GELO

Esta não é uma história de amor convencional com final feliz. Também não faz a linha Romeu e Julieta, embora tenha um final trágico. Ela é trágica sim, mas por causa do preconceito, do olho que se recusa a ver. Diz assim:

Conheceram-se na fábrica de sorvetes onde trabalhavam. Os dois são adolescentes e moram em vilarejos distintos e um pouco distantes um do outro. Suas famílias são rivais porque seguem as tradições dos casamentos arranjados e do intenso escrutínio familiar – todos os membros da família têm direito sobre a escolha do conjuge.

Tudo começou com uma troca de olhares furtivos. Aos poucos o som do sorriso foi invadindo o sonho e os espaços vazios. Queriam sentir o calor das mãos entrelaçadas passeando pelas ruas, o cheiro do cabelo quando a brisa bate de repente e aquelas coisinhas tolas de todo namorico juvenil.

Um romance entre dois jovens de etnias diferentes, pondo à prova a intolerância de uma aldeia em relação aos caprichos mais modernos do coração.

Todos os dias eles davam um jeitinho de demorar um pouco mais para bater o ponto, atrasar a fila no bandejão do refeitório, sentar-se no mesmo campo visual, percorrer em sentidos opostos o caminho dos setores, cruzarem-se nos portões e pontos de ônibus. Sempre se viram, mas ainda não haviam se falado ou se tocado. Estranho sentimento esse que não precisando de palavras nos cala fundo na alma. Era naquela doçura que o coração de ambos se alegrava, se sentia acolhido. Naquele imenso amor e tamanha ternura. Plenos de exagerado silêncio.

Acharam um jeito de se entender e pelos muros do caminho deixavam-se recados...:

“O teu silêncio é um planeta onde as estrelas brincam

Uma tela surreal em que caíram cores erradas

Paisagem manuscrita que embala uma saudade. ”(ele)

“Um infinito olhar

No movimento lento de dia sonolento,

Onde tudo é sempre nada, onde tudo sempre faz tanto tempo.

Um primeiro olhar do penúltimo amor

Trazendo à tona coisas que deviam ficar

Dispersos ventos

Inventando variantes

Vivo nos olhos de quem me quer

Margaridas e estrelas

Enganos e solidão nos caminhos sem lua

Longe de você,

Sinto-me desertamente perdida de mim. ”(ela)

O tempo foi passando e as consequências desse amor vieram em velocidade brutal.

Depois de um ano namorando escondido, planejaram fugir até a cidade vizinha para casarem-se. Um primo mais velho dele os levaria de carro. Eles não conseguiam entender porque a tradição e o conservadorismo despertavam tanto rancor e não consideravam as razões do coração. Eles não haviam cometido nenhum crime, eram humanos como todo mundo, vieram do mesmo barro, por que não podiam se amar em paz? Por que tinham que fugir? Por quê? Estava tudo errado.

No dia marcado, não haviam percorrido nem vinte metros quando um veículo bloqueou a passagem do carro em que estavam e um grupo de homens enfurecidos saltou. Uma multidão ensandecida logo se formou. O primo foi violentamente agredido. Ele foi surrado até desmaiar, enquanto um coro se formava exigindo que o casal fosse morto a pedradas ou enforcados.

Quando as autoridades chegaram para resgatar a integridade do casal, a multidão alucinada subjulgo-os também, incendiando as viaturas e depredando a delegacia, que acabou incinerada. Precisou vir ajuda da capital para por fim ao tumulto e levar o casal a um reformatório bem longe dali.

Eles já não conseguem mais se ver. O destino deles está nas mãos do Poder Judiciário. Porém, a crueldade maior é o julgamento da comunidade e de seus familiares.

“Nasceram dois e pelos caminhos e belezas da vida fizeram-se um. Com o passar dos dias e o superar das agruras e desventuras já não mais sabiam viver separados.

Havia necessidade, intensidade, mais do que uma simbiose. Eram dependentes. Amantes urgentes. Tinham fome e sede. Uma serena doçura tecida em trama de eternidade - enredo de sessão da tarde. Devaneios e límpidas loucuras.

Poeira e folhas, talvez um pouco do nada diante de tão dúbias aparências.

Mesmo quem não pensasse em duas existências tão cheias de sentimentos e confidências, esqueceria a inquieta mão que procura e que um ao outro encontra.

Num tempo quase sem tempo de um amor que não conseguiu morrer. ”(eles)

Quando o pai da menina conseguiu visitá-la no reformatório não conseguiu dizer palavra. Ficou durante muito tempo chorando cabisbaixo em frente a ela. No final da visita, levantou o olhar e disse que ela havia envergonhado toda a família. Se você sair daqui algum dia, os parentes te matarão. Virou as costas e nunca mais a viu.

Ele, trancafiado no seu canto só conseguia chorar. Implorava pela libertação dela em segurança, não se importava em morrer por ela. Sabia-se amado. Só não conseguia esconder a perplexidade quanto às razões que poderiam levá-los à morte.

“Fiz uma prece e joguei-a ao vento.

A brisa que embaraçou meus pensamentos,

Fez arder uma saudade,

Mas meu coração é farol apagado na areia dessa praia.

Duna deserta.

Neblina resfriada.

Meus pés cansados e feridos pela caminhada áspera,

Buscam abrigo na varanda da tua alma.

Teu silêncio é minha cegueira.

Não deixe que eu te ignore. Não deixe que eu me cale.

Já quase não tenho palavras nem imagens,

Por longe que ande, sei que só em você me encontro. ”(ele)

Depois desse episódio, mais cinco ou seis meninas já fugiram da cidade com seus namorados ou noivos. O que será delas, só o futuro dirá.

Encolhida em sua tristeza, despercebida, mas sempre reprimida e nua de opiniões, ela chorava no escuro, sentada no canto daquilo que restou do seu mundo. Como uma prece, ela mandava-lhe seu alento:

“Meu pensamento parado

Na beira do telhado

Procura por um recado

Perdido ou encantado

Meu pensamento parado

Ficou morando atrás do tempo

Com letra e data

De música insensata

Meu pensamento parado

Usa sapato furado

Tem cheiro de flor

E sonha em viver um grande amor. ”(ela)