A porta Secreta para o infinito - Capítulo Um - Tudo o que ficou

CAPÍTULO UM - TUDO O QUE FICOU

"Tudo o que ficou

Mexe com meu interior

Isso afeta meus sentidos

Foi o seu cheiro que sumiu Tudo acabou

Interrompeu-se tudo que existiu"

-Menos de um segundo, Rosa de Saron.

"— Oi, contadora de estrelas."

Aquela frase ainda soava doce e preocupada como da última vez. Seu sotaque Francês preenchia meus pensamentos enquanto, maquinalmente, eu colocava os pedidos nas mesas. Aquelas pessoas conversavam incesessantemente, sem nem respirar direito, falando coisas sem sentido, fútis, chatas. Certamente contando sobre a roupa nova que comprara para uma festa ou o carro esportivo mais desejado. Isso me enojava. Seus rostos desconhecidos eram ocupados por longos e gigantes sorrisos e algumas frases clichês. Era sempre a mesma coisa: vozes alteradas, gargalhadas vazias, um blá blá blá sem fim.

Uma coisa era certa: a felicidade alheia me incomodova.

E o exagero também.

Eram seis horas e três minutos da tarde. Retirei o último prato da mesa, subitamente, enxerguei a manchinha marrom glacê em meu pulso. Uma dor pungente abraçou meu coração que há tempos não sabia mais bater direito. Levei a bandeja até o balcão da cozinha, empurrei para dentro da pia, retirei meu avental vermelho da Lanchonete Bordô e saí segurando a alça da minha bolsa tiracolo.

A cidade era pequena, em cinco minutos eu já estava na minha rua. Ao dobrar a esquina, avistei Jonas escorado na parede lisa e amarela da minha casa. De seus lábios pendia um cigarro, dezenas de círculos se formavam quando ele expirava a fumaça densa. Ele vestia uma Levi's desboatada, camiseta do Metallica e All Star preto. Retirou os óculos escuros estilo aviador assim que me viu.

— O que você quer? - Falei passando por ele para girar a chave no portão.

— Que isso Nina? TPM gata? - Ele se desequilibrou quando dei um empurrão em seu ombro. - Vim aqui te convidar para sair.

— Nem vai rolar.

— Por quê?

— Por que não estou a fim, simplesmente. - Fui taxativa e abri o portão.

— Por quê? - Ele insistiu. Jonas sabia ser chato quando queria e ele não precisava de muito esforço.

— Qual a parte do "não estou a fim" você não entendeu? - Perguntei e já fui fechando o portão.

_Calminha aí! - Ele segurou o portão com uma das mãos impedindo-me de fechá-lo. Revirei os olhos.

— Jonas. - Estendi o nome dele para que ele percebesse que eu não queria conversar - Eu quero entrar e se eu tiver que fazer esforço para isso vou te dar um murro no meio da cara.

Ele estendeu as mãos em sinal de rendição e deu um passo para trás. Seus cabelos castanhos caíam sobre a testa tocando as sobrancelhas e os cílios. Não sei como ele conseguia enxergar com aquele cabelo todo caindo no rosto. Cabelos lisos, desgrenhados, definitivamente bonitos, mas que não viam pente, talvez, desde que nascera.

— Então, boa noite. - Ele falou, mas eu já havia batido o portão.

— Tchau. - Gritei de dentro e subi a pequena escadinha até a sala.

— Boa Noite, filha.

— Boa Noite - Respondi fechei a porta do meu quarto deixando minha mãe no vácuo.

Tomei um banho, vesti um pijama surrado e me joguei na cama. Minha vontade era ficar ali eternamente, mofando até apodrecer. Ainda bem que amanhã era sábado e eu não teria que ver aqueles desgraçados do meu serviço tão cedo. Abri a gaveta e peguei meu Ipod, coloquei meu Cd completo do Rosa de Saron para tocar, até que a canção Menos de um segundo começou a soar nos meus ouvidos. As lágrimas eram inevitáveis. Aquela música falava de saudade, quase como uma oração, um pedido. Um nome: Thierry Gauthier.

"Lembro de nós dois/ Sorrindo na escada aqui/ Estava tudo tão bem/ E de repente acabou"

Acabou, tão rápido como começou. Depois disso, daquela luz que me embalou deixando-me na escuridão total, nada voltou a ser como era. Existiam duas vidas: antes e depois daquele acidente. Também existiam dois "eus": A Marina de antes e a Nina de agora, rebelde sem causa, de piercing na orelha, tatuagem no pescoço, roupas escuras e querendo que o mundo inteiro exploda junto com a corja que nele habita.

