GATARINA
 
          Tarde quente. Saciados da maternidade febril de amor lactante, fresquinhos do recente banho, o casalsinho gêmeo, agora em seus ninhos, dorme ao perfume de um certo céu, ao som do doce desafino da cantiga do papai. As finas cortinas balançam: indício de que a brisa cedeu à força do vento - vento encanado faz mal ! - lembrou- se de sua mãe. Convite à penumbra, ao recolhimento, ao sono. Não para ele, sabia. - Tô tão cansada, fofo. Ái, como são lindos nossos bebês!. Resposta?! nem houve tempo.
          Recostada no azul macio e celestial da poltrona de braços rosa bebê, ela se entrega logo em seguida à posição quase fetal: pernas entrecruzadas, as mãos justas se juntam apoiando a face rosada, sustentando cansaço e leve sorriso. Aos pouquinhos, relaxam os sinais expressivos de recém mãe. Vai ela também, em outro certo céu temporário, acordar. Ele reforça o conforto dela com a erva doce exalada da almofada fofa e com o perfume amanciante da manta xadrez. -  Poxa. Fiquei, mesmo, prá escanteio.
          
Difícil decidir-se pelo qual momento seria, será ou já teria sido o ápice da sua história. 
Em três anos não tinha havido um retorno tão ameno e tranquilo nos quatro quilômetros que percorria a pé, apesar da solidão e dos sempre iminentes perigos. As casas, as lojas, as igrejas, os bares já dormiam quando ele voltava. Cadernos e livros exigiam equilíbrio e força dos seus pulsos e, o tempo gasto era convite para pensamentos: - Muito gata aquela mina!. 
          
Nem tudo dormia naquela noite. (Coincidência !?). Um ser muito gato salta a sua frente, perseguindo um pobre gafanhoto na calçada. Na pelagem densa e colorida, três manchas disputam espaço no branco principal. Entre o cinza, o caramelo e o preto, contrasta o amarelíssimo daqueles meigos olhos felinos, ameaçadoramente tranquilos. Mas o bichano gorducho, desiste do inseto já estraçalhado e ataca o rapazote nas pernas, rompendo num roçar intenso no jeans surrado. Ronronando, parece querer afago. - Que lhe custa uma carícia, jovem humano?... O material desaba e se espalha; abaixa para juntar, lembrando-se de sua mãe. Agora entende: - Só as fêmeas têm mais que duas cores. E a prenhez evidente, e o apego já assumido, fazem Felipe tomar uma importante decisão.
          
No portão, a mãe: - Já estava preocupada, filho. Por que se atrasou tanto? Sempre atrapalhado, ele olha com dificuldade o relógio de pulso sob quatro patas felinas, cauda, orelhas, bigodes, pestanas, lindos olhos amarelos e uma barriga peluda e volumosa. - Mãe, não demorei nem cinco minutos! Com as mãos na cintura: - O que é isso aí, menino?. Ao que Felipe, descaradamente, responde: - Isso o quê? ah...isso...acho que é um gato. Ela acaricia a gatinha e, em seguida, puxa branda e carinhosamente a orelha do filho, dizendo: - Gata, Felipe; só as fêmeas têm mais que duas cores; e vai parir logo, logo. Tentando definir a voz de adolescente para a sonoridade mais grave:  - Ô Mãe .... ; em seguida a voz retoma o desconsertante desafino ... deixa eu ficar com ela, mãe ... prometo que cuido.
          Seis gatinhos, um bercinho improvisado e um show de cores, de pelos, de miados, de lambidas, de preguiça. E de transportes também, de quando em quando, pelos pequeninos cangotes, de um canto a outro da pequena área coberta até que garantida a segurança dos herdeiros. A gata mais observada do mundo não se acanha e, com mestria, exibe tudo o que sabe sobre o assunto ao jovem Felipe. Gatarina era toda cuidados, era toda instintos multicores.
          E
stá escrito que tudo passa. O tempo passa; os medos passam; as certezas passam... GATARINA! seu nome por cinco anos, até que a animozidade de um carro providencia a viagem sem volta daquela sapiência instintiva. Os sentidos, as emoções, esses começam a experimentar o coração de Felipe. A vida se encarrega das provas. 
                     Psiu - sussurra, acariciando o rosto dela - :... Gata ... acorda anjo! Já mudei as fraldas, mas os bebês estão chorando. E os teus seios ... vazando!. 



                       






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Marisa Silveira Bicudo
Enviado por Marisa Silveira Bicudo em 15/04/2014
Reeditado em 01/06/2014
Código do texto: T4769783
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