'' VALENTINO ''

Tenho 85 anos hoje,e forte como um touro, mas quando Valentino surgiu na minha vida eu tinha 70, portanto vivemos juntos 15 anos agradaveis, foi muito carinho, amor e tambem por que não dizer ''paixão''?

Me chamam de louco, dizem que sou um velho ''eXquisito'', mas nem ligo pois sei que todo velho é mais ou menos esquisito, todos somos, todo velho é enfezado, ranzinza, de ''mau'' com a vida, resmungão, casmurrão e por ai vão os apelidos que se colocam aos velhos e velhas da vida, menos eu, porisso me chamam de louco...eu sou de bem com a minha vida, sempre fui, sempre.

Fui feliz a vida inteira,alegre, conversador, papeador, contador de casos e causos, de histórias e estorias, sempre apreciei a vida, tive, claro, momentos de baixa, mas foram poucos que nem valem a pena pensar neles, alguns contratempos, alguns desamores, mas que as alegrias dos grandes amores compensavam bem mais.

Casei, fui feliz no casamento, tivemos filhos que tambem se casaram e estão felizes nos seus casamentos, netos e netas e até bisnetos já tenho, mas depois de mais de cincoenta anos de casados Jurema foi se juntar ao criador e me deixou só nesta casa enorme.

Os filhos antes da morte da mãe ainda vinham de vez em quando nos visitar mas depois que ela faleceu quase nem os vejo mais, moram na capital, longe, tem familia grande os dois filhos, vir me visitar leva tempo e um montão de dinheiro, logo depois da morte de Jurema ainda me telefonavam uma vez por semana, o tempo foi passando e os telefonemas rareando e fiquei eu e Deus neste casarão enorme.

Os filhos no começo da minha viuvez insistiam para que eu alugasse a casa e fosse morar com eles, a casa com certeza renderia um bom aluguel, ainda mais se alugada para comercio...cruzcredo!!, alugar e ter que tirar as lembranças da minha querida Jurema dos lugares que ela tanto amava...jamais!!! me recusei, não aluguei.

Passaram a insistir na venda então, piorou, dizia eu para eles, onde já se viu isto...vender!!! e sabe-se lá o que fariam com esta linda casa que eu e Jurema tanto lutamos para construir e amavamos de coração, criamos os filhos nesta casa e agora eles, ingratos, pensando em tostões, filhos sem coração!!!, uma grande construtora, que Laerte o filho mais velho mandou vir dar uma ''proposta'' de venda, enviou um representante, dizia ele que iriam derrubar para construir um prédio de mais de vinte andares....nem bola dei para ele e sua desagradável proposta...os filhos ficaram putos da vida com isto, que se fodam eles, pensava eu e toquei minha vida prá frente.

Contratei uma senhora para vir todo dia cuidar da casa e de mim tambem, Lindaura foi o anjo que Jurema me mandou para cuidar de tudo na casa e na minha vida.

Lindaura vinha de segunda a sexta das 8 hs da manhã até as 5hs da tarde, limpava, arrumava, cuidava das compras e dos pagamentos das contas, como Jurema fazia, no começo foi muito serviço mas depois ela entrou no ritmo e logo depois do almoço, a cozinha toda limpa, a casa cheirosa e ficavamos na prosa, ela recebia algumas amigas para um café da tarde, vinham alguns amigos meus e as tardes eram gostosas, mas depois da cinco ela ia embora, eu ficava só, a solidão tomava conta de mim, era assistir um pouco de tv e depois ir dormir, nas noites quentes ainda era bom mas nas noites frias, congelantes, que tristeza!!, que solidão!!, noites de ventania então...era aquele barulho do vento nas árvores, nos fios de eletricidade...zuuum, vuummmm...vichii!!!.

Comentei com Lindaura isto, ela não disse nada, apenas sorriu e no dia seguinte vinha lá ela com uma caixa de sapatos na mão.

Fiquei olhando sem entender quando ela me estendeu a caixa e me dizia que era um presente.

