A vendedora de alho
 
Com o cigarro da hora queimando entre os dedos ligeiramente amarelados pelo alcatrão, distraía-se no jardim admirando roseiras e antúrios. Foi surpreendido por ela chamando no portão. Jovem bonita com uma cesta encaixada no antebraço esquerdo.
 
- O senhor quer comprar alho?
 
Virou-se em direção à voz. Gostou do que viu, por isso, em vez da negativa pronta na ponta da língua que mantinha para afastar pedintes e vendedores em geral, caminhou até a moça.
 
Ela apanhou duas ou três cabeças de alho, e levando a mão por entre um vão do gradil, em direção a ele, disse pode pegar e examinar de perto.
 
- Parece que é produto de primeira – ele falou. Mas preciso examinar melhor, entre aqui – convidou destrancando o portão.
 
Ela entrou, ele voltou a fechar o portão com o cadeado e dirigiu-se para a porta da casa. Ela o seguiu. Com um gesto de cavalheiro, mandou que ela entrasse na frente.
 
Sem cerimônia ela depositou a cesta sobre a mesa e falou fique à vontade, pode ver que é coisa boa mesmo.
 
- Como é seu nome? – ele perguntou.
 
- Maria Aparecida, mas me chamam Cida. Prefiro Cidinha.
 
- Cidinha, o alho é realmente muito bonito. Bulbo bem formado, regular, dentes praticamente uniformes, roxo marcante. Mas não é bem isso que eu quero.
 
- O que o senhor quer, então? Senhor?
 
- Anacleto.
 
- No momento, senhor Anacleto, só tenho alho para vender.
 
- Compro o alho, mas gostaria também de outra coisa que está ao seu alcance me dar.
 
- O que seria esta outra coisa? O senhor está sozinho em casa?
 
- Estou. A patroa sai duas vezes por semana. Uma tarde para ir ao clube jogar cartas com as amigas. Outra, visitar a irmã. Ainda é cedo, não seremos incomodados.
 
- Acho que já entendi. Mas não sei. Qual a sua idade? Desculpe perguntar assim de chofre. Mera curiosidade.
 
- Seis ponto oito. Aposentado faz tempo. Gostei de você.
 
- O que vai me dar em troca? Só a compra de alho?
 
- Fico com umas cabeças de alho e lhe dou um troco. Um dinheirinho a mais.
 
- Pensando. Nunca me vi numa situação dessas. Talvez eu esteja sonhando...
 
- Não está não. E também posso garantir que não é pesadelo. Não vai se arrepender.
 
- E se chegar alguém?
 
- Ninguém vem aqui quando a velha não está. Deixe-me ver os peitinhos.
 
Ela levantou meio tímida a blusa juntamente com um lado do sutiã. Um seio de dezenove anos saltou durinho. O velho arregalou os olhos e por um breve instante tentou calcular os anos que ele não via nada igual tão de perto. Não era grande, sobraria muito pouco fora da sua mão.
 
- Os dois...
 
Ela obedeceu. Ele estendeu a mão e acariciou um deles primeiro, depois o outro. Sentiu um calor crescente e de bem-estar no baixo ventre, sinal de que ainda estava vivo. Abriu lentamente a braguilha e pediu:
 
- Pegue, veja como é gordinho.
 
- Credo, Anacleto. Assim, tudo tão de repente!
 
- Vamos para o quarto.
 
Ela se espantou ao ver a cama de casal arrumada.
 
- Mas aqui, onde você dorme com sua mulher? Não, isso não!
 
- Esta cama é só minha. A velha dorme no outro quarto. Há muito tempo não dormimos juntos. Desde que me chamou de brocha, porque com ela não consigo mais. Preciso de rosa em botão. Toda aberta ou despetalada já não me apetece.
 
- Cuidado com os espinhos, podem machucar.
 
- Não faz mal que eu me fira. Só o perfume da flor fresca já valerá a pena.
 
- Gostou? – ele perguntou
 
- Nada mau.
 
- Então volte semana que vem. Na terça ou quinta.
 
- Se sentir vontade, voltarei.
 
- Que bom que você veio.
 
- Acho que sou louca, ou sei lá o quê.
 
- Você me encanta e me enlouquece. Mas não se preocupe, é loucura consciente.
 
- Posso voltar na quinta?
 
- Claro. Vou tomar gemada com vinho todo dia.
 
- Sabe, Anacleto, hoje faz dois anos que nos encontramos.
 
- Puxa, o tempo passa depressa...
 
