O ACRÓSTICO

Eu ia completar quinze anos de idade quando a conheci. Ela era filha de um policial e morava ao lado da casa de minha avó. Naquela manhã de sábado havia muita expectativa no ar por causa da chegada de minha tia Penha e de sua filha Rubinha. Tinham ido a São Paulo para que minha prima conhecesse o pai. Eu e meu primo Juarez, filho de outra tia, estávamos ansiosos para ver como estaria a menina, pois corria a notícia que já era uma moça feita. A imagem que eu tinha dela era a de uma boneca de milho correndo atrás de mim pelo corredor da pensão.

Por isso naquele sábado eu amanhecera na casa de minha avó, acordando com a voz inconfundível de Tia Penha:

— Gente! A Rúbia já é moça!

Debaixo do lençol senti uma pontada no pé da virilha. Nas conversas com os companheiros de rua eu aprendera que aquilo queria dizer que agora minha prima estava pronta para ser mulher. Imaginei a boneca de milho bastante crescida e com uma mancha vermelha de sangue no pé da barriga. Saltei da cama, e depois de aliviar-me no urinol (na casa só havia um sanitário que ficava nos fundos. Quando havia muita gente minha avó distribuía urinol nos quartos) cheguei-me sorrateiramente à sala de copa onde estava reunido o pessoal para o café.

— Bênça a Titia! — falei timidamente estendendo a mão.

— Deus te abençoe!

Ela respondeu rapidamente mais preocupada em falar da viagem. Minha prima me olhou com mais interesse.

— Esse é o Valdeci?

Senti uma onda de calor invadir meu corpo. A menina de cabelos louros havia se transformado em uma mulher e tanto. Ela ostentava um sorriso libidinoso e o brilho de seus cabelos fazia surgir pontos ofuscantes nos talheres e nos copos de vidro. Tentei responder alguma coisa, mas só consegui esboçar um meio sorriso. Minha prima Cleide, irmã de Juarez, percebeu meu constrangimento e sugeriu:

— Vamos conversar no terraço, pois vai começar a reunião das cachimbeiras!

Parecia um ritual milenar a garantir a união daquela família que saíra de Sapé na Paraíba depois de uma tragédia familiar. Naquele momento nenhum de nós tínhamos conhecimento dos terríveis fatos que provocaram a vinda dos Mendes para Pernambuco. Saberíamos algum tempo depois e viríamos entender o motivo daquela reunião que nos deixava intrigado. Cinco mulheres, todas conversando ao mesmo tempo, todas com o mesmo vício de roer as unhas e fumar cachimbo, exceto Tia Penha, que gozava do respeito e admiração da família toda. Minha avó, também com o cachimbo na boca, preferia ficar no pé do rádio ouvindo sua rádio-novela, ou sentada em sua poltrona rodando os polegares com ar de satisfação por ver as filhas reunidas debaixo de seu teto.

Acomodamo-nos no terraço. Podíamos sentir a viscosidade no ar onde se lambuzavam os desejos proibidos. Foi quando ela apareceu. Veio pelo beco com a cabeça baixa, evitando a lama ou a luminosidade do sol. É Marileide, minha vizinha e amiga, mora aí ao lado, disse Cleide puxando uma cadeira. Rúbia brincava com um botão da minha camisa e pisava no meu pé. Parecia se divertir com minha timidez. Nem olhou para a recém-chegada. Olhei para Marileide e sorri meio sem jeito. Quis voltar o olhar para os lábios de Rúbia, mas não consegui fugir daqueles olhos negros. A luz deles arrebatou-me a alma.

Aquela manhã mudou a minha vida.

Tia Penha levou Rúbia para casa, meus primos foram embora e voltei para casa com a moreninha no pensamento. Passei a semana flutuando, escrevi algumas poesias, desenhei o rosto dela nas capas dos cadernos e gravei o seu nome no tronco do ingazeiro que ficava no quintal de minha casa. No fim de semana seguinte corri para a casa de minha avó na esperança de encontrá-la.

— Rapaz, a Leda parece que gostou de ti, disse-me Cleide assim que ficamos a sós.

— O que ela falou?

— Teu primo é tão calado.

— Só isso?

— Só, mas minha intuição não falha, por que não falas com ela?

— Não sei, tenho medo de levar um fora.

— Quem não arrisca não petisca. Faz um bilhete que eu entrego.

— Vou ver se crio coragem.

A manhã se arrastou sem que eu a visse, mas a tarde ela veio conversar com Cleide. Percebi então que necessitaria de um grande esforço para vencer a minha timidez. Imaginar ouvindo uma recusa dela me deixava desesperado.

Ao subir no ingazeiro durante a semana olhei seu nome gravado. Foi quando me veio ume estalo. E se eu fizesse um poema para ela? Uma poesia com o nome dela. Cada letra dará origem a um verso. Depois de algum trabalho terminei o poema. Mostrei-o a Cleide.

— Está bom, mas não estou vendo o nome dela?

— Não se preocupe. Vai dar certo.

— Tudo bem. Vou chamá-la.

Daí a instantes Marileide surgiu com seus passos graciosos. Cleide levou-a a cozinha e me chamou. Eu tinha o coração aos pulos, mas consegui me aproximar o bastante para lhe falar. Minha prima deixou-nos a sós.

—Cleide disse que você tinha uma coisa para mim.

—Eu fiz um poema para uma menina e gostaria que você lesse.

Dei-lhe o papel e fiquei observando a reação dela.

—Porque não entrega a ela? Perguntou-me com a cara amarrada.

— A quem? Perguntei dissimuladamente.

— A essa Edieliram.

— É o que vou fazer. Não está bom?

— Vá perguntar a ela!

E saiu quase correndo. Cleide surgiu espantada.

— O que houve?

— Nada, respondi sorrindo, acho que o peixe engoliu a isca.

Faz quarenta anos que isso aconteceu e ainda hoje rimos daquela idéia de inverter o nome dela. Não é que deu certo.

henrique ponttopidan
Enviado por henrique ponttopidan em 22/08/2012
Reeditado em 22/08/2012
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