Abri e não sorri, a surpresa foi desagradável para mim, sou velho, já estava com 70 anos e este tipo de surpresa deixa velhos como eu ''furibundo'' da vida...olhei para ela, olhei de novo para dentro da caixa e nem ela e nem eu diziamos nada...ela quebrou o silêncio.

Valentino vai melhorar sua solidão, velho chato, e virou as costas, rindo da minha cara de ''bosta''.

Fiquei com a caixa na mão e dentro dela um cãozinho mais preto que a noite, dormindo, e eu o olhando e sem saber o que fazer, fui atras de Lindaura chamando por ela aos ''berros''....não quero, não quero, leva embora de volta para onde esta '' coisa'' saiu, toma, segura esta caixa e leva embora esta porcaria daqui já, agora, e larguei a caixa em cima da táboa de passar roupa...ela tirou na hora, estava molhando a tábua com xixi, me dizia ela...fiquei possesso, me tranquei no meu quarto e nem vi quando ela foi embora, desci pé ante pé e não vi a caixa e seu '' morador''...Valentino!!! de onde ela tirou este nome?.

No dia seguinte olha ela de novo com a caixa na mão, passou por mim e não disse nada, soltou o danadinho na cozinha e quando fui beber água ela me dizendo...não pisa aqui que tem xixi e vou limpar....não pisa ali que tem cocô que vou limpar...que nojo!! lhe dizia eu e ela apenas ria...todo mundo mija e todo mundo caga seo Zezito, todo mundo, até os animais, sabia?..sim Lindaura eu sabia, eu sei...mas no chão da cozinha não e muito menos pela casa inteira, lugar de fazer isto é no banheiro...vi a cara dela se iluminar e pegou Valentino na mão e foi para o banheiro no quartinho dos fundos...fui atras e eu vi, juro que vi ela ensinando ele a fazer xixi e cocô no chão do banheirinho e depois vi tambem ela ensinando ele a fazer isto no quintal...o danadinho depois de muitas licões aprendeu...demorou mas aprendeu, aprendeu e comigo ficou...na primeira noite que ficou chorou, chorou e não me deixou dormir, na segunda noite resolvi..levei para minha cama, dormiu a noite inteira o danadinho...tinha frio, eu tambem.

E Valentino foi crescendo, crescendo, fui ensinando truques e obediência, o filho de um grande amigo é treinador de cães, vinha na minha casa todo sábado a tarde e ensinava truques e obediência para Valentino, e melhor, ensinava ele andar ao meu lado sem me atropelar, antes era afoito, pulava, corria, e quase me derrubava, ficou sendo meu amigo e companheiro,era alerta, qualquer barulho e já de orelha em pé, sabia quando Lindaura vinha vindo, ela descendo do ônibus na esquina e ele já indo para o portão, era uma festa quando ela chegava e uma tristeza quando ela ia embora de tarde, Valentino ficava esperando o ônibus que a levaria embora passar, ai ele levantava e vinha para dentro de casa, eu o chamava e ele não vinha, o ônibus passava e lá vinha ele, mesmo com chuva ele ficava esperando e quando voltava não entrava pela porta da sala, dava a volta, se sacudia na varanda e entrava pela cozinha....eu ralhando com ele, ele com cara de coitado esperando eu pegar uma toalha para enxuga-lo, sabia das coisas o meu amigo Valentino...se sabia!!

Fiquei doente, me levaram para o hospital, eu queria que Valentino fosse comigo, não deixaram, e Lindaura me prometeu...vou dormir na sua casa até o sr.voltar, seo Zezito, prometo, assim fica mais fácil para mim, não tenho que levantar tão cedo, tomo conta da casa e de Valentino para o sr...fica sossegado, fiquei mesmo...me deram calmantes fortes, dormia o tempo quase que inteiro e quando depois de tres dias eu sai parecia que o taxi demorava demais para chegar, demais da conta soh!! dizia eu para o motorista que ria e Lindaura me chamando de ''velho turrão'', Lindaura passou a morar comigo, era viuva, os filhos casados, alugou a casinha dela e ficou de vez cuidando de mim, da casa e do seu querido protegido Valentino, o mimado, por ela, por mim...