- O Luizão quer se juntar comigo. Que você acha?
 
- Não posso dizer que não sinto ciúme. Mas acho que você precisa pensar no futuro.
 
O velho sentia-se animado; despertou a atenção da família.
 
- O pai anda bem disposto. Está tomando vitaminas – a filha contou para o marido.
 
- Anacleto, tenho novidades. Estou grávida.
 
- Meu não pode ser. Nessa idade...
 
- É do Luizão, tenho certeza. Sossegue. Já estou com ele há dois anos. Com você, quatro.
 
- Pois é. Quatro anos. Agora eu sete ponto dois.
 
- Anacleto, vamos dar um tempo. Barriga grande demais. Depois do nascimento e resguardo eu volto.
 
- Vou sentir falta.
 
- Resolvi telefonar para saber se o esquema é o mesmo. Ela continua saindo?
 
- Sim. Pode vir quando quiser. Terça e quinta.
 
- Então até quinta. Morro de saudade.
 
- Bom vê-la de novo.
 
- O nenê é uma graça, Anacleto.
 
- Guri ou menina?
 
- Machinho.
 
- Estão tocando a campainha, vou ver.
 
- Quem é, Anacleto?
 
- A velha. Vá para o porão. Espere um sinal. Vou deixar o portão sem o cadeado. Você sai de mansinho.
 
- Por que demorou tanto para vir abrir este portão?
 
- Eu estava no banheiro. E por que voltou tão cedo?
 
- Dor de cabeça.
 
A velha entrou, tomou um analgésico e foi postar-se em frente à televisão, cuja sala tinha a janela voltada para os fundos, na mesma posição da entrada do porão. Anacleto precisava dar o sinal para Cidinha sair. No entanto, não podia descer ao quintal porque tinha de manter a patroa sob controle, sem despertar qualquer desconfiança. Dono da maior calma do mundo, ele chegou-se à janela sob o pretexto de fazer funcionar uma caneta esferográfica. Na posição em se encontrava, e com a cabeça levemente para fora, conseguia vislumbrar a porta do subsolo. Seguro de que a mulher sentara para ficar, passou a bater suavemente a caneta no lado externo da parede, sob a janela. Cidinha arriscou mostrar a cabeça e olhar para cima. O velho esperto discretamente fez sinal com mão para ela avançar. Ela desentocou e saiu cuidando para não fazer barulho nem bater o portão de ferro.
 
- Que sufoco, Anacleto, aquele dia. Quase que ela nos pega.
 
- Por isso mantenho o portão com o cadeado. Não há risco de alguém entrar. Seja lá quem for terá que tocar a campainha, dando tempo de a gente se esquivar.
 
- Admirei seu sangue frio. Outro no seu lugar teria dado com os burros n’água.
 
- Não sou de esquentar a cabeça e durmo bastante. Nada me apavora.
 
- Por isso não aparenta a idade que tem.
 
- Sete ponto quatro mês que vem.
 
O aniversário caiu numa quinta-feira. Um dos dias da visita da Cidinha. Ela tirou da bolsa uma fotografia recente, tamanho postal, com amorosa e extensa dedicatória no verso.
 
- Trouxe presente. Olhe.
 
- Está bonita. Gostei da dedicatória. Pena que não posso colocar num porta- retrato para exibir na sala. Infelizmente terá que ir para a gaveta de uma mesa velha no porão. Lá ninguém mexe. Quando sentir saudade, desço e dou uma espiadinha.
 
- Tenho também uma notícia.
 
- O que foi desta vez?
 
- Grávida de novo.
 
- Não me apronte. Já disse que na minha idade não se faz filho.
 
- Deixe disso. É do Luizão.
 
- Veja meu barrigão. Cresceu depressa. Ontem fiz ecografia. Agora tem isso até para pobre.
 
- E o que deu?
 
- Está tudo bem. Desta vez é menina. Quero dar nome de artista. Se quiser pode dar palpite.
 
- Não sou muito criativo. Também não conheço tantas artistas. De cinema?
 
- Pode ser de cinema, novela, cantora, até celebridade do esporte, qualquer uma. Mas que seja famosa e bonita.

- Prometo pensar...
 
- Amor, até depois do resguardo. Não arrume outra, viu? Morro de ciúmes.
 
- Até. Não se preocupe, nem saio de casa. E não vai aparecer aqui outra vendedora de alho assim como você.
 
- A menininha é linda, Anacleto. Sorridente.
 
- Tem saúde?
 
- De ferro!
 
