Como nos velhos tempos

Ele acordou, sentou-se na cama, colocou seus óculos e pegou o celular para ver a hora. Eram oito e quarenta e cinco da manhã do dia vinte e cinco de outubro. Ficou ali parado um tempo olhando para aqueles números grandes que estavam na tela de seu celular. Vinte e cinco de outubro. Resolveu deitar-se novamente. Aquele seria mais um daqueles dias em que a sua vontade é não sair da cama. Era domingo, estava frio, chovendo e era vinte e cinco de outubro. “Maldito dia!”, pensava enquanto observava a tinta branca já um pouco amarelada do teto de seu quarto.

Depois de certo tempo pensando sobre o que faria naquele dia, ele levantou e foi até a cozinha preparar um café. Enquanto bebia seu café recostado no balcão da cozinha pensava em como aquela casa estava vazia. Não tinha uma namorada fixa fazia algum tempo, seu irmão e seus sobrinhos não iam visita-lo fazia algum tempo também e tudo estava muito silencioso e parado ultimamente.

Foi com sua caneca de café até o escritório que não ficava muito distante e sentou-se em sua escrivaninha. Iria escrever uma carta para ela, a culpada de todos os dias vinte e cinco de outubro dos últimos dez anos terem sido tão recheados de lembranças e saudade. Pegou uma folha de papel e uma caneta e começou a rabiscar algumas palavras.

“Domingo, 25 de outubro de 2008.

Mais uma vez estou aqui te escrevendo. Ah se você soubesse quantas cartas já te escrevi nesses dez anos que se passaram... Talvez se você as lesse muita coisa teria mudado ou talvez não. Quem sabe, não é? Não escrevo essa carta com a mesma intenção que aqueles seus personagens de suas estórias escreviam as cartas, para pedir perdão e morrer no fim ou alguma coisa parecida. Escrevo essa carta para te contar um pouco de tudo, um pouco de como eu me sinto em todos os dias vinte e cinco de outubro, um pouco de como me senti nesses dez anos. Sei que talvez você não se interesse, mas estou disposto a ignorar isso e continuar a escrever.

Para começar, quero que saiba que ainda não perdi a mania de te chamar de ‘minha melhor amiga’. Só é irreal demais para mim você não ser mais isso na prática. E também que saiba que me lembro de você toda vez que leio ou ouço algum apelido que nós usávamos. Mas isso é normal, não é? É normal tantas coisas ainda mexerem comigo por me lembrar você? Isso também acontece contigo, Manuela? Em todos esses anos que nos conhecemos (ou conhecíamos?) você reclamou de não saber exatamente como eu me sentia com relação a determinados assuntos e hoje estou disposto a te contar como me senti nesses dez anos que se passaram. Uma troca justa, não acha? Três anos de especulações sobre como eu me sentia por saber como me senti nesses dez anos em que nem ao menos olhamos um para o outro.

O primeiro ano foi difícil, muito até. Talvez fosse mais fácil se nossa relação não tivesse sido interrompida de forma tão abrupta. Mas infelizmente foi assim, abruptamente nos perdemos um do outro. Até hoje me questiono o motivo de nós não termos parado para conversar civilizadamente e esclarecido tudo de uma vez por todas. No primeiro ano eu oscilava de raiva extrema para uma saudade e tristeza imensas. Tanto era assim que fiz o que fiz e não acho necessário relembrar isso agora. Por culpa disso também que muitas vezes apareci do nada para tentar causar algum estrago. Nesse primeiro ano era isso o que eu queria: causar estragos. Queria te ferir, brincar com sua mente, acabar com a sua felicidade. E enquanto eu tentava fazer isso algo me dizia que era muito mais do que raiva extrema, era a saudade me fazendo gritar por atenção. Mas você estava tão decidida, sua mente estava tão protegida dessa vez, você tinha apoio e auxílio e eu não consegui nada do que eu queria. Com o passar dos anos tudo se tornou mais fácil. Eu comecei a sentir cada vez menos a sua falta, comecei a querer cada vez menos interferir na sua vida, mas o dia vinte e cinco de outubro sempre estava ali, ano após ano, para me lembrar de você. Sabe o quanto isso é deprimente e irritante? Eu não deveria me importar se você está completando mais um ano de vida ou não! E em todos esses dias vinte e cinco de outubro que se passaram eu escrevi uma carta para você. São dez cartas que talvez você nunca leia porque não farei questão de entrega-las a você como farei com essa. Mas apesar de tudo, eu sinto a sua falta. Em dias como esse principalmente porque era para estarmos juntos comemorando mais um ano de vida que você completa.

