Quando eu era princípio

Sou resultado de uma dose de uísque num sábado à noite. Fui gerado por acaso, num acidente sem a menor intenção. Milhares de pessoas deste planeta são concebidas assim: de uma dose de uísque.

Tudo começou no recanto escuro de uma boate, numa casa noturna, dessas da moda, que nos fins de semana não sobra lugar para ninguém.

Um casal namorava.

Envolvidos pelo ar enfumaçado do ambiente bebiam entretidos no inconfundível jogo da sedução. Mãos passeavam ao redor do pescoço, ombros, num cerco inevitável. O garçom se aproximou com um bloquinho na mão. Ela não sabia; ignorava completamente o nome dos coquetéis. Pediram uísque. Contentes consigo mesmos, sentaram um em frente do outro, jovens, atraentes. Sem desviarem os olhos murmuravam palavras impregnadas de desejos enquanto viam paraísos e apocalipses no gelo derretendo no copo. Sorviam a bebida entre goles espaçados, em longos intervalos.

Garrafas de uísque, conhaque e licores, arrumadas em prateleiras transparentes, cintilavam de encontro à luz.

No recanto, o DJ animava a balada retirando sons enlouquecidos de músicas eletrônicas, barulhentas, que saíam das caixas de som ao lado da cortina. A pista de dança, superlotada, incandescia; alguns pares se excediam embalados por estimulantes. Garotas, com pouquíssimas roupas, pulavam transtornadas na convulsão do ritmo aeróbico.

O barulho começou a perturbá-los. A eles não interessava o salão repleto. Sentiam necessidade de ficarem sós. Ele a envolveu num abraço e a beijou na boca. Talvez por sentir os olhos seguirem meio embaçados e que a boca desejava com ardor ser beijada. Pouco depois da meia-noite ele fechou a conta e deixou gorjeta. Impulsionados pela força intensa que os fazia mover como quem flutua, deixaram a boate.

Lá fora, tudo. Com o que podia oferecer, até uma lua clara, de cara limpa, vestida de seda-pura. O cheiro da noite perfumava a céu aberto.

Saíram andando pela rua, naquela hora a fervilhar de bêbados, casais abraçados, prostitutas e homossexuais exibindo amostra grátis de alegria na ânsia de curtirem a madrugada. Flores eram oferecidas e táxis se amontoavam nas portas das casas de show.

Sem palavras para limar as arestas daquele momento, caminhavam de cabeça erguida para as estrelas. Mudos. Há muito tempo não fitavam o céu pontilhado, furos de alfinetes cintilantes ou tantas coisas que desejassem inventar. Queriam desbravar o universo, conquistar mundos, onde pudessem se amar por causa da chuva ou se devorar por causa do vento.

As ruas estreitas brilhavam com lâmpadas amareladas. No sinal fechado, os faróis dos carros iluminavam a faixa de pedestres.

Buscaram abrigo em um lugar sossegado onde a privacidade fosse cúmplice. No ambiente acolhedor com direito a rosas e chocolates, deram seguimento ao ritual preparado desde as primeiras carícias. Bússolas desprogramadas deixavam loucos os pontos cardeais. Foi tão intensa a paixão, tão grande a loucura, que o amor se multiplicava em reflexos e reflexos nas paredes e no teto.

No momento extremo do meu pai, milhões de sementes explodiram numa avalanche de grãos que nadavam, dando início a uma corrida louca, vital. Atordoados, em desespero pelo violento choque, perdidos, cercados na escuridão, uns navegavam apressados, outros corriam sem rumo em busca da sobrevivência. Cada um por si. Ânsia de chegar primeiro. Eu nadava com eles, em desvantagem, mas nadava. Sentia a competição dificílima. Luta de vida e morte. Os mais fracos submergiam, levados pela correnteza, diminuindo o número de concorrentes enlouquecidos. Sem claridade não percebia em que lugar eu estava situado. Tinha consciência de participar de uma disputa onde precisava ir além das minhas possibilidades. Venceria o mais rápido. O mais forte. Comecei a perder as forças. Ter desmaios. Por momentos pensei em desistir. No meu limite senti o impacto louco. A vertigem alucinante.

De súbito, as águas ficaram mansas e não senti necessidade de nadar. Flutuei em total relaxamento. Sossego absoluto. Deparei-me com uma poeira brilhante, vi sinais luminosos. Deslizei feito pluma. Caí num lago aquecido, de águas paradas, acolhedor. A tepidez aconchegante aliviou-me o frio. Escutei sons. Não percebi o deslocamento alucinado dos concorrentes debatendo-se na corrida única e definitiva. De repente, fez-se um silêncio profundo. Não havia mais o estertor agitado dos que se apegam à vida. Aquela angústia de precisar vencer.

Dei-me conta de estar sozinho. Mal podia acreditar no que estava acontecendo. Havia conseguido. Meus companheiros de luta estavam mortos. Todos, menos eu.