A gramática da vida

Mais um dia de cão na cidade que muitos julgam sendo como a capital do mundo. Em um dos arranha-céus mais altos de Nova Iorque, ou como um bom estadunidense chama, skyscraper, uma conferência de negócios com empresários de todas as nações era realizada no 54º andar.

Na reunião de gravatas, belos ternos italianos e vestidos dos melhores estilistas nova-iorquinos são apresentados gráficos, índices, cotações de moedas, ou seja, concentram-se naquela peça os maiores empresários responsáveis por movimentar o dinheiro do globo.

Uma corporação brasileira está dentre as grandes do mercado. Finda reunião e todos estão com seus estômagos e cérebros em confronto, um pede algo para saciar a fome e o outro pede sossego diante aqueles números indigestos.

Seria um excelente ano para todos. Um ano de crescimento. Mais um ano que estes enxergarão os demais por cima de suas cabeças. E por falar em “enxergar por cima” aquela sala tinha uma vista de “primeiro mundo” da Big Apple.

Um engomadinho tupiniquim observava aquela sensação e tentava buscar em sua mente histórias que ouvia de seu avô, quando sentados, ambos debaixo da árvore, o bom velhinho em sua antiga casa no Brás lia desde Sítio do Pica Pau Amarelo até as mais belas lendas gregas.

- Ícaro! É isto! – Ainda observando os homenzinhos com seus carrinhos e suas vidinhas apressadas lá embaixo –

Aproximava uma mulher de cabelos morenos, mais escuros do que carvão, e em seu comportado traje social parava ao lado deste homem.

- Ícaro... É seu amigo? – A mulher o conhecia da empresa mesmo, mas nunca tivera a oportunidade de aproximar-se –

- Não... Não... Ícaro da lenda grega das asas de cera, já ouviu falar? – Tirava as mãos dos bolsos e cumprimentava a companheira ao lado, como uma boa regra de etiqueta manda, sorrindo –

- Matheus. Muito prazer, senhora... – Fitava os olhos castanhos claros da mulher e esperava ter respondida sua pergunta.

- Sofia... Prazer, senhor Matheus.

- Só Matheus está ótimo.

- Apenas Sofia já me agrada. – Ria divertidamente a mulher –

- E aí? Como foi a reunião hoje? Gostou dos resultados apresentados? – O senhor, ou melhor, o Matheus da gravata de linho vermelho olhava e girava um pouco a mão para alcançar a garrafa de café que se encontrava ao lado –

- Ah... Sim... Para falar a verdade acho bem monótona estas reuniões anuais. Preferiria estar lá em minha casa lá na Barra da Tijuca.

- Rio de Janeiro, não?! Moro em São Paulo, bairro do Ipiranga. Conhece? – Adoçava o café com pouco açúcar –

- Foi lá que Dom Pedro deu seu grito? Estou certa? – Fechava os olhos e divertia-se –

- Lá mesmo! Eu mesmo não conheço nada de sua cidade. Ah... Pão de Açúcar e Bondinho já contam? – Matheus afrouxava sua gravata e sorvia o pouco do café que ainda tinha no copo –

- Sim... Avenida Paulista e Fórmula 1 também já contam? – Sofia sorria e olhava um pouco preocupada o seu relógio e confirmava as horas –

- Parte que horas seu voo? O meu sai às quatro horas... – Dizia Matheus preocupado também com o horário de seu voo –

- Direto para o Rio de Janeiro e sem escalas parte este horário.

- Vamos então ao aeroporto... Já estamos quase em cima da hora. – Lado a lado partiam ambos ao mesmo destino –

Uma gostosa conversa seguiu entre eles. Ao termino desta, Sofia deu o seu telefone, e Matheus retribuiu fazendo o mesmo.

Nova Iorque já estava bem lá trás, o tempo também. Longas horas de viagem seguiram-se quando as luzes dos prédios e o movimento insistente das pessoas não deixam a pobre Avenida Paulista dormir.

Fato este, podia ser muito bem observado pelo Cristo Redentor que ao longe, com seus braços abertos, observava a Guanabara ressonar depois de um dia de muito sol.

Dias passaram-se depois do encontro. Vários telefonemas cruzaram o Vale do Paraíba até chegar ao seu destino, telefonema de ambos os lados. Matheus e Sofia começaram a ter mais intimidade, sendo que um contava ao outro sobre tudo o que tinha acontecido aquele dia.

- Sofia, suas férias vão começar na próxima semana, não? – Falava Matheus ao telefone observando da janela de seu apartamento o último trem que passava às onze horas para o Jaçanã –

- Sim, Matheus! Por quê? – Respondia Sofia que também observava da janela de sua casa uma rodinha de MPB na orla da praia –

- Venha para São Paulo. Vou ser seu guia! Aqui vou apresentar a melhor pizza do mundo e muitas outras coisas. Vem?! – Do outro lado da linha Sofia dava uma pausa pensativa –

- Tudo bem. Mas não tenho dinheiro para ficar em um hotel. Como vou fazer?

- Fique aqui em casa, não há problema algum. Prometo que vou ser gentil contigo. – Ria mudando um pouco o tom de voz –

- É bom mesmo! Pois se não fizer isto, quem vai dar gritos aí no Ipiranga vai ser você. – Ria retribuindo do outro lado –

E assim aconteceu... O acaso juntou os dois novamente. Ele seguiu a cartilha de bons modos e a levou para todos os lugares da Londres brasileira.

