A forma de Giovanna

A forma de Giovanna

João Geraldo Orzenn Mattozo

Aprendiz Parnanguara

(Versão definitiva para participar do II concurso de contos Nestor Victor)

A vida tem formas, cores inesquecíveis, trejeitos por vezes espalhafatosos, tamanhos de qualquer gosto, maneiras mil de olhares esquisitos e mongóis, sorrisos de todos os tipos, mas como qualquer forma de vida, sempre se apresentam especiais. Não há formas para um ser. Existem, sim, formas de amor, maneiras de acolher.

No ano da posse do primeiro presidente do Brasil, eleito pelo voto popular, João Carlos e Julieta juntaram seus trapos. Uniram-se apenas perante a lei dos homens. Às escondidas. Eles não eram totalmente pobres, apenas tinham uma escassez de riquezas materiais. À duras penas, uma pequena casa em alvenaria foi construída no terreno cedido pelo pai dele. Apesar de todo esforço e sacrifício, continuamente lutam para que a construção chegue a um bom termo.

Iguais nos sonhos de prosperidade, diferentes em formas e tamanhos externos e internos. Polaca, apelido de infância, era do signo de Aquário, de pouca estatura, um coração generoso, todos pensavam que ela fosse uma nissei pelos seus olhinhos puxados da cor do mel, mas era bem brasileira, trabalhadora, esforçada, valorizava suas coisas, seus cacarecos. É bem verdade, eles brigavam, se desentendiam como todo casal. Ela era meio mandona e autoritária, comum das mulheres possessivas e de gênio forte. Porém, existia entre eles o respeito, coisas de quem se ama.

O Juca, um leonino alto, já teve cabelos lisos, negros na juventude, mas já se apresentava com uma calvície de respeito. Um ser humano que doava o coração. Adorava ladear-se de amigos sinceros. Os óculos eram parte de sua vida desde os treze anos, camuflavam a doçura de seus escuros olhos e imprimiam-lhe um ar sério. Estudara no seminário por anos, em Ponta Grossa, mas desistiu de concorrer à carreira eclesiástica, por convicções pessoais. Mesmo que tentasse esconder, ainda tinha os seus olhinhos brilhantes voltados à uma fé enraizada no Deus (Uno e Trino) e às mãos sempre postadas ao fervor e às preces à Mãezinha do Céu, valores primeiros que a sua saudosa mãe, Odaléa, soube lhe ensinar.

Em 1990, Polaca estava buchuda, grávida. Sonho de ambos que se realizava. Era uma felicidade larga, o primeiro rebento chegando. Uma menina! confirmaram os exames. O sorriso inundava aqueles rostos joviais.

Todos os meses ela fazia o pré-natal. O bebê se desenvolvia bem e aquela barrigona era cercada de cuidados e de carinhos. Juca radiava alegria pura pelos seus olhos serenos. Suas mãos espalmadas deslizavam delicadamente sobre aquela enorme bola que se revolvia como num fluxo e refluxo de maré.

Eram agitos e pequenos chutes, como se o bebê já quisesse sair para brincar. A cada palavra sussurrada pelo casal era respondida com profunda euforia silenciosa. Nas músicas que ele cantarolava, podia sentir o roçar dos pesinhos do frágil ser escondido, como se estivesse a pedalar pela barriga da mãe.

O rádio era a diversão do casal. Sintonizavam a Difusora de Paranaguá, o som que vem do mar. Pelas cinco da manhã já se ouvia a música do Carequinha, o velho saudoso palhaço cantarolando: “Chegou a hora de apagar a velinha, vamos cantar aquela musiquinha, parabéns (poom, poom), parabéns (poom, poom)... pelo seu aniversário”. Lá estava Juca todo corujão com os ouvidos e as mãos plantadas a sentir aquele ser contagiante. Energia angelical era transmitida. Combinaram que o nome da menina seria Giovanna, Joana em italiano. Tinham feito um trato de que se fosse menino, a mãe escolheria o nome da criança. Ele gostava da sonoridade daquele nome.

Nasceu de forma natural, numa noite de março de 1991, a bela Giovanna. Admirou embasbacado o pequeno ser, que tinha os olhos envoltos numa teia de aranha. Nariz e bochechas avermelhadas, braços e pernas agitadas, chorava forte como todo recém-nascido, e fitando-a por inteiro, agradeceu a Deus, pela linda, desprotegida e frágil criatura.

Um quê de euforia invadiu-lhe os braços e as pernas. Juca foi o primeiro a vê-la, depois das enfermeiras e da jovem mãe. Dias depois descobrira que a menina nascera nas mãos de parteira. O dito doutor só aparecera após o nascimento. Pena que não pôde acompanhar o parto, afinal de contas foi pelo SUS, na Santa Casa de Misericórdia. Chateava-se só em pensar que pagara cinqüenta pratas ao médico para que atendesse ao parto. Como muitos brasileiros sentiu-se uma vez mais enganado, mas importava que estava lá, no corredor, viu quando saiu da sala de parto a enfermeira carregando aquela bonequinha, enrolada num pano de hospital, toda suja, esquisita no seu entender. Nua.