- Mandei o Luizão embora...
 
- Por quê?
 
- Deu para chegar embriagado. Valente. Quis me bater. Lá sou mulher de apanhar? Joguei ele porta afora. No dia seguinte queria voltar. Pediu desculpas. Mandei fazer a trouxa. Voltou para a casa da mãe. Ela que o ature bêbado.
 
- Bem que fez.
 
- Anacleto, já faz ano que enxotei o Luizão. O Jorginho quer se juntar comigo.
 
- É gente boa?
 
- Finíssima. Trabalhador. Motoboy. De dia entrega peças de carro. De noite, pizza.
 
- Serviço perigoso. Pode ficar viúva logo.
 
- Não fale assim, amor! Impossível, viúva. É só juntar os trapos, sem papel...
 
- Brincando...
 
- Anacleto, ano e meio com o Jorginho e estou grávida.
 
- Nossa! Onde você vai parar?
 
- Jorginho está empolgado. Não vê hora da minha barriga grande. Está até tendo enjoo. Parece que o grávido é ele.
 
- Frescura...
 
- Tá com ciúme, tá?
 
- Ciúme, não. Já sinto saudade. Novamente meses sem vê-la.
 
- Passa rápido.
 
O telefone tocou numa tarde de terça.
 
- Sou eu, amor, Cidinha. Resguardo acabou. Quinta estarei aí. Tudo como sempre? O piazinho está ótimo. Jorginho radiante. Eu com saudade. Lógico que é de você, seu bobo.
 
- Ano que vem emplaco a versão oito ponto zero.
 
- E firme como uma rocha.
 
- Nem tanto. Estou ficando cego. Fui ao oftalmologista. Catarata e mais umas coisas que nem guardei o nome. Ele mandou fazer exames. Depois disse que o olho direito está mais ou menos, mas o esquerdo está fodido. Veja se isso é vocabulário de médico: - Anacleto, seu olho esquerdo está fodido. Bem assim, na lata. Que ânimo dá ao paciente! Mas tem fama de bom, e experiência.
 
- Vai operar?
 
- Não sei. Vou esperar mais um pouco. O médico não garante que eu possa voltar a ler jornal como antigamente. Então, acho que não vai adiantar muito a cirurgia.
 
- Pena, amor. Mas tente.
 
- Tire a roupa. Quero contemplá-la nua inteirinha. Cada centímetro. Não sei por quanto tempo mais vou poder fazer isso.
 
- Não tenho mais aqueles dezenove aninhos. Três crianças pari.
 
- Mesmo assim continua bonita. Nem parece três filhos. Enxutinha de tudo. Seios ainda firmes. Barriguinha insinuante. Púbis de pelos ralos, macios. Coxas que me embalam e me prendem. Como são lisinhas! Delicioso sabor. Quando a luz negar-se aos meus olhos, restar-me-á o tato. Vê-la-ei com meus dedos, com os lábios, meu corpo todo. Como agora.
 
- Ai, amor. Você me acende. Tremo toda, ai. Ardo em febre.
 
- Preciso conhecer as crianças. Quero ver se são um pouco parecidas comigo.
 
- Tudo bem, quando quiser.
 
- Amanhã. À tarde.
 
- Vou anotar o endereço. Longe, mas muito fácil. Tome o ônibus de Almirante Tamandaré.
 
 - São bonitinhas. Nenhuma se parece comigo. Nenhuma de olhos verdes. Nenhuma é minha.
 
- Eu não falei? Duas do Luizão e uma do Jorginho. Podem sossegar os seus filhos. Ninguém mais para dividir a herança. Desculpe, não quis falar assim.
 
- Nada. Já estou na versão oito ponto zero.
 
- Corpinho de cinquenta.
 
- Estou mijando a conta-gotas. Urologista quer operar a próstata. Será que fico brocha?
 
- Não.
 
- Quis pedir comprimidinho, mas fiquei constrangido ao lado do genro.
 
- Por que não entrou sozinho?
 
- Além de quase cego, já estou meio surdo. Muitas coisas não entendo direito. Então o levei junto. Aliás, ele me levou. Às vezes tenho vontade de contar sobre nós. Acho que ele dá seus tirinhos em outros matos também. Com aquele tipo, não sei não.
 
- Vai operar?
 
- Vou fazer os exames. Ao cardiologista solicitar o laudo que o cirurgião quer. Operar não sei não. Quem sabe?
 
- Acho que devia.
 
