PERDIDA NO TEMPO E ESPAÇO

Ai meu Deus! Como é mesmo o meu nome? Quero falar sobre mim, mas já nem sei realmente quem sou! Não é o que você está pensando não! Ainda tenho boa memória. Meu nome é Tâmara, talvez porque minha mãe adorava essa frutinha rara e da qual, por herança, também gosto até demais.

Minha intenção, porém, não é falar de nome e nem de fruta, mas contar das mutações que já sofri pelos caminhos e encruzilhadas de meu viver.

Em tempos já distantes, a educação que os pais davam aos seus filhos, era muito diferente da atual. Visavam uma formação rígida, baseada no respeito à regras de temor a Deus, amor ao próximo, consideração aos mais velhos e responsabilidade de atos presentes para com o futuro. Existiam limites e disciplinas, que orientavam um crescimento sadio e estimulado. Foi nesse ambiente que cresci e formei meus valores.

Casei-me no dia em que completei vinte anos. Com minha virgindade, levei todos os meus sonhos de jovem inexperiente – uma quase santa, jogada nos braços de um homem, cuja sexualidade e insensibilidade, fizeram de minha lua-de-mel, um grande paradoxo aos meus conceitos. Essa foi a primeira mutilação de meus sonhos.

Durante vinte e quatro anos, fiquei sob o jugo cruel desse homem, criando meu casal de filhos, sem assistência e carinho do pai, amargurando todas as conseqüências de minha desobediência a meus pais. A força de minha paixão insana, terminara por calar seus experientes conselhos e fazê-los aceitar, como verdade, as promessas feitas por meu noivo, de que eu continuaria meu curso e teria um novo emprego.

Nesse longo e torturante período de minha existência, pude ver a farsa dessas promessas feitas, com o único objetivo de convencer-me a deixar toda minha segurança futura. As conseqüências advindas de minha ingenuidade e da confiança nele depositada, foram desastrosas. Fui perdendo minha personalidade, até me transformar em escrava das vontades dele. Minha submissão, embora me causasse uma imensa revolta, era minha única saída.

Sem condições para me impor, fiquei totalmente sob o jugo de meu marido. O temor que eu tinha de seus escândalos, o grande amor que dedicava aos meus filhos; meu bem estruturado senso de responsabilidade e o poder de minha religiosidade, foram meus suportes para sobreviver ao sofrimento.

Nada, porém, de tudo o que passei, arrefeceu meu sonho de continuar meus estudos, conseguir um bom emprego e recuperar tudo o que havia perdido. Apesar de seu ciúme doentio, jamais deixei de cuidar de minha vaidade. Embora minha beleza fosse algo que ele desprezava, nunca deixei de lado os cuidados com meu corpo e com minha aparência. Conservava, bem dentro de mim, a certeza de que, um dia, voltaria a ser quem era antes de meu casamento. Planejava, com a maior das paciências, o momento em que tivesse condições para excluir de minha vida, esse homem mau caráter.

Meus pensamentos positivos, aliados à minha determinação, atraíram essa oportunidade tão desejada! Se por um lado, senti-me aliviada de tamanho peso, por outro, sofri mais mutilações. Revoltado por ter sido expulso de casa, ele levou tudo o que lhe foi possível e me deixou o acúmulo de suas dívidas, sumindo para endereço ignorado. A cada cobrança, um pedaço era levado de minha confiança no ser humano. Longe de meus parentes e família, o apoio moral que recebi de meus jovens filhos, ajudou-me a levantar a cabeça e partir para a luta.

Em dois anos de batalhas que pareciam não ter fim, terminei meus estudos e consegui um bom emprego. Agora, sim – pensava comigo mesma, posso cuidar de minha própria vida. Estava, porém, tentando me enganar. Já não era a mesma! Precisava reconstruir-me.

Aos poucos, fui pegando de volta minha alegria e o brilho no olhar, que tanto encantavam aos que me conheciam em minha terra natal, de onde partira no dia de meu casamento. Juntar, porém, os pedaços de meu coração partido, parecia-me uma tarefa impossível. Não confiaria em mais nenhum homem. Não cairia mais em nenhuma lábia.

Minha amargura no amor, não foi repassada para meus filhos, muito pelo contrário, sempre procurei lhes mostrar as causas de meu fracasso e estimulá-los à uma vida amorosa sadia. Em razão disso, eles não tiveram problemas em casar. Quem ficou com dilema fui eu, por não saber o que fazer só com tanta liberdade.

Os convites para sair com minhas amigas, terminaram por me tirar de casa. Adorava dançar e elas sabiam disso. No começo foi muito complicado. Sentia-me enferrujada, após tantos anos distante de ambientes festivos. Além do mais, sentia-me nervosa e constrangida com a proximidade masculina. Foi necessária uma nova postura mental.

Em um dos salões de dança que passara a freqüentar, conheci um homem que fez meu coração pulsar, novamente acelerado. Lutei bravamente contra a fascinação que ele exercia sobre mim, mas tínhamos muitas afinidades e não resisti. Como eu, ele era divorciado, não tinha nenhuma pretensão em dividir seu teto com mais ninguém; dançava divinamente bem, tinha preferência por vinho e, além do mais, nos momentos em que passávamos juntos, nos transformávamos em duas crianças, a brincar com a vida.

Durante quase seis anos, conheci o que é amar e ser correspondida. Romântico e apaixonado, ele me conduziu pelos caminhos de uma sexualidade que eu desconhecia. Andava sobre nuvens e tudo era alegria para mim. Nossa cumplicidade era tanta, que me cegou para os primeiros sinais de mudança em seu comportamento. A tudo eu justificava, porque confiava plenamente nele.