Uma noite tive um sonho, eu, Valentino, Lindaura, Jurema, os filhos, todo mundo no sonho, uma confusão,...acordei suado e Valentino que agora era enorme e dormia em um sofá no meu quarto, já levantou a cabeça e veio para meu lado como dizendo..'' que foi? que aconteceu? '', afaguei a cabeça dele e desci para beber agua, ele atras de mim, me seguia onde eu ia, olhei para ele e decidi...

Quando ouvi Lindaura na cozinha fazendo café fui até la.

Lindaura, quer casar comigo?....ela deixou cair a jarra de café na pia, quebrou, olhou para mim com cara de espanto e viu minha cara de sério, entendeu, deu um sorriso e disse ''sim''...casamos.

A primeira coisa que meu filho Laerte disse quando eu lhe telefonei foi...'' casa mas com separação de bens né? '', que tonto!!! nem parece que tem estudo, que é um homem estudado...na minha idade claro que só poderia ser com separação, mas se eu quiser, lhe disse eu, passo tudo para o nome dela, até Valentino..., ela ao meu lado entendeu e riu...ela não queria nada mas Valentino ela queria..mas eu não daria, era meu, ela me deu...era meu...meu, entendeu?

Foi uma das melhores coisa que eu fiz na minha vida, um passo que eu nunca me arrependi, aprendi a amar Lindaura, ela tambem, no começo foi difícil para mim e mais ainda para ela, tivemos que ir aos poucos se acostumando um com o outro, até que um dia ela veio dormir no meu quarto, apenas dormir me dizia ela, foi mais que isto, deixou que eu a tocasse e dai prá frente foi um auê, todo dia, toda hora era festa mas quem não gostava era Valentino que tinha que ficar do lado de fora, no começo ele latia, uivava, arranhava a porta que até lascou do lado de fora, depois se acostumou e quando eu ou Lindaura pedia, ele de rabo entre as pernas já ia saindo, deitava em frente a porta e só voltava para o sofá dele quando a porta era de novo aberta, me doia o coração, no começo ficava triste, mas para o bem geral do casal me acostumei e Valentino tambem, era eu e Lindaura deitar na cama e ele já ia saindo...tadinho!!!, eu chamava ele voltava e lhe dizia brincando, ...volta Valentino que hoje não tem brincadeira não...parecia que ele entendia.

E o tempo foi passando, dez anos e um dia Lindaura não acordou...tinha ido embora tambem, foi longe, voltou para o criador, foi se juntar a Jurema e deixou eu e Valentino no sofrimento, ela fazia falta, sua bondade, seu calor enchia a casa...a casa voltou a ser fria, silenciosa de novo, noites horríveis sem ela na cama, virando na casa, tomando conta de tudo...contratei uma outra, não deu certo, outra e mais outras e mais outra...quando Jurema faleceu foi a mesma coisa até aparecer Lindaura e eu agora teimava em achar outra igual..igual impossivel, parecida talvez, mas igual?, jamais!! e resolvi ter apenas diaristas que viriam uma, duas ou trez vezes por semana e por poucas horas...deu certo.

E eu fui me conformando com a vida...eu e Valentino meu grande amigo e companheiro....mas ele já estava ficando velho tambem, ficava muito tempo deitado, andava devagar e meio que cambaleando, o veterinário vinha e lhe dava injeções e remedios e eu preocupado com a saúde do meu velho amigo, ele ia definhando dia a dia, o dr. me dizendo que ele iria ficar cego logo logo, e foi mesmo, primeiro de um olho, depois o outro....quase morri de tanto chorar e sofrer por ele, eu o carregava no colo, subia as escadas com ele no colo, descia...e eu já estava com quase 85, mas eu por ele faria tudo isto e muito mais..e fiz mesmo.

