A PAISAGEM DO DESESPERO

Ao longe, seu carrinho de pipoca fechado para ir embora, Paulo, apertado para urinar, decide descer até a margem da lagoa para ficar livre da necessidade, escondendo-se dos demais que tumultuam com correria a calçada, atrás da grande e frondosa árvore que é feita de cais por um dos alugadores de barco para passeio da região. Passadas largas, mão na braguilha da calça, o pipoqueiro chegou ao local já com o pênis para fora, buscando se aliviar.

Não teve atenção para nada. Só mesmo quando se saciou é que pode perceber o corpo de uma mulher negra, de uns 42 anos, contorcendo no ritmo da gemedeira que emitia. Assustado, Paulo correu até a mulher, viu que seu pulso esquerdo sangrava e ela o segurava. Ele viu também uma boa faca afiada logo ao pé dela. Deduziu o que se passava num instante. Chegou a dizer esbravejando que se a mulher decidisse cortar a corda que segurava o barco a remo de aluguel e desse uma volta no galho mais grosso da árvore onde ela estava amarrada, decidindo se enforcar, ele não teria chance qualquer de salvá-la.

Ana. Ela disse seu nome quando conseguiu recobrar o sentido graças ao estancamento que Paulo fazia com a ajuda de um pano que ele carregava no ombro por não ter tido tempo de deixá-lo no carrinho. Falta de perspectiva na vida miserável que levava e muito sofrimento com a solidão. Foi a justificativa dada pela mulher. O rapaz conseguiu tranquilizá-la com palavras de carinho, cuidado e equiparações, pois ele também estava com problemas financeiros graves, desempregado, tendo que se virar como vendedor de pipocas com o carrinho de um amigo, além de solitário. Não conseguia de jeito nenhum arrumar uma pessoa, pois, conforme ele, as mulheres de agora não querem saber de recém cinquentões que não têm situação financeira definida. Isso estava lhe amargurando bastante.

Ouvindo-o e já em condições de ter pensamentos coordenados, Ana sonhou olhando para o homem que lhe abraçava. Desejava ela poder ser a mulher que ele precisava. Ainda mais por ela se encontrar em dívida com ele. Mas ela se sentia incompatível. Se julgava feia, já com marcas de velhice por causa da vida sofrida, e ligeiramente acima do peso. Talvez ele quisesse alguém diferente.

Do hospital ele voltou para buscar o carrinho, caminharam lado a lado em direção a suas casas até o momento que o caminho bifurca. Paulo pediu para que a mulher lhe visitasse no dia seguinte para ele garantir que ela passou a noite bem. A mulher trabalha em uma fábrica da região. E assim começou a amizade.

Ana nutria uma vontade de poder ajudar o amigo e lhe recompensar pelo socorro. Socorro e recuperação da estima. Ela agora está alegre, rondando a felicidade. Sempre que ela sai do expediente, às dezessete horas, ela dá uma paradinha no local onde Paulo vende suas pipocas. Ela o ajuda até, de alguma forma, atraindo fregueses. Seu amigo já lhe falara dentro de uma das conversas que tiveram sobre a meta que precisa atingir no mês que estava se acabando. Faltava uma boa quantia para fechar o aluguel que precisava quitar para não ser despejado. Era uma das suas preocupações. E ela pensou em várias maneiras de poder lhe emprestar o que faltava, mas sabe que também tem limites. E ouvia ele reclamar bastante da solidão. A moça se imaginava despindo-se para ele e tentando satisfazer-lhe a carência para pagar o que devia. Mas pensava que isso não pudesse ser do interesse dele. Ela tinha seus complexos de beleza. Se partisse dele: tudo bem.

Uma tarde, Paulo levava dois saquinhos de pipoca para um casal enquanto Ana, voltando da fábrica, viu um moleque que ela conhecia correndo com uma bolsa. Desesperado, o moleque jogou a bolsa no carrinho do pipoqueiro, no lugar onde os sacos de papel são guardados. A moça que fora furtada não viu o garoto fazer isso, mas a alça ficou presa na porta e ela avistou. Paulo voltava com o dinheiro que recebera dos fregueses e viu Ana, a vítima do furto e um guarda policial ao redor de seu material de trabalho. Ana já havia explicado para o policial o fato e ele aceitou a explicação, porém, pediu para o pipoqueiro ter mais cuidado e não abandonar o carrinho. E assim ficou resolvido o caso e Paulo ficou bastante impressionado com a atitude da amiga negra. Fecharam tudo e foram embora juntos.

Nesse dia, em casa, Paulo pensou em sua solidão e também em Ana. Achava que talvez ela se interessasse por ele. Poderiam morar juntos e com isso repartir as despesas. A amizade que fizeram garantia de a mulher entender sua situação e ajudá-lo a crescer. Ela parecia ser mulher do tipo que gosta de homens pela personalidade deles e não pelas possibilidades materiais ou aspectos físicos próprios da juventude. Ele havia falado para ela que o dia seguinte seria muito difícil para ele caso ele não conseguir vender o que faltava para quitar a dívida com o locador. Seria exatamente o dia do pagamento.

