A MARCA DO ÚLTIMO BEIJO

Foi nos idos de 1950 que ela conheceu aquele que seria o grande amor de sua vida. E realmente o foi, apesar de se terem separado, antes mesmo de que se juntassem.

O rapaz, um moreno elegante e vistoso, era disputado a golpes de olhares obtusos, por todas as moças do lugar. Elas suspiravam longos ais, engolidos e disfarçados detrás das cortinas das janelas.

Fingindo nada perceber, seguia o moço a passos lentos pelas estreitas calçadas, vestido em ternos bem cortados por alfaiate, que sempre lhe recomendava que não se esquecesse do lenço branco na algibeira, detalhe indispensável de elegância. E assim, obediente, levava no pequeno bolso do paletó a sua marca registrada, o lenço em claro destaque.

Transitava ele sempre, na boca da noite, passo a passo, numa das mãos o cigarro aceso, a outra mão, displicentemente guardada num bolso da calça de casimira, cujo vinco era cuidadosamente afinado pelo tintureiro. Os cabelos bem penteados e perfumados, sem um fio fora do lugar. Com ar brejeiro, seguia ao encontro da namorada. Formavam um belo casal.

Do alto-falante da praça, no largo da igreja, acompanhando sua caminhada, a voz afinada e dolorida de Dalva de Oliveira, penetrando portas e janelas, espantando os ais detrás das cortinas: “guardo o lencinho branco, que me deixaste ao me abandonar. Manchado assim pelo carmim que tirei de seus lábios, quando te beijei...”

Helena, romântica que era, apaixonou-se por Leandro e sentiu o coração aumentar, de tanto amor. Sua inclinação por ele vinha de longa data, dos laços de famílias, vizinhas de muito tempo e de compadrio anterior.

Amava-o com o que tinha de mais forte dentro dela, talvez coisa de alma ou do sangue que lhe percorria as veias, de outras eras talvez. Não sabia explicar aquele sentimento que, por completo, dominava seu pensamento. Na força da juventude, viu-se tomada por aquele turbilhão a lhe corroer a paz e o juízo.

Era moça bonita ela, tão delicada, que se igualava às rosas com suas pétalas vermelhas, dissolvidas no batom que lhe enfeitava os lábios. De sorriso fácil, passos curtos e rápidos, de quem sempre tem pressa, olhos espertos e profundos, que sonham antes do vivido. Heleninha, assim era chamada, pela delicadeza do corpo e dos gestos. Meneava com graça os cabelos e as mãos, com que espalhava carinhos e bondades distribuídas.

O namoro criou raízes e o noivado deixou marcas do batom de Heleninha no alvo lenço de Leandro. Felizes, marcaram o casamento.

Pouco antes da data estipulada, Helena percebia algo estranho no comportamento do homem que escolheu para com ele dividir seus dias. Buscou explicações, tentou entender a frieza dos últimos beijos. Guardou o lenço branco, com o qual ele limpara o batom dos próprios lábios.

Em poucos dias correu a notícia, da qual ela foi a última a saber. Descobriu que Leandro tinha família constituída em cidade vizinha. Mulher, filhos, casa montada.

O sorriso fácil e claro desapareceu de seus lábios. Sofreu, quis morrer e tentou sangrar o peito. Errou o tiro, mas jamais se esqueceu daquele amor sem medidas.

Casou-se com outro e levou, entre os pertences, o lencinho com a derradeira marca de sua felicidade. Cantava no quintal e nos corredores da casa, com voz aguda a afinada, a melodia que marcara sua vida.

Morreu quarenta anos depois, vitimada por lancinante dor no peito.

Em sua mão direita, o lenço com a marca vermelha do batom.

texto republicado.

Dalva Molina Mansano
Enviado por Dalva Molina Mansano em 23/02/2014
Reeditado em 02/04/2022
Código do texto: T4703218
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