Talvez para aplacar sua consciência, foi ele mesmo quem me contou. Estava tendo um caso passageiro com uma moça de seu emprego. Pediu que eu não me preocupasse, pois disso dependia sua promoção. Fiquei a olhar para aqueles lábios que eu tanto beijara, para aqueles olhos que mil vezes me fixaram com uma paixão avassaladora e, num gesto de despedida, acariciei todos os detalhes de seu rosto, como a querer gravá-los para sempre.

Queria falar alguma coisa, mas as palavras estavam presas em minha garganta. Ainda bem que ele escolhera o local certo para sua confissão. Estávamos em minha residência, aguardando o momento de sairmos para dançar. Com as pernas trêmulas, fiz o maior esforço para me levantar da cadeira. Abri a porta e com um gesto bem expressivo, mostrei-lhe o caminho de saída. Fiquei naquela posição, até que ele entendesse que seus argumentos não iriam me convencer.

Durante um mês, chorei todas as lágrimas do mundo, mas não atendi a nenhum de seus persistentes telefonemas e nem abri nenhuma das cartas que me enviou. Não era por orgulho, como insistiam em falar minhas amigas, mas em cumprimento a promessa que eu fizera a mim mesma, em nunca mais dar oportunidade, a nenhum homem, de colocar chifres sobre minha cabeça!

Os meses corriam velozes e não conseguiam afetar meu grande amor por aquele homem.. Sentia uma saudade imensa de tudo o que ele me oferecera, principalmente de sua alegria. Por medo de encontrá-lo e me jogar em seus braços, deixei de dançar. Minha única diversão era visitar meus filhos e freqüentar cinemas – locais em que sabia não encontrá-lo.

Já fazia mais de ano e meu sentimento por ele continuava intacto, de mãos dadas com minha grande tristeza. Como em todos os meus finais de dias, estacionava meu carro, após o trabalho, e saía de cabeça baixa até entrar no elevador. Naquele final de tarde, um pressentimento estranho tomara conta de mim, algo como se alguma coisa diferente fosse me acontecer. Tratei de me acalmar. Afinal, a rotina de meus dias era sempre igual e já me acostumara a ela.

Saí do elevador e me deparei com uma imagem que me deixou estática. Ali estava o homem a quem não conseguira esquecer. Sentado no tapete em frente á porta de meu apartamento, ele me olhava dos pés à cabeça, com uma expressão que não pude definir. Ficamos ali parados e mudos, por alguns momentos, como se houvesse um abismo entre nós e alguma cola a pregar nossas línguas.

De repente, em fração de segundo, vi-me envolta em seus braços. Ele levantara e correra para me abraçar. Seus lábios tentavam encontrar os meus, em vã tentativa – minha cabeça se desviava em movimentos bruscos. Afastando-se do meu corpo, ele me perguntou se eu não sentira saudades suas. Falou que já conseguira a promoção e que agora retornava inteiramente meu.

Só Deus sabe o esforço que fiz para vencer o desejo de aceitá-lo, de me atirar novamente em seus braços e reviver todo nosso passado. Coloquei as mãos em seu rosto, olhei bem dentro de seus olhos e disse-lhe com voz trêmula: você é ambicioso demais e outras promoções vai querer. Se optou por vender seu corpo, ao invés de vender seu esforço e dedicação ao trabalho, esse mesmo caminho fácil, surgirá outras vezes para você. Vá, siga sua vida. Abri a porta, entrei, pedi licença e fechei, não só a porta, mas também meu coração. Ainda o ouvi falar bem alto: é nisso que dá se ser honesto.

Nunca me arrependi. Anos mais tarde, eu soube que ele era sócio da empresa dela. Minha experiência anterior, havia ampliado minha visão e livrado de outros martírios. A honestidade dele não passara de um plano de defesa, para adquirir minha confiança em seus propósitos futuros.

Fui tocando minha vida com a alegria dos netos. Curti todas as suas etapas de crescimento. Já bem crescidos, comecei a me surpreender por acharem que meus conceitos já estavam superados. A tudo que lhes falava, eles respondiam - acorda vozinha, o mundo hoje é outro. Magoava-me ver meus filhos sorrindo, ao invés de lhes chamar atenção.

Juro que tentei entender essa nova forma de ser, cheguei a acolher seus namorados em minha casa, mas dormirem em meu lar, isso era demais para mim. Eles foram se afastando. Quando os visitava, já não me dispensavam os mesmos carinhos e atenções.

De expansiva, me transformei lacônica. Mesmo assim, ainda ouvia queixas de meu olhar crítico. Convenci-me de que já cumprira minha missão junto a meus filhos e netos. Eles pertenciam a um mundo, do qual eu não fazia parte. Era a hora certa de viver minha vida..

Passei a viajar. Vivia em companhias de turismos. Conheci meio mundo, mas nada preenchia a lacuna deixada pela ausência e carinho de minha família. Concluí que tinha de aceitá-los como eram. Novamente a vida estava a me impingir mutações..

Não estou mais só. Tenho a presença de meus familiares. Aprendi a conviver com a modernidade deles. Só que, em momentos como este, em que estou só comigo mesma, sou assaltada pela dúvida de quem realmente sou, assim perdida no tempo e espaço de minha própria alma.

Ercy Fortes
Enviado por Ercy Fortes em 20/08/2013
Código do texto: T4443356
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