Minhas lágrimas encharcam o travesseiro. Afogadas nas minhas lembranças, esqueço-me de tudo, niguém me importuna, pois não há quem entenda minha dor. Ninguém, exceto uma pessoa.

— Vai jantar ou vai fazer graça outra vez? - Sofia abriu a porta num baque.

— Privacidade é bom, sabia? - Resmunguei com o rosto enterrado no travesseiro.

— Deixa de ser fresca. - Ela rebateu - Quer saber de uma coisa? Você já está passando dos limites. Olha só sua situação, está parecendo um mendigo choramingando. Levanta dessa cama e vai dar um jeito na sua vida!

"É um sentimento que preciso controlar/ Porque você se foi/ Não está aqui"

Me enfureci. Bati as mãos no colchão e me levantei, enfezada até o último fio de cabelo.

— Dar um jeito na minha vida? Você está de brincadeira, não é? - Apontei o dedo em sua direção, ela estreitou os olhos - Você é a última pessoa no planeta que tem o direito de me dar esse tipo de conselho. Você acabou com a minha vida, então não me peça para consertá-la, por que não tem mais volta.

— Você não sabe o que está falando. - Ela ponderou, ainda com a voz firme.

"Partiu num dia qualquer/ Sem ao menos dizer adeus/ E o que ficou? /Um coração que sofre"

— Sei sim, sei muito bem! Você matou Thierry.

Ela meneou a cabeça negativamente, engasgando com as palavras que não conseguiam sair.

— Você o matou, Sofia. Você acabou com a minha vida. Você matou meu coração no momento em que ele partiu.

"Menos de um segundo e eu já perco o ar/ Quase um minuto, quero te encontrar"

— Você está sendo injusta. - Seus olhos ficaram marejados - Eu não o matei. Ele morreu por que estava na hora, você apenas precisa aceitar os desígnios de Deus.

Desígnios de Deus? Como posso aceitar algo que tirou a melhor coisa que existia na minha vida? Como posso aceitar algo que levou precocemente meu melhor amigo, meu primeiro amor, meu confidente? E agora? Para quem contarei meus segredos? Com quem dividirei minhas dores, minha lágrimas? Quem me beijará quando eu não tiver respostas para perguntas clcihês? Quem me dirá Eu te amo num dia frio, sentado no chão da sala, comendo pipoca doce até dar tontura? Quem? Quem vai me apoiar nas minhas loucuras e dizer que sou uma louca contadora de estrelas? Não, não dá para aceitar a morte.

"Vozes no portão/ Passos no saguão/ Poderia ser você/ Mas faz tempo que partiu"

— Sai daqui! - Aumentei o tom de voz.

— Nina... - Ela se aproximou com as mãos unidas em prece na frente do rosto.

— Fora! - Berrei empurrando-a para o corredor.

— Espera Nina, vamos conversar...

— Sai da minha frente! E leve com você a droga dos desígnios de Deus! - Bati a porta, um estrondo assustador soou pelo quarto.

Ainda ouvi Sofia choramingando enquanto caminhava na direção de seu quarto, a porta se fechou numa batida leve. Encostei-me a porta e fui deslizando até cair de bunda no chão. O piso estava frio, a janela aberta deixava o vento entrar, mesmo tocando meu rosto, não secava as lágrimas que ainda insistiam em precipitar.

Segunda era dia 29 de Novembro. O dia mais triste da minha existência. O dia em que Thierry morreu, Como em todos os anos desde sua morte, em 2003, acessei o site da Decolar e comprei a passagem para Paris. O corpo de Thierry fora levado até lá para ser enterrado ao lado dos pais. Eu sempre fui visitá-lo no dia 29 de Novembro, em 10 anos de ausência. Comprei a passagem e liguei para Jonas. Não sei por que liguei para ele, mas num impulso meu telefone estava discando seu número.

— Jonas, você iria para a França comigo?

Ele estalou a língua.

— Meu amor, com você eu vou até o inferno se me pedir.

Não pude deixar de sorrir. Jonas gostava de mim mesmo eu sendo a pessoa egoísta, mesquinha e chata que eu me tornara. Tratá-lo mal me doía o coração, mas era impulsivo. Era algo que não tinha explicação.

— Então arrume as malas. Já comprei as passagens.

Era a décima primeira viagem que eu fazia para a França. No entanto, naquele ano, algo extraordinário aconteceu.

Ana Luísa Ricardo_1
Enviado por Ana Luísa Ricardo_1 em 11/07/2013
Reeditado em 13/07/2013
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