Na casa dela, Ana não parava de pensar em Paulo e decidiu que apaixonara-se. Coisa que ela achava que não deveria acontecer. Ao mesmo tempo ela pensava no que podia fazer para ajudar o moço com a quitação que o assombrava. Era dia do seu recebimento na fábrica o seguinte. O dinheiro que iria sobrar ela pensava em comprar um eletrodoméstico e algumas roupas. Podia ficar sem os objetos por mais um tempo, mas já fazia meses que estava adiando.

A área estava um pouco agitada naquele fim de tarde. Havia sol ainda e ventava. Na grama jogavam bola, no parquinho pais e filhos se divertiam e na lagoa pássaros alçavam voo toda vez que alguém se aproximava deles. Era um dia um pouco diferente talvez porque todos por ali estariam com os bolsos cheios. Uma região turística, até o Sol se pôr iria ter pessoas ao vento para fitar as águas da lagoa.

Um casal passou de mãos dadas pelo carrinho de pipoca. Paulo viu a moça vacilar e deixar cair um bracelete que parecia ser de ouro. Ele foi em direção à joia para pegá-la. Não havia conseguido vender o que precisava, mas ele pensou em apenas devolvê-la. Logo que ele pegou o bracelete, o mesmo garoto da outra vez lhe deu um golpe e tirou-lhe a peça, correndo a seguir para uma casa velha. Paulo deixou que o garoto se fosse e não quis avisar a moça para não se comprometer. Virou-se de costa e foi-se. Ela sentiu seu punho vazio e viu que deixara a pulseira cair. Virou-se para trás e viu Paulo seguindo para a calçada onde estava seu material. O guarda-pó dele balançava com o andar. Veio à mente dela que poderia estar em seus bolsos. Ela viu o policial da área e foi até ele com a acusação.

Ana deixou a fábrica e já estava próxima ao calçadão. O policial reconheceu o pipoqueiro e não afrouxou. Abusou até da autoridade. Ana viu Paulo algemado. Ela levava para ele o dinheiro do que ia comprar. Ele imaginava fazer para ela uma proposta de namoro. Os curiosos na calçada é que disseram para Ana o ocorrido. Ana suspeitou do menino e sabia para onde ele correria. Ela foi para lá.

O moleque estava apavorado esperando a calmaria para fugir dali. Ao ser surpreendido por Ana ele não teve como esconder o objeto que roubou. Ela pediu que ele apenas a devolvesse. Pensara em levar a joia até a confusão e desfazê-la. O menino disse que não entregaria. Lhe pareceu mais interessante enfrentar a proletária. Sem muito tempo para tomar decisões, Ana ofereceu em troca da pulseira de ouro puro o dinheiro que daria a Paulo. O garoto cedeu e ela pôs o objeto na bolsa que carregava.

Já entre os envolvidos no caso policial, Ana pediu para o guarda soltar seu amigo. Disse apenas que não podia ser ele. Mas ao ver a mulher, o policial associou o fato à vez anterior. E até pensou que cometera um erro os liberando simplesmente. Perguntou ele para a negra a razão de ela ter tanta certeza de não ter sido seu cúmplice. Paulo estava em pânico, demonstrava medo. Nunca havia passado por tal situação. Seu medo contaminou sua amiga e ela, afoita e sem raciocinar, respondeu ao guarda. A joia está aqui, fui eu que roubei. E tirou da bolsa o utensílio. Ela disse isso e todos esboçaram êxtase. O caso se resolvia para a maioria. As algemas trocaram de braços. Paulo dizia que Ana mentia, que não era ela e que ele vira o moleque que pegou o troço. Depois ele confessou ser ele próprio o ladrão, sabia que havia algo de errado. O agente da Lei disse que a prova do crime se encontrava com a mulher, era caso consumado. Alertou dizendo que era melhor ele ir embora e que aparecesse na delegacia no dia seguinte. Sem falta, ele completou.

E foram o guarda, Ana algemada e o casal em direção à viatura policial que estava estacionada mais distante. Lá havia um tenente e eles iniciaram a burocracia. Paulo seguiu em direção à lagoa com o seu carrinho. Estava triste e desesperado com o seu infortúnio e com o que acontecera à mulher que já ia pedir em namoro. E que pela qual descobrira também ter se apaixonado.

Ana ainda aguardava as providências da Lei. O casal já havia sido liberado para ir sozinho para a delegacia prestar depoimento e fazer a acusação. A negra estava envergonhada e atônita. Se preparava para entrar no alçapão do camburão. Havia pessoas bisbilhotando. Mas ainda assim ela quis olhar para trás e ver um pouco do panorama onde começara a experimentar uma mudança de vida. Quem sabe veria o rapaz pelo qual se apaixonara acompanhando os acontecimentos e pensando nela. Ao se despedir da lagoa ela viu um barco solto à deriva. Olhou imediatamente para a árvore. Pendia em uma corda pendurada no galho grosso um corpo. Abaixo dele: um carrinho de pipoca. E ela deu um imenso grito: NÃO!

"Ta­lvez o Senhor considere a minha aflição e me retribua com o bem a maldição que hoje recebo."

(2 Samuel 16:12)

Sou autor do livro "Contos de Verão: A casa da fantasia" que trata de empreendedorismo e desenvolvimento humano. O conto é bastante emocionante.