Conto inspirado nas canções Eu preciso dizer que te amo e Codinome beija-flor, de Cazuza.
 


 
Segredos de Liquidificador

- Oi.
 
Ela não se vira de imediato, apenas escuta a voz e um choque toma conta do seu corpo inteiro.
 
Era ele. A voz mistura-se à brisa quente e penetra em sua alma fazendo-a relembrar dos sussurros ao ouvido, das mordidas na orelha, dos segredos de liquidificador, da barba por fazer roçando em seu pescoço. Uma única palavra trazia à tona sensações, cheiros, canções, sabores, dores e alegrias; fazia ter certeza da existência de um amor que por anos estava incerto.
 
- Oi.
- Há quanto tempo.
 
Muito tempo. Depois de anos chegou a duvidar que uma história entre os dois realmente havia acontecido. Ele a convidou para sentar, estavam em frente a um bar, ela nem percebera, tinha perdido os sentidos. Apenas aceitou. O bar tocava canções que um dia foram deles.
  
Nos minutos seguintes falaram sobre novos trabalhos, amigos em comum e projetos futuros, mas só pensavam no passado que viveram juntos.
 
Quando a gente conversa
Contando casos, besteiras
Tanta coisa em comum
Deixando escapar segredos
E eu não sei que hora dizer
Me dá um medo, que medo
 
Um momento de silêncio. Ela olha para a avenida e os carros passam rápido, muito rápido. Ele aproveita a oportunidade para observá-la. Parece melhor do que na época em que se separaram: esta serena, mais madura, a brisa brinca com seus cabelos revelando os primeiros fios brancos, as rugas recentes emolduram seus grandes olhos castanhos, mas a boca continua a mesma -  dela ouviu eu te amo inúmeras vezes, mas nunca escutou. Se ao menos ela dissesse mais uma vez. "Eu te escutaria, minha querida, e voltaria para você". Pensa.
 
- Disse alguma coisa? - ela pergunta espantada, esperançosa. Sentia que a brisa trazia um calor diferente, sussurros inesperados, calafrios que entorpeciam.
- Não. Quer dizer, eu...
 
É que eu preciso dizer que eu te amo
Te ganhar ou perder sem engano
É, eu preciso dizer que eu te amo tanto
 
O telefone toca, o número da esposa no visor denuncia a realidade.  Ele tinha que atender, a mulher estava no oitavo mês de uma gravidez de risco. A ex percebe quem está na linha e recobra a consciência.  Enquanto isso pede a conta e espera a conversa acabar para se despedir. Sente-se mal, como uma intrusa, amante de um homem que um dia foi inteiro seu, mas que, mesmo sem cobrá-la, desejava um filho que ela não poderia gerar. De repente sentiu um vazio, o mesmo vazio que invadia seu coração e seu ventre durante todos aqueles anos.
 
Uma lágrima que esperou 15 anos para rolar surge no rosto dele como um grito abafado.
 
- Desculpe, eu...
- Eu sei. Bom, eu tenho que ir. Te cuida.
 
Ela se levanta e estende a mão, pois era só aquilo que poderia oferecer. Ele aceita, e se conforma contra a sua vontade.
 
Você sonhava acordada
Um jeito de não sentir dor
Prendia o choro
E aguava o bom do amor

 
Nunca mais se viram novamente.

 
* * *
  Prendia o choro
E aguava o bom do amor

 
Márcia Jordana
Enviado por Márcia Jordana em 01/06/2013
Reeditado em 18/03/2014
Código do texto: T4320636
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