Olhares

Eu sou completamente apaixonada por olhares. Olhares fantasiosos, olhares baixos, olhares convidativos, olhares que se perdem e olhares que se encontram. Para mim, os olhos contam histórias e eu tento lê-las.

Eu possuía o hábito de ler no ônibus, entre uma página e outra levantava os olhos para, ao em vez de ler uma história na página de um livro, ler uma história nos mais diversos olhares que se encontravam ali, entre ferros e bancos.

Mas há algum tempo eu andava distraída e impaciente. Quando não estava com os olhos baixos, tinha dificuldade para ler os olhos de quem quer que fosse. Eu simplesmente não conseguia, os olhares já não me contavam nada e eu nem sequer insistia em os entender.

Era uma sexta-feira, peguei ônibus às sete horas da manhã, como de costume. O dia começava semelhante ao anterior, que por sua vez parecia o mesmo que o anterior ao anterior, e assim sucessivamente. Sentei em um dos bancos da janela e apoiando o rosto sobre mãos, me pus a olhar para fora.

Do lado de fora da janela à vida parecia passar rapidamente, com uma velocidade próxima a aquela que o ônibus passava pelas pessoas que esperavam nas esquinas para atravessar a rua na faixa de pedestres. Diferentemente da vida do lado de dentro da janela – ou de mim – que parecia se arrastar.

O semáforo ficou vermelho e o ônibus que se encontrava a uma velocidade alta, freou bruscamente. Foi nesse exato momento que meus olhos se encontraram com os de outra pessoa. O menina estava parada a esperar o sinal fechar para atravessar a rua, mas não o fez. Ficou a me olhar exatamente no mesmo lugar que estava antes de o sinal fechar, e o ônibus frear.

Eu pude sentir a dor naqueles olhos, e com muita dificuldade notar que aquela dor era a dor de um abandono. Ela havia sido deixada para trás e enquanto a outra pessoa prosseguia com a vida, ela ficara exatamente no mesmo lugar. As imagens dela com outra pessoa passavam pela minha mente como um filme de romance que acabara sem final feliz. Ela já não vivia mais, apenas sobrevivia, dia após dia, se repetindo eternamente. O motivo da dificuldade para ler do que se tratava a dor daqueles olhos castanho escuro, era que eles a negavam. Ela jamais enfrentou a perda, apenas fingiu a ignorar. Os olhos - e o coração - daquela moça choravam, mas nenhuma lágrima sequer caía. Maior que dor que estava a transparecer, somente o vazio que ela trazia por tamanha negação ao problema. Ela perdeu o que julgava ser sua razão de viver e por não enfrentar a perda, permitiu que todo o sentimento ruim que ela trouxera, fosse tomando conta de sua mente. Ela tinha olhos, mas já não havia um olhar, tudo o que eu via agora era um vazio enorme, nos olhos, no coração, e na alma.

O sinal ficou verde e quando o ônibus acelerou nossos olhares se perderam. Antes que eu pudesse refletir sobre tudo que havia lido naqueles olhos, ouvi gritos no ônibus e um barulho ensurdecedor de buzina. Olhei para o lado e foi então que vi outro ônibus descendo com uma imensa rapidez na direção do ônibus em que eu estava.

Senti meus tímpanos estourarem com o barulho da buzina. O ônibus em alta velocidade se chocou exatamente do lado em que eu estava. Senti os ferros me jogarem bruscamente contra alguns bancos. Os ônibus tombavam um por cima do outro com giros que me lembravam o movimento de bolas – de esporte qualquer - que quanto maior for o choque que tiverem contra o chão, maior será a altura que irão alcançar. Os ônibus se chocavam no chão e pareciam voar.

Pessoas gritavam, bebês choravam e o sangue escorria pelo ônibus que continuava tombando. Eu estava entre ferros e bancos, que se comprimiam mais a cada “tombada” que o ônibus sofria. Mas, sem saber porque, minha mente só conseguia pensar na história que aqueles olhos haviam me contado.

O ônibus girou novamente e um dos ferros que me prendiam começou a atravessar meu abdômen. A vida começou a passar pela minha mente como um filme de romance que não teve um final feliz. Eu sentia o ferro atravessando meu corpo, mas não sentia a dor, pois já não possuía alma para senti-la.

Outro ferro começou a atravessar meu peito e perdendo consciência notei que os olhos com os quais cruzei não me contaram a história daquela moça parada a esperar o sinal fechar. Aquela dor era minha. O sofrimento por tê-la perdido e por não ter enfrentado o problema era meu. Quem tinha olhos, mas não possuía olhar, era eu. Tudo o que as pessoas viam em mim era um enorme vazio, vazio nos olhos, no coração, e na alma. Aqueles olhos não me contaram a história daquela menina, apenas refletiram à história que ela estava a ler nos meus olhos.

Aline do Amaral
Enviado por Aline do Amaral em 27/04/2014
Reeditado em 23/08/2017
Código do texto: T4785456
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