou te devoro!

...

Respire fundo Cavaleiro Andante... foi só um sonho...

só um sonho bom apesar da escuridão da noite.