"Extórias" da Cozinha de minha avó

Interessante como certas palavras evocam imagens! E estas nos estremecem por dentro. Outro dia ouvi a palavra costelinha e instantaneamente minha boca se encheu do gosto da costelinha feita pela minha avó. Gordurosa, totalmente contra os princípios contemporâneos do bom prato, mas apetitosa e dotada de delicias que só ela era capaz de fazer.

Dizem que as pessoas têm muitas histórias na vida. São histórias que nunca sabemos se são verdadeiras ou inventadas, por mim ou pelos outros. Um certo dia, deixei tudo, deixei inclusive para trás as invenções de minha infância criada.

Nasci numa cidade quente, enrugada pelo calor, de um céu incrivelmente azul, de domingos cheirosos, de amigos que nunca perguntaram o porquê de minhas loucuras fabricadas a lápis. Eu costumava jogar futebol numa vila esburacada, com bolas irregulares, aos gritos dos vizinhos - “molecada vai jogar bola na praça!”. Alguns foram para a praça e nunca mais voltaram. A vadiagem menina se tornou séria, adulta, tensa. Veio a polícia e levou a turma do futebol da vila.

Depois, resolvi crescer, cresci tanto que fiquei fino. Aí veio a época de ser sério, de esquecer o futebol dos pés descalços e machucados, fui ser um pouco de tudo. Aprendi a fabricar peças para dentistas, minha avó me acordava cedo, corria comigo para pegar o ônibus que me levava até a fábrica. Corria mesmo, tocava o velho despertador enlouquecido, atravessava meus sonhos, e daí vinha a frase - “ Seis e 15”. Meu Deus, eu levantava correndo, tomava o café quentinho e corria, eu e a minha avó.

Vovó, pequena, mas forte, imensamente forte, cozinheira de pratos nada éticos, mas sutilmente ricos de histórias, não daquelas que eu resolvi criar, mas de histórias matinais, dóceis e cheias de aventuras. Foi assim que passei boa parte da minha infância, ouvindo-as , enquanto o café era feito num bule velho, mas saboroso, depois vinha um pão quentinho com manteiga, aliás entupido de manteiga, aí sentávamos para jogar tômbola, 21, bisca, dominó, escopa, tudo o que podíamos e já chegava a hora da “janta”. Ah o jantar, meu Deus, quando lembro minha boca torna-se um oceano de vontade.

Hoje, eu fico saudoso, à espera de quando atravessarei o mundo de asfalto quente, para chegar à cidade do céu azul rugoso sem nuvens para enfim, sentir os braços saborosos e os olhos marejados que me prepara aquela costelinha nada, mas nem um pouco politicamente correta, porém que me deixará saudade.

VH Barbi
Enviado por VH Barbi em 02/06/2012
Reeditado em 02/06/2012
Código do texto: T3702444
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