“Tenho que operar” disse com um sorriso resignado apontando o coração e dizendo-se fadigado, a respiração curta, o ar pouco e um vinco que atravessou de um lado ao outro sua testa larga.
    O mesmo coração, quem diria, das serestas e cantorias; o coração dos saraus e pândegas no festival de inverno de Campos do Jordão.
    Quando abriu o capô do seu peito, como se fossem as entranhas do seu velho Landau, o cirurgião, entre sem graça e assustado, apontou o vazio onde residira aquele velho coração sofredor. Os auxiliares, olhando para o tórax exposto, exclamaram “noooosa!”. Mas, o sangue corria, as artérias pulsavam, o pulmão resfolegava. O que olhava pelas lentes de aumento cutucou o mecânico, digo, cirurgião principal chamando-lhe a atenção para alguma coisa estranha no fundo da cavidade. Com a pinça esterilizada o cirurgião retirou, intacta, sem sangue, sem mancha alguma e caprichosamente dobrada uma edição do jornal literário, com data de 1972, justamente quando ele passou a ser seu diretor, entregando ao jornalzinho 40 anos de sua vida. Da primeira página constavam os nomes de todos os seus companheiros de jornal, os que, com ele, e na mesma canga, arrastaram um pouco de cultura para os sopés da Mantiqueira.
    O médico retirou a máscara, enxugou o rosto suado que embaçava os óculos protetores:
-O paciente trocou seu coração pela literatura, pelo jornal! Ninguém pode acreditar.
   Mais um erro médico. Ele não havia trocado. Havia, sim, feito oblação. Uma coisa é uma coisa, outra coisa é outra coisa.
    Recuperou-se o “fadigado” e vai bem, obrigado. Só que, vez por outra, ao expirar, emite letrinhas pelo nariz que caem formando palavras que estavam impressas no jornal do peito. Na mesa do bar, de coração retificado, sai do pulmão, esvoaçante como um beija-flor, um ou outro verso musicado de poesia e sempre em Sol maior. Um luxo.