Conheceram todos os povos, cultura e comida de São Paulo. Foram da Liberdade ao Paraíso. Uma passadinha pelo mercado municipal para comer aquele lanche de mortadela famoso na cidade inteira.

Conseguiram, ainda, ver como as luzes da Avenida Paulista deixava um pouco mais vibrante o contraste de vidas daquela cidade.

- Matheus, muito obrigado pela hospitalidade! Vejo que vocês, paulistas, são educados. – Sorria Sofia segurando sua bolsa de viagem–

- Claro! Foi um prazer em ter você aqui.

- Diga-me quando são suas férias? – Apressava Sofia em saber a resposta, o voo não podia esperar –

- O próximo mês... – Retrucou Matheus –

- Então, agora será a minha vez de ser sua guia! – Sofia ofereceu a mão, mas Matheus deu a boca. Os lábios cruzaram e naquele momento um contrato afetivo foi assinado –

Foi, então, a vez de Matheus provar os sabores e a cultura do Rio de Janeiro. Sofia cumpriu o contrato do mesmo modo que agora seu namorado fez no mês anterior.

Matheus conheceu a Academia Brasileira de Letras, tirou foto ao lado da estátua de Carlos Drummond, conheceu as calçadas imortalizadas pela música de Tom Jobim, e é claro que andou de bondinho. Afinal... O que é uma viagem ao Rio de Janeiro sem embarcar no bondinho?!

E assim prosseguiu durante meses. Quando dava folga para um, este ia para a cidade do outro. Mas certo dia Sofia não retornou mais a São Paulo. Também parou de atender os telefonemas de Matheus. O amante preocupado foi ao Rio de Janeiro procurando saber sobre ela. Encontrou-a internada em um hospital.

- Sofia??? Tudo bem contigo? – Adentrou o quarto e a viu cheia de tubos, toda combalida e pálida –

- Deveria ter-me tido que não estava bem! – Matheus segurou em suas mãos –

- Matheus... Não queria contar, mas tenho leucemia. Eu vivo nesta rotina há anos... – lágrimas escorreram de rosto de Sofia –

Ele, assustado, segurou forte a pequena e fragilizada mão e sorriu.

- Tudo bem... Cuidarei de você! Eu prometo! – E assim Matheus ficou duas semanas no hospital ao lado de Sofia, e através de telefonemas pediu paciência ao seu chefe lá em São Paulo –

Com a saúde previamente restabelecida e parcialmente recuperada, Sofia caminhava ao lado de seu namorado que a levou para casa, longe daquele ambiente que estava acostumada.

- Matheus... – Sofia cabisbaixa dentro do carro a caminho de casa – Acho melhor você ir embora... Pode ser que amanhã eu não esteja mais aqui. Aproveite sua vida!

- De maneira nenhuma, não penso como os demais... Eu prometi e vou cuidar de você!

O carro parou à porta de Sofia e Matheus, com todo o cuidado, ajudou-a adentrar em sua residência.

- Vou-me! Meu chefe vai me matar quando chegar a São Paulo – Sorriu um pouco triste por ter que deixá-la –

- Mas prometo que em breve, muito breve, estaremos juntos finalmente...

Os dois beijaram-se, e sem ao menos esperar mais um pouco Matheus já estava dirigindo em direção à sua casa. Já dentro de casa, Sofia sentava com certa dificuldade aos pés da cama e ficava a observar as fotos que estavam presas em seu mural. Várias delas, em vários momentos com ele

Matheus já estava na metade do caminho. Passavam-se mais de quatro horas de viagem. Na altura da cidade paulista de Taubaté, a forte chuva e o trânsito pesado na rodovia prejudicavam a visibilidade, proporcionando um perigo ainda maior.

Um caminhão que transportava automóveis, estes vindos de uma fábrica ali perto, invadiu a pista contrária, e sem tempo para frear e com o asfalto molhado acertou em cheio o carro de Matheus.

O socorro foi rápido, mas não o suficiente. A notícia sobre sua morte chegou aos ouvidos de Sofia rápido. Triste, ela não teve coragem de comparecer ao velório de seu amante. Não acreditara na morte dele antes que ela. Em seu coração continuava vivo, sempre esperando ela em São Paulo.

O tempo passou... Sofia restabeleceu a saúde por completo, apesar de algumas vezes precisar ficar internada. Casou e teve dois filhos. Viveu relativamente bem, como qualquer outro com saúde boa.

Certo dia, olhando o aquele papel de parede horrível de seu quarto de hospital, murmurou baixinho.

- Quem será que vai primeiro? Eu ou este papel que está dando seus últimos suspiros?

Levantou vagarosamente de seu leito e foi em direção à janela aproveitando o silêncio da noite. Lembrou-se de todos os momentos que esteve ao lado de Matheus. Como era gentil, engraçado e mesmo com seus defeitos de homem, sabia muito bem cuidar de uma mulher.

O dia amanheceu. Os filhos de Sofia iriam visitá-la, mas aquele dia foi a última visita. Sentada no chão e apoiada na parede ao lado da janela, ela foi encontrada. Em suas mãos uma foto que sempre levada consigo, um homem estranho que nenhum dos filhos reconhecera.

O substantivo destino juntou ambos, e este mesmo separou. Ele conjugou o verbo da morte antes que ela. Agora, como podemos terminar esta a oração? Devemos colocar ponto final? Ponto e vírgula? Vírgula? Fiquem à vontade, caros leitores.

Chronus
Enviado por Chronus em 17/02/2013
Reeditado em 17/02/2013
Código do texto: T4145632
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