Ainda é cedo e eu estou em meu escritório. Enquanto te escrevo, bebo um café já não tão quente como tudo o que eu sentia por você, mas se eu disser que tudo aquilo acabou estarei mentindo. Eu acredito que um amor de verdade nunca morre, nunca mesmo. Pra mim, um amor de verdade quando abandonado só adormece esperando o dia em que será despertado. Ou talvez não seja bem assim, mas, em minha opinião, ele não se vai por completo. Acredito que alguma coisa permanece. E permaneceu, Malu.

Nesses dez anos eu tive algumas namoradas, mas nada duradouro. Todas essas namoradas eram comparadas a você e eu sempre acabava frustrado. Até que encontrei Alice e posso dizer que realmente a amei. Foi o meu relacionamento que mais durou. Três anos, acredita? Chegamos a pensar em nos casar e ela até ficou uns meses aqui comigo, mas acho que sou complicado demais ou chato demais ou o problema era com ela. Na verdade, acho sinceramente que o problema era com os dois, com a rotina, com a minha mania de às vezes lembrar de você e com o cara aventureiro que ela conheceu, mas isso não importa. Fiquei muito mal durante um bom tempo, mas já superei isso. Hoje até falo com ela às vezes, somos colegas e ela vive me dizendo que tenho que me livrar de uma vez por todas de você. Todos dizem isso para mim. O que te dizem, Malu? A mesma coisa? (Se é que você passa pelo mesmo...)

Depois de dez anos quero poder te desejar dez vezes mais felicidade, amor e tudo o que há de bom. Dez vezes mais sucesso, dez vezes mais safadeza, dez vezes mais copos de uma bebida forte em uma sexta à noite. Quero que você seja feliz, agora digo isso com sinceridade. Gostaria que respondesse essa carta, mas não posso te pedir mais nada. Mesmo assim, coloco o endereço em um bilhete que você obviamente verá ao abrir o envelope.

Sinto sua falta,

Alex.”

Havia se passado uma hora e meia. Coloquei a carta em um envelope e deixei por ali mesmo. Tomei um banho, coloquei um casaco, peguei a carta e o guarda-chuva e fui até a casa de Manuela. Como eu sabia seu endereço depois de dez anos? Ah, ainda tínhamos amigos em comum e ela gostava de manter sua antiga casa mesmo podendo se mudar para lugares bem melhores.

Olhei para aquele envelope branco com o nome dela escrito na frente e hesitei. Será que deveria mesmo fazer isso? Haviam se passado DEZ anos e não era necessário eu voltar para a vida dela. Mas eu queria. Eu estava pronto para isso. Eu não era mais aquele moleque, eu havia amadurecido e não faria nada de novo. Respirei fundo e coloquei a carta na caixa de correio. Virei as costas e fui embora esperando que ela lesse aquela carta antes de joga-la fora.

E assim o dia passou. A chuva caía lá fora e a impaciência tomava conta de mim. Parecia que as horas se arrastavam como que querendo piorar ainda mais o meu estado de espírito. Até que às onze horas da noite a campainha tocou.

Quando abri a porta de casa não acreditei. Lá estava Manu toda produzida segurando um envelope vermelho. Não pude deixar de notar o carro parado na calçada ainda ligado. Alguém a esperava. Ela me deu um abraço.

- Olha, eu tô atrasada, então leia e a gente se fala depois. Pode ser? – disse, me entregando o envelope.

Eu ainda estava sem acreditar que ele estava ali falando comigo como se tudo estivesse perfeitamente bem desde sempre.

- Claro que pode. Feliz aniversário!

Ela sorriu e voltou para o carro. Fechei a porta ainda com um sorriso no rosto e voltei para o interior do meu esconderijo. Sentei no sofá e abri o envelope que estava destinado ao “Idiota”, como estava escrito nele.

“Oi idiota,

Não acredito que estou perdendo esses preciosos minutos do meu aniversário escrevendo uma carta para você.

Em primeiro lugar quero te agradecer por tudo o que você me desejou. Em segundo lugar quero te dizer que também passei pelo mesmo processo que você, mas de formas diferentes. Sinto sua falta também, Alex e antes tarde do que nunca, não é? Achei que nunca tomaria a iniciativa de fazer contato. Nem é tão difícil assim, não sou de outro planeta.