Uma manhã acordei e não vi Valentino no sofá, procurei e vi ele do outro lado da cama, no chão, corri, ele tinha tentado subir na cama, não conseguiu me dar o ultimo adeus, morreu ali no chão, eu chorava, gritava, me lamentava, pedia socorro...liguei para o veterinário, ele demorou e foi ai que a coisa piorou...ele me disse que Valentino tinha ido mesmo embora...não ouvi mais nada, me agarrei nele e me lembrei do primeiro dia que ele chegou...''tira esta coisa daqui, leva esta porcaria embora...'' e agora iriam mesmo levar a minha '' coisa, a minha porcaria '' embora de vez, eu não queria acreditar, não iria deixar...não, não...dei o que fazer para o dr. me convencer e ele me dizia que iriamos juntos enterrar Valentino no quintal...olhei para ele e lhe disse gritando '' no quintal? jamais'', Valentino vai ser enterrado no meu túmulo, no meu jazigo que tenho no cemitério da Saudades, o lugar é meu, faço dele o que bem quiser e quem não gostar que se foda '', ele me olhou, não disse nada e se foi.

Liguei para um amigo advogado e ele me dizendo que eu não poderia fazer isto, a lei não permite me dizia ele...só gente no cemitério e nada adiantou meus argumentos de que Valentino era mais que gente...para voce, me dizia o tonto, mas para a lei ele é um cachorro, ....desaforo soh!! desliguei na cara dele.

Liguei na Prefeitura e foi um deus nos acuda...transfere de cá prá la´...não é comigo, é com fulano, com beltrano...putos!!! na hora do imposto é com eles mesmo...bandidos!!! liguei para um vereador que conheço, ...riu de mim na cara...cara de bosta tem ele!! e não houve jeito que eu desse...Valentino iria para o quintal mesmo, decidi..chamei na hora um pedreiro que conheço, seo Valdir, ele veio e em duas horas ele construiu um tumulo pequeno de tijolos com lajes em cima e tudo o mais e me ajudou a ali depositar meu amigo Valentino, eu chorava tanto que seo Valdir, homem duro, tambem chorou, fechamos o túmulo, paguei seu Valdir e ele ficou de voltar depois de uma semana para construir a parte de cima onde vou colocar uma lápide com foto, nome e tudo o mais e vou mandar gravar uma pequena frase que Valentino merece

AMOR....MUITO DEU, MUITO RECEBEU.

E agora armei outra confusão na familia...já fiz meu testamento, minhas ultimas vontades...hehehehehe...me vingo!!! quero ser enterrado no meu quintal...tcham tcham tcham...seo Valdir não queria de jeito nenhum, não concordava comigo mas eu lhe ofereci uns bons trocados, ele coçou a cabeça e fez...fez um tumulo lindo ao lado do de Valentino para eu ser ali enterrado e meus filhos cada vez mais chateados, me tentando dissuadir de isto fazer...Laerte, meu filho mais velho consultou o mesmo advogado nosso amigo, e ele dizendo para eles , meus filhos, me internarem no sanatório, que eu estava louco, isto é proibido pela lei....e eu lhe dizendo que a lei que vá tomá no cú, o corpo é meu, a vida foi minha, enterro tudo isto onde eu quiser e acabou, mas minha nora em segredo me disse..'' seo Zezito eles não vão fazer isto não, eu ouvi Laerte e Luis dizendo que não vão fazer, mas eu lhe prometo...no dia que o sr morrer eu peço para o seo Valdir desenterrar os ossos do Valentino embrulhar bem embrulhado e colocar ao seu lado no caixão e assim ele vai junto com o sr...tá bom assim?

Olhei bem nos olhos dela, era uma boa mulher esta minha nora mais nova, se era...adivinhou meus sentimentos, segurei a mão dela bem firme, apertei e como um bom cavalheiro beijei suas mãos, chorei e ela chorou tambem....e ela me contou em segredo que comprou um cãozinho preto como a noite e que vai colocar o nome dele de Zezito, em minha homenagem...

Eu ri e lhe prometi...agora posso morrer em paz, diga para aqueles ingratos tudo isto e lhes diga mais ainda...vou desistir no testamento desta coisa que eles chamam de bobagem, mas que eu, e voce tambem, chamamos de AMOR...e como disse o criador..

Amai-vos uns aos outros como eu os amei.

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WILLIAM ROBERTO CUNHA
Enviado por WILLIAM ROBERTO CUNHA em 16/03/2014
Código do texto: T4730731
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