- Cardiologista pediu cintilografia do miocárdio. Meio dia no laboratório. Levei o resultado, agora quer cateterismo para ver se pode dar o laudo. Deu um não sei o quê no tal exame.
 
- Vai fazer?
 
- Já marquei. O professor quer acompanhar. Não sei se vai mesmo ou é só conversa. Talvez vá. Divertido ele. Trocamos palavras em italiano. Velho igual a mim. Professor da Federal.
 
- Melhor fazer mesmo. Assim vai saber que está tudo bem.
 
- Mas operar... Não sei.
 
- Como foi o exame?
 
- Não há de ver que o italiano apareceu na hora? Acompanhou o exame todo. O argentino de um lado, ele do outro. Falando difícil, os dois. Na língua dos médicos.
 
- E o resultado?
 
- Durante o exame o professor já disse que está tudo bem. Só me fez prometer uma coisa.
 
- O que?
 
- Ele disse: - Anacleto, noventa pra você vai ser fichinha. Garanto. Desde que pare de fumar. Promete?
 
- E então?
 
- Prometi e estou cumprindo. Sessenta e tantos anos de nicotina. Larguei. Não pensei que fosse tão fácil.
 
- Você é determinado...
 
- Quando quero, faço.
 
A velha ficou doente. Uma semana sem sair de casa. Anacleto telefonou para Cidinha não aparecer até segunda ordem. Na semana seguinte ela não aguentou e telefonou. Perguntou se poderia ir na terça. Em código ele disse não.
 
- Quem era? – a esposa quis saber.
 
- A moça do banco. Oferecendo produto. Aplicação disso, daquilo. Falei que não.
 
Mais uma semana a patroa em casa. Sem ânimo para sair.

Cidinha telefonou. A velha achou esquisita a conversa: - Anacleto falando em voz baixa? Nunca. Aí tem.
 
Tomou a extensão e ouviu tudo. Rodou a baiana. Xingou, disse nome feio, bateu o pé. Prometeu expulsar de casa.
 
O mundo se esfacelou para Anacleto. Meio surdo, meio cego, a próstata pressionando a uretra. E agora sem a amante. Foi a um telefone público.
 
- Cidinha, não dá mais. Espero você no banco, à tarde. Vamos conversar. Depois, paciência. Acabou.
 
De repente o segredo veio à tona. Todo mundo ficou sabendo. A cunhada falou que velho safado! A nora preocupou-se com possíveis danos ao patrimônio. O genro fez dele um herói: – esse é o meu sogro! O filho desmanchou-se em lágrimas. A filha embasbacou-se.
 
- Doze anos de felicidade – comentou com o genro.
 
Anacleto foi entristecendo. Marcou a cirurgia da próstata. Passou a alimentar-se mal. Enfraqueceu. Baixou ao hospital com desnutrição dias antes da data marcada.
 
Piorou inconformado no leito hospitalar. Viajou de madrugada para o outro mundo sem ter-se submetido à operação. Ninguém haveria de lhe cortar nada.
 
Sepultamento no mesmo dia, no jazigo que o genro escolheu à sombra de um ipê amarelo prestes a florir. O velho admirava a árvore no quintal do vizinho. Agora teria a sua.
 
Cidinha ficou sabendo através da lista de falecimentos do jornal que saiu no dia seguinte. Não pode ir ao enterro, então.
 
Semanas depois decidiu voltar à casa. Poderia não ser verdade. Talvez fosse um homônimo, lamentável coincidência ou terrível engano. Precisava conferir.
 
A casa toda fechada. Tocou a campainha. Ninguém atendeu. Correu ao vizinho, que saia do seu portão.
 
- O senhor sabe do Anacleto?
 
- Faleceu.
 
Então era real. Não mais o Anacleto de tantas tardes felizes.

Indo embora, Cidinha passou diante da casa. Antes de perdê-la de vista, virou-se para admirá-la mais uma vez do outro lado da rua. Teve a nítida impressão de ver o velho entre as rosas e os antúrios, como o havia encontrado no primeiro dia. Sorrindo, ele deu-lhe o último aceno. Ela deixou escapar duas lágrimas que foram encontrar as bordas de um discreto sorriso, dobrou a esquina e seguiu em frente carregando a sua cesta no antrebraço esquerdo.


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N. do A. – Na ilustração, A Vendedora de Maçãs de Pierre-Auguste Renoir (França, 1841-1919).
João Carlos Hey
Enviado por João Carlos Hey em 13/05/2014
Reeditado em 20/07/2021
Código do texto: T4805608
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