Olha, não sei qual foi sua intenção ao me escrever, mas eu gostaria muito de conversar com você pra não sei, talvez ver se nossa amizade pode recomeçar de um jeito diferente, de um jeito melhor. O que você acha?

Não posso escrever muito porque hoje o dia está corrido, afinal, hoje faço vinte e nove anos! E meu marido (Sim, eu tenho um marido... E não ria, idiota! Você o “conhece”) está me esperando.

Que tal sexta à noite nessa cafeteria legal do Centro da Cidade? O panfleto está junto, você vai ver e atrás está o número do meu celular. Só eu e você como nos velhos tempos, mas agora velhos, gordos e mais chatos.

Sinto sua falta, Alex.

Sua (eterna) melhor amiga”

Li essa pequena carta mais algumas vezes sem deixar de reparar em muitas coisas como o jeito natural com que ela escrevia, como se nos falássemos constantemente ou o fato de ela agora estar casada ou ela querer mesmo conversar comigo e me chamar de idiota como nos velhos tempos. Mas o melhor ali foi o “sua (eterna) melhor amiga”. Eu não esperava isso. Não esperava ela aparecer aqui também. Manu realmente superou tudo e eu acho que eu ainda não fiz isso por completo.

A semana passou devagar e quando finalmente chegou sexta-feira eu estava ansioso. Como acabaria aquele encontro? Será que a ironia reinaria como sempre? Eu estava esperançoso. Quando Manuela apareceu aqui parecia que tudo estava bem e eu espero realmente que esteja. Se não estiver, tentarei ao máximo fazer com que fique.

Quando chegamos à cafeteria no centro do Rio me senti com quinze anos novamente conversando e rindo ao lado da minha melhor amiga. Parecia que nada tinha mudado. Sentamos em uma mesa qualquer, pedimos uma bebida e começamos a conversar.

- Então, Alex... Conte-me sobre como foram esses anos sem sua querida peça de quebra cabeça igual, eu.

- Senti sua falta, bebi muito, transei com umas muitas mulheres que não fizeram diferença na minha vida, quase casei... Coisas assim. E você?

- Bom, se lembra do Eduardo? Aquele que você disse que era perigoso e coisa e tal? Então, ele é meu marido e eu estou muito feliz mesmo com ele. Fora isso eu lancei um livro, estou trabalhado como professora de artes, comecei a beber e às vezes eu fumo... Acho que é isso.

- Poxa, e não sentiu nem a minha falta?

- Quer sinceridade, Alex? Às vezes sim. No início principalmente e às vezes na TPM porque eu fico depressiva, mas na maior parte do tempo eu lembrava que você era (eu espero) um idiota e te odiava bastante. Mas o tempo passou e eu superei. Acho que estou tão feliz com o resto do mundo que é por isso que quero ficar bem com você também. Tudo passou, sabe? Não faz mais sentido ter raiva de você até porque você não vai fazer mais nada (eu espero) nem me abalar mais com certeza, então... Por muito tempo eu quis em segredo que esse momento chegasse, Alex. Você não tem noção! Você era eu na versão masculina e isso era o máximo quando eu tinha quatorze anos e não tinha com quem conversar ou alguém que me entendia perfeitamente, mas depois de tudo o motivo de eu sentir sua falta mudou. Preferi me tornar o cordeiro fantasiado de lobo, fingir que sou mal e não ligo pra nada e não precisar que me entendam e comecei a sentir falta só da sua companhia mesmo. Sabe, quero esquecer tudo o que passou mesmo e começar alguma coisa decente e madura agora. Estamos velhos, colega. Vinte e tantos anos na cara e continuar com essa palhaçada de “não falo com você” é muita criancice.

- Concordo com você. Sei lá né, acho que eu tenho que superar algumas coisas ainda, me acostumar e tudo mais, mas também acho que já estamos velhos demais para continuar com isso. Um novo começo então, nova Manu?

- Um novo começo, novo Alex.

O resto da noite nós passamos conversando e bebendo. Quando decidimos ir embora Manu ligou para Eduardo para que ele a buscasse e eu esperei ele chegar para parar um táxi e ir embora.

- Bom, então até a próxima. – eu disse sorrindo e recebendo um sorriso de volta.

Manuela me pegou de surpresa com um abraço de verdade, aqueles abraços fortes e bons, sabe?

- Senti falta do meu idiota. – disse ainda abraçada a mim

- Amo você. – eu disse.

Ela me soltou e beijou minha bochecha. Depois entrou no carro e acenou para mim enquanto ia embora.

Debora Santos
Enviado por Debora Santos em 12/04/2013
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