A felicidade era trêmula, não sabia como agir, o que fazer, mas apesar do nervosismo estava leve como uma pluma. Realizado. Sem conseguir falar com a patroa, foi para casa. Bebeu com seu pai o mijo da criança.

Na manhã seguinte, estava cedo na maternidade. Encontrou a mulher aos prantos. Inconsolável. Um frio estarrecedor correu-lhe a espinha. Temeu o pior. Polaca contou-lhe, entre lágrimas e soluços, o que o pediatra lhe dissera de forma ríspida, o bebê tinha uma doença grave. Não seria normal, era portador da Síndrome de Down. Seu rosto franziu de raiva pela atitude tomada pelo pediatra, por não ter respeitado o estado emocional de uma mulher no pós-parto, que poderia trazer consequências sérias à sua saúde. Não poderia tê-lo esperado para conversar?

Juca tinha os olhos atônitos. Sabia o que era aquilo. Como seminarista, já visitara crianças portadoras daquele tipo de anomalia. Também tivera um irmão assim, já falecido. Buscava algum sentido para o que estava ouvindo, uma inspiração, uma palavra. Ter estado poucos momentos, poucas horas com uma pessoa portadora daquela síndrome é uma coisa. Contudo, imaginava como seria ter um ser permanentemente aos seus cuidados. Pensava e o mundo fugia-lhe aos pés. Um frio cortante invadiu-lhe a nuca. Cerrou os olhos desesperados... Não! Uma luz Senhor... Fitou Polaca fundo nos olhos destroçados, segurava as lágrimas. Abraçaram-se e demoradamente a confortava.

- Calma meu amor... Calma!

- Ela é nossa filha, continua ele.

- Deus nos deu esta dádiva. Como diziam meus velhos, presente não se rejeita. Enquanto nos esforçamos para ser lampejos da perfeição Dele, apontava Juca com o dedo para o céu, Ele Próprio nos concede o seu sorriso puro. Sim Polaca, nossa filha é mais perfeita que qualquer ser humano que se julgue tal. Portanto, vamos amá-la, criá-la e cercá-la de carinho. É um anjo. Deus nos deu um anjo para guardar. Ele fala conosco.

A mulher ainda inconformada, assustada, chorava e suspirando retrucou:

- Mas o médico falou que não vai andar nem falar. Vai ser um vegetal. Cheio de problemas. Por que isso logo conosco?

Juca, com voz autoritária, sem vacilar diz à mulher de olhos descrentes:

- Escuta... nunca te esqueças, Giovanna é mais que nossa filha! Ela veio para iluminar nossas vidas. Nossas luzes são opacas, nossas vidas sem sal, sem sentido. O brilho dela transcende nosso conhecimento, ela vem do Todo-Poderoso. Somos abençoados. Vamos educá-la com o melhor de nós, com muito amor. Deus sabe, tudo está nas mãos Dele.

Juca tem razão, amigo leitor, pois Deus não escreve por linhas tortuosas. Ele é a própria exatidão, a Perfeição Suprema. Os homens são apenas imagens Dele, por isso somente refletem pequenas, quase ínfimas luzes de perfeição. Os homens são vaga-lumes reluzindo intermitentes nas noites, sem sequer conseguir brilhar diante da lua quanto mais diante da imensidão do sol que é Deus.

Alguém especial não é apenas diferente. Há milhares de lares com pequenos sorrisos do Pai Celestial, como a graciosa Giovanna, gente diferenciada, puros olhares da Mongólia. O que os tornam diferentes? Pode ser tudo... pode não ser nada... mas com certeza é algo a que chamo de amor incondicional.

A vida torna-se diferente na forma como se escolhe trilhar a boa jornada. Juca e Polaca são tão especiais e tão diferentes em formas quanto a bela Giovanna, o ser maravilhoso que geraram. O que torna a Giovanna diferente não é a beleza, tão pouco a inteligência ou qualquer outro atributo efêmero, mas a forma gritante de sua dependência e que torna os seus pais cativos e ávidos para o amor constante. Mesmo fragilizada humanamente, ela é o elo forte desta corrente que transformou o interior de ambos.

Diferente, leitor, é aquele ser desprendido de futilidades e totalmente aberto às maneiras de amar e de se doar. O ser humano não é uma máquina que foi criada com defeitos de fabricação e deva ser destruída ou descartada, nefastamente excluída do convívio humano, por não apresentar os atributos exigidos de perfeição terrenas. O recall do homem é definitivo, chama-se morte. Todo mundo têm um quê de especial. Toda vida é um fenômeno particular que merece ser tratado com requinte.

Giovanna, modificou a forma de vida de Juca e Polaca. É gostoso vê-los unidos lutando por uma vida. Os médicos erraram. A menina fala e anda. Giovanna tem uma forma diferente do olhar humano, uma forma perfeita na ótica divina, uma forma que o homem demora a compreender. A forma de Deus é a mais simples possível e complexa aos olhares da humanidade. A forma de Deus é amor incondicional, por isso Giovanna tem essa forma doce e angelical. Ela tem a forma do amor.

Geraldo Mattozo
Enviado por Geraldo Mattozo em 25/08/2014
Código do